Lélia Gonzalez, referência quando o assunto é intelectualidade negra na América Latina, é fonte de inspiração para outras mulheres negras. O conceito de Amefricanidade, que se refere à experiência comum negra na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas contra a dominação colonial, é o fio condutor da vida acadêmica de diversas universitárias negras, que optaram por homenagear a pensadora em seus trabalhos de conclusão de curso.
É o caso de Carolina Aparecida Silva Vieira, estudante de Letras pela Universidade de São Paulo (USP). A partir dos estudos sobre Lélia Gonzalez e a Amefricanidade, a acadêmica optou por utilizar apenas os trabalhos de mulheres negras como referências bibliográficas de sua monografia, que deverá ser defendida em novembro deste ano.
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“Em 1988, Lélia Gonzalez disse ‘a gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora’. Foi a partir dessa fala que parei para pensar o quanto deixamos de honrar o legado das nossas ancestrais em gestos simples do cotidiano, como um TCC”, pondera a universitária.
Carolina salienta que a Amefricanidade parte do pressuposto de que população negra deveria se empenhar em construir um pensamento próprio do negro a partir da centralidade nos sujeitos negros, especialmente nas mulheres negras, uma vez que as teorias tradicionais não davam conta de explicar a experiencia negra no Brasil.
“Lélia Gonzalez acreditava que o Brasil não deveria importar teorias negras dos Estados Unidos, por exemplo. O negro brasileiro deveria ter a oportunidade de entender a sua própria experiência. E é nisso que pretendo basear o meu trabalho”, explica.
“Quando a gente para para refletir sobre essa tal perspectiva do negro no campo acadêmico, há ainda uma carência de dar espaço às nossas intelectuais. Honrá-las representa muito em um espaço majoritariamente masculino e branco”, completa.
Conhecimentos de Lélia Gonzalez
Beatriz Santos, estudante do último período de História na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), comentou à Alma Preta Jornalismo o quanto o contato com a obra de Lélia Gonzalez e outras pensadoras negras vieram de forma tardia em sua construção acadêmica. Ela relembra que nunca havia tido contato com autoras negras durante o ensino fundamental e médio.
“Eu fui descobrir quem era Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e outras mulheres negras intelectuais só na universidade e fiquei espantada com a minha própria ignorância no assunto, afinal, eu me considerava feminista há alguns anos”, ressalta.
Com a obra de Lélia, a estudante de História afirma que pôde aprender muito, e pretende levar esses ensinamentos para a banca de TCC e, posteriormente, para a sala de aula, já que pretende seguir carreira como docente.
“O meu TCC é baseado na ideia de Lélia Gonzalez de que a negritude brasileira não estava nem na África, nem nos Estados Unidos. Ela não negava a importância da África para nós, mas considerava que no Brasil, a África se manifestava a partir das nossas realidades, com o nosso candomblé, capoeira, e outros valores da cultura negra”, explica.
Beatriz ainda comenta que outro ponto que ela pretende enfatizar em sua monografia é que Lélia Gonzalez defendia o rompimento entre colonizador e colonizado, e suscitava o protagonismo do colonizado na transmissão de valores para a formação cultural.
“Lélia também construiu um pensamento sobre o feminismo negro brasileiro, articulando a raça, gênero e classe, o que se tornou inédito para a época. Ela é uma professora para toda a experiência negra contemporânea”, completa a estudante de História.
Amefricanidade no dia-a-dia
“Quando entendemos que o país foi forjado na escravidão do povo negro e do povo indígena, passamos a nos identificar enquanto ‘amefricanos’, tal qual pensou Lélia Gonzalez. Logo, compreendemos que até hoje vivemos processos sistemáticos de exclusão justificados por esse ideal de humanidade”. É o que avalia a estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sofia Martins.
Para ela, é possível encontrar diversos exemplos da Amefricanidade no cotidiano brasileiro, e isso se dá graças ao amplo contato com manifestações culturais negras de vários outros países contidas no Brasil.
Sofia destaca que Lélia Gonzalez criticou duramente o lusotropicalismo, o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento. Ela ainda salienta que a “Amefricanidade é presente nas revoltas, nas estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre, cuja expressão concreta se encontra forjada nas peles não-brancas tão perseguidas”.
“Se Lélia Gonzalez nos deixa um legado é o pensamento amefricanista, que nos coloca enquanto indivíduos no mundo que pensam sua experiência negra, ainda que simplória, mas coletiva e real. A intelectualidade passada de geração em geração, os saberes ancestrais e a não-subserviência são formas de honrar essa grande mulher e resistir à opressão que ela tanto lutou contra”.
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