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O racismo em um carnaval de contradições

Dinâmicas de poder, percepção racial e representatividade no contexto cultural do Carnaval do Rio de Janeiro
Imagem mostra pessoas tocando bateria de carnaval.

Foto: Reprodução

24 de novembro de 2023

Por: Marcos Ramos*

Uma entrevista promovida por Jorge Perlingeiro, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), com membros da escola de samba Portela desencadeou um intenso debate nas redes sociais. A controvérsia emergiu de um comentário feito por Perlingeiro, que, em um tom presumivelmente jocoso, questionou a identidade racial do carnavalesco Antônio Gonzaga: “Você é negro? Precisamos dar uma mão de tinta em você porque está muito clarinho”, seguido de “Você não está com essa negritude toda”. Esta declaração, que superficialmente poderia ser interpretada como uma tentativa de humor, na verdade, revela as complexas dinâmicas de poder, percepção racial e representatividade no contexto cultural do Carnaval do Rio de Janeiro.

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Apenas algumas horas após o ocorrido, a Portela emitiu um comunicado oficial em suas redes sociais, expressando solidariedade aos seus carnavalescos e reafirmando seus princípios fundamentais. No comunicado, a agremiação enfatizou suas raízes históricas, destacando que a instituição foi estabelecida há mais de um século por “pretos, pobres e suburbanos”. A escola também reiterou seu compromisso contínuo na luta contra todas as formas de preconceito e na promoção da diversidade.

É irônico que justamente o enredo escolhido pela Portela para o Carnaval de 2024 seja “Um Defeito de Cor”, inspirado no aclamado romance homônimo de Ana Maria Gonçalves. Este romance épico, com mais de novecentas páginas, mergulha na vida de Kehinde, uma mulher africana do século XIX. Capturada ainda criança no Benin, a protagonista e narradora é vendida como escravizada e trazida ao Brasil. No romance, acompanhamos sua trajetória marcada por adversidades e violências inerentes à experiência da escravidão. A escolha deste enredo pela Portela não só presta homenagem à rica história africana e afro-brasileira, mas também ressalta a importância de reconhecer e refletir sobre as profundas cicatrizes deixadas pela escravidão na sociedade brasileira.

No romance, somos conduzidos pela jornada de Kehinde em busca de liberdade e da redescoberta de suas raízes e identidade africanas. A história desenrola-se através de suas vivências diversas, desde a dura realidade nas fazendas até a dinâmica das cidades brasileiras em expansão, incluindo sua participação nas movimentações abolicionistas, como a Revolta dos Malês, em 1835. O romance aborda também aspectos cruciais como maternidade e as complexas relações inter-raciais. Um aspecto notável que será enfatizado no enredo da Portela é o filho de Kehinde, Luiz Gama, que emerge como uma figura histórica de grande importância na luta pela abolição da escravatura no Brasil.

É significativo e revelador que os comentários do presidente da LIESA, Jorge Perlingeiro, tenham sido feitos precisamente durante uma entrevista que tinha, entre seus objetivos, esclarecer ao público detalhes sobre o enredo da agremiação. O fato de tais observações ocorrerem em um contexto destinado a aprofundar o entendimento sobre um tema tão rico e histórico como “Um Defeito de Cor” ressalta uma desconexão preocupante entre a liderança da LIESA e a profundidade cultural e histórica que o Carnaval carioca pode representar.

No entanto, apesar de as afirmações dirigidas ao carnavalesco Antônio Gonzaga terem sido foco da polêmica em torno do racismo, é importante destacar que essas não foram as únicas questões relevantes na entrevista. Não deixa de ser notável, por exemplo, como uma figura central na instituição responsável pela organização do maior evento afro-brasileiro do país, e provavelmente a maior expressão cultural das diásporas africanas, parece não estar familiarizada sequer com o título do romance que inspirou o enredo da Portela, “Um Defeito de Cor”.

Esta falta de conhecimento não é um mero detalhe, muito menos uma exigência acadêmica e elitista. O romance, considerado por muitos como a obra literária brasileira mais significativa dos últimos anos, desempenha um papel crucial hoje na reinterpretação da história do país sob uma perspectiva contra-hegemônica. Trata-se de uma obra fundamental para qualquer pessoa minimamente familiarizada com as lutas políticas dos povos subalternizados. O que evidentemente não é o caso do presidente da LIESA e entrevistador.

