“Informa-se, por oportuno, que o Ministério [de Relações Exteriores] não mantém cadastro dos seus servidores baseado no critério de raça, cor ou etnia”, diz a pasta em resposta a uma solicitação de Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre o perfil dos diplomatas brasileiros atuantes em África.
Apesar do que informa o Itamaraty, um levantamento elaborado pela Alma Preta Jornalismo constatou, por meio de heteroidentificação, que, dos 90 diplomatas em exercício pleno da função no continente africano, apenas um é negro, o embaixador do Brasil no Quênia, Silvio José Albuquerque e Silva.
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Dados da pesquisa feita pela reportagem mostram ainda que dentre os demais profissionais ativos na África, 65 são brancos e um é amarelo. Em 23 casos, não foi possível identificar a raça ou etnia, pois o Ministério de Relações Exteriores (MRE) não possui um cadastro de informações atualizadas.
Se categorizados por gênero, também existe discrepância no perfil diplomático atuante no continente africano: dos 90 diplomatas, 73 são homens e apenas 17 são mulheres, sendo todas elas brancas.
O diplomata é um servidor público que trabalha para promover os interesses brasileiros e estimular as relações entre o Brasil e outros países. Trata-se de um profissional de carreira lotado no Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty.
África e Europa
Segundo o cientista político Mathias Alencastro, especialista em Política Africana, as relações diplomáticas entre o Brasil e a África são muito condicionadas pela vontade política e pelo perfil do chefe de Estado. Ele destaca que, durante o mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e na gestão do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), houve engajamento em manter o diálogo diplomático com o sul-global, fato que não se estendeu para o governo de Michel Temer (MDB), tampouco para a gestão de Jair Bolsonaro (PL)
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“Na Era Bolsonaro, esse engajamento praticamente desapareceu. E isso é sintomático do fato que ainda é uma relação diplomática que depende muito de um impulso político. É claro que um presidente dinamiza, acelera ou desacelera a relação, mas a relação teria que existir independente do presidente e isso não é caso nas relações entre Brasil e África”, enfatiza Mathias, que também foi assessor internacional da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência em 2015.
Como já noticiado pela Alma Preta Jornalismo, nos últimos anos, sobretudo durante o governo Bolsonaro, não houve avanços diplomáticos entre Brasil e África. Uma preferência brasileira pela Europa, por exemplo, é percebida quando se observa o número de diplomatas em terras europeias: enquanto a África, com seus 54 países, possui menos de 100 profissionais em exercício da função, a Europa, por sua vez, conta com 338 diplomatas, divididos em diversos postos consulares nos 50 países que compõem o continente.
Racismo exportado para a África
O especialista em Política Africana Mathias Alencastro também destaca que a realidade das embaixadas em África é inconstante e desigual. Isso favorece a existência de representações diplomáticas nesses países com uma boa memória institucional e disputada pelos diplomatas e outras desconectadas da política externa brasileira, sem embaixadores de alto escalão ou relegadas a atividades mais secundárias.
Alencastro reforça que as representações continuam sendo muito condicionadas pelo peso político. Além disso, às vezes, acabam-se tendo situações desagradáveis como foi aí o caso da Guiné-Bissau, quando, em 2021, o embaixador do Brasil no país africano, Fábio Franco, deixou o cargo após denúncias de racismo praticado por sua esposa Shirley Carvalhêdo Franco. Ambos são brancos.
De acordo com reportagem publicada pela Folha de São Paulo, a esposa do embaixador interferia nas atividades da representação diplomática mesmo sem ter vínculo com o Ministério das Relações Exteriores. As denúncias apontavam que Shirley assediava moralmente e fazia declarações racistas contra os trabalhadores da representação.
“Eu acho que esse é o tipo de escândalo que acontece quando falta integração e coordenação entre as embaixadas e o Itamaraty e quando falta um interesse real da parte de todos de acompanhar o que está acontecendo. Quando isso não acontece, as embaixadas ficam muito soltas e os funcionários desenvolvem muita autonomia”, explica Alencastro.
Além disso, o cientista político acredita que o Brasil precisa reconhecer que o racismo estrutural existe no país e que ele atinge também os diplomatas, o que evitaria casos como o da Guiné-Bissau.
“Esse tipo de incidente deveria ser punido com muito mais gravidade, não é algo que deveria passar batido. Nesse sentido, tem que haver uma discussão profunda dentro do Itamaraty, dentro de todas as instituições, sobre como lidar com o racismo estrutural da sociedade brasileira”, destaca.
“Há todo um nível de preparo que o diplomata tem, mas o diplomata tem que ser um especialista do Brasil e, para ser especialista do Brasil, ele tem que, não apenas entender os objetivos do país, mas também entender as contradições. Viajar com todos os clichês racistas do Brasil certamente não ajuda”, complementa o cientista.
Expertise dos diplomatas e nomeação controversa
A indicação de pessoas inexperientes ou por motivos considerados inadequados para a ocupação de embaixadas em África mostra-se também como um entrave para o avanço diplomático entre o Brasil e o continente africano. Também em 2021, houve a indicação de Jair Bolsonaro para que Marcelo Crivella (Republicanos), ex-prefeito do Rio de Janeiro, ocupasse o cargo de embaixador na África do Sul.
A indicação de Crivella, que é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, surgiu em um contexto de dificuldades da agremiação religiosa em Angola e Moçambique. A ocupação do posto pelo ex-prefeito do Rio, então, poderia favorecer uma articulação em favor da igreja. Após cinco meses sem uma resposta por parte da África do Sul, o presidente Jair Bolsonaro retirou a indicação de Crivella ao cargo.
Sobre o assunto, Mathias Alencastro destaca que não é necessariamente contra a indicação de pessoas que não são da carreira para o cargo de embaixador, mas acredita que é um tema que tem que ser tratado com muito cuidado e que deve haver um processo de filtragem dos nomes bem institucionalizados.
“Eu acho que você pode ser um grande representante do Brasil e não precisa ter feito uma carreira no Itamaraty para isso. Mas o problema disso é que, quando se está com más intenções, as escolhas podem ser catastróficas. No caso do Crivella, a indicação tinha uma única motivação, que era agradar os setores evangélicos que apoiam o Bolsonaro e esse tipo de motivação não pode haver”, explica o cientista político.
A Alma Preta Jornalismo também questionou o Itamaraty sobre o motivo da discrepância do número de diplomatas em África e na Europa, além de pedir um posicionamento da pasta sobre a prevalência de um perfil branco e masculino no continente africano. Em resposta, o Ministério das Relações Exteriores informou que a movimentação de servidores do Itamaraty em postos no exterior obedece às disposições prescritas na Lei n° 11.440, de 29 de dezembro de 2006 (Lei do Serviço Exterior), no Decreto n° 93.325, de 1° de outubro de 1986 e em demais normas jurídicas aplicáveis.
A pasta também recordou que o Instituto Rio Branco (IRBr) realiza, desde 2002, o Programa de Ação Afirmativa (PAA) – Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, que tem fundamento no art. 4º, VII, da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010.
“Para além da concessão da Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, o Itamaraty estabeleceu reserva de vagas na Primeira Fase do Concurso de Admissão à Carreira Diplomática (CACD) de 2011 a 2014. O edital do CACD de 2015 foi dos primeiros a prever, em conformidade com a Lei nº 12.990/2014, a reserva de 20% das vagas oferecidas a candidatos negros em todas as fases do concurso”, respondeu o Itamaraty.
*Texto atualizado em 5 de maio de 2022: foi incluído o posicionamento do Ministério das Relações Exteriores.