Em um momento crucial da entrevista, ao ser questionado sobre o significado do termo que dá título ao romance de Ana Maria Gonçalves, Jorge Perlingeiro recebe dos carnavalescos uma explicação detalhada. Eles esclarecem que “Defeito de Cor” é uma expressão historicamente vinculada ao contexto da escravidão e do racismo no Brasil, utilizada pejorativamente para descrever a pele negra ou a ascendência africana como uma “falha” ou “deficiência”. Esta terminologia espelhava a visão racista que enxergava a cor da pele como uma barreira ou um estigma. Os carnavalescos destacaram que, em determinadas situações sociais, pessoas negras buscando cargos de prestígio ou posições de destaque na sociedade escravista eram frequentemente forçadas a se desculpar por este “defeito de cor”.

A resposta subsequente de Perlingeiro, especialmente se referindo à rainha de bateria da Portela, Bianca Monteiro, uma mulher negra, revela muito. Aludindo às suas características físicas, mais uma vez em tom jocoso, ele sugere que a necessidade de desculpas pelo “defeito de cor” só foi necessária naquele contexto escravista porque os brancos não haviam conhecido Bianca. Apesar de Bianca enfatizar reiteradamente durante a entrevista a necessidade de uma maior liberdade para que as mulheres exibam seu trabalho durante os desfiles, e não necessariamente seus corpos seminus, Perlingeiro, mantendo seu tom de brincadeira, sugere que em 2024 ela desfilaria apenas com duas peças: “óculos e tamanco”. Embora pareçam inofensivos, esses comentários carregam profundas implicações e ressaltam a persistência de estereótipos raciais e a superficialidade na compreensão das dinâmicas sociais no Brasil. Perspectivas que são justamente contrapostas pela obra base do enredo.

Sublinharia, no entanto, que esses comentários do presidente da LIESA não são meras peculiaridades individuais; elas refletem um ethos amplamente conhecido nos espaços das escolas de samba, uma zona cinzenta criada a partir de uma mescla de piada e sexismo, brincadeira e racismo que mascara, muitas vezes, um território de brutal violência. Trata-se, em última instância, do perfil emblemático de um grupo que, embora tenha facilitado aspectos fundamentais do evento carnavalesco devido à sua proximidade com o poder, representa hoje a mais flagrante contradição do Carnaval Carioca. É a manifestação mais clara do custo de um pacto fáustico que, como preço, exigiu paulatinamente um distanciamento entre as escolas, seu povo, sua negritude e, principalmente, sua dimensão política.

Utilizando uma metáfora conceitual, as escolas de samba podem ser comparadas a entidades que, em seus estágios iniciais de florescimento e desenvolvimento cultural, foram capturadas e, desde então, passaram grande parte de sua existência sob a influência de figuras dominantes que agora reivindicam a responsabilidade por seu crescimento e amadurecimento. Neste contexto, as escolas de samba, por sua vez, exibem traços de uma espécie de Síndrome de Estocolmo cultural. Esta comparação sugere que, apesar de uma história marcada pela manipulação e controle externo, as escolas desenvolveram uma relação complexa e, em certa medida, dependente com essas forças dominantes, um fenômeno que reflete a intricada dinâmica de poder e dependência cultural nesse universo.

O Carnaval carioca, enquanto permanecer nessa zona ambígua que oscila entre enredos contestatórios, aparentemente alinhados às lutas políticas de povos marginalizados, e a cumplicidade velada marcada pelo riso, convívio, admiração e, em última análise, pelo silêncio, continuará a ser o palco de uma das mais complexas dissimulações da cultura brasileira. E pelo que a história recente aponta, o futuro será ainda pior. Personagens como Kehindê (ou Luisa Mahin), mãe do advogado abolicionista Luiz Gama e figura central reimaginada no romance “Um Defeito de Cor” – que serve de inspiração para o enredo da Portela – simbolizam mais do que meros elementos históricos. Eles representam a possibilidade de criação de uma nova mitologia, uma que se fundamente não em negociações políticas moldadas pelos termos da branquitude, do poder e do capital, que historicamente enfraqueceram as dimensões políticas das culturas diaspóricas ao reduzi-las a meras commodities, mas sim uma mitologia que exalte a força daqueles que determinam os próprios termos de sua existência e resistência. Nem que para isso seja necessário refundar o Quilombo, como fez o dissidente Candeia.

* Marcos Ramos é professor visitante na Universidade Nacional da Colômbia e autor de “Anatomia da Elipse: Escritos sobre Nacionalismo, Raça e Patriarcado”, entre outros livros.

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