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Orixá não tem cor? Sincretismo religioso e o apagamento da negritude

“Quando nossos ancestrais foram arrancados da África, e trazidos à força para o Brasil, foram obrigados a adotar a fé do colonizador”, destaca sacerdote de candomblé
I'sis Almeida/Alma Preta com adaptação de imagens de Tatiana Azeviche e Ciroamado

Foto: I'sis Almeida/Alma Preta com adaptação de imagens de Tatiana Azeviche e Ciroamado

30 de março de 2022

No decorrer dos anos, as religiões e cultos acabam por sofrer mudanças em suas estruturas, especialmente influenciadas pelas transformações da própria sociedade. As doutrinas podem incorporar manifestações e crenças de outras religiões, porém, sem deixar suas características básicas originais. Esse fenômeno é chamado de sincretismo religioso.

A jornalista Cláudia Alexandre, doutora e mestra em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisadora e autora do livro “Orixás no Terreiro Sagrado do Samba – Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai”, explica, no entanto, que há muitos equívocos na interpretação do que vem a ser sincretismo religioso, em especial, quando relacionado aos povos africanos e seus descendentes.

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“Politicamente, o termo sincretismo remete à opressão, demonização, violência e dominação”, pontua.

A doutora ressalta que, primeiramente, o sincretismo religioso é um fenômeno social. Embora no Brasil seja associado diretamente ao contexto das religiões afro-brasileiras, brasileiras ou de matrizes africanas, ao observar o sincretismo a partir da compreensão da Ciência da Religião, é possível constatar que ele acontece em todas as religiões, até mesmo nas mais tradicionais.

“Nós dizemos que todas as religiões são de alguma forma sincréticas, no sentido de que haverá sempre influência do meio, da cultura e dos contatos ocorrido no processo de organização das instituições”, comenta a pesquisadora.

Candomblé é sincretizado?

Em relação às religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé, a ideia de purismo nestas tradições seria uma construção feita a partir de uma intelectualidade eurocêntrica, colonialista e patriarcal, segundo Cláudia Alexandre. De acordo com a doutora, por muito tempo se defendeu que as práticas do povo iorubá (candomblé ketu-nagô) eram superiores às das tradições do povo bantu (candomblé congo-angola), desprezando que havia uma pluralidade étnica e de tradições diferenciadas em cada um destes grupos.

Ela ressalta que esses mesmos grupos foram responsáveis por ajudar a organizar o que passou a ser chamado de “candomblés”, e outras denominações que surgiram por causa dessas heranças e do contato com grupos nativos e europeus, independentemente da imposição de crenças.

Créditos: I'sis Almeida/ Alma Preta, com adaptação de imagens de Tatiana Azeviche e Alberto Coutinho(I’sis Almeida/ Alma Preta, com adaptação de imagens de Tatiana Azeviche e Alberto Coutinho)

“A visão ocidental não foi capaz de ler a complexidade das organizações dos candomblés e aí se definiu como sincretismo religioso apenas a forma como se instalaram alguns símbolos católicos nas religiões afro-brasileiras. Inclusive, como resultado do processo de colonização, que teve início com a invasão ocidental no continente africano, e a participação da Igreja Católica com seu processo de conversão do povo negro, que foi escravizado e transportado para as Américas”, avalia.

A necessidade do sincretismo religioso durante a colonização

“Quando nossos ancestrais foram arrancados de África e trazidos à força para o Brasil, foram obrigados a adotar a fé do colonizador. Mesmo assim, deram um jeito de continuar praticando seus costumes e crenças”. É o que explica o professor de Educação Infantil e Fundamental, Daniel Pereira, babalorixá de tradição nagô-ketu e líder religioso da Comunidade da Renovação Ilê Axé Oxaguian.

Daniel pondera ainda que como o povo escravizado recebia a religião cristã compulsoriamente, era necessário esconder ou disfarçar suas práticas religiosas. “Dessa forma, inteligentemente, fingiram adotar os santos católicos mas, na verdade, seguiram cultuando as divindades africanas”, comenta.

Cláudia Alexandre, por sua vez, destaca que há de se considerar o batismo e a mudança dos nomes africanos por nomes portugueses bem como a formação das irmandades negras católicas como uma imposição estratégica de dominação. A partir daí, lideranças negro-africanas, que fundaram os primeiros candomblés – sendo a maioria mulheres – negociaram com esse poder, adotando os símbolos, rituais e costumes católicos na própria organização do culto

“O exemplo mais conhecido foi o de associar os santos católicos aos orixás. Vale dizer que esse ‘jogo’ representava muito mais resistência do que transformar uma coisa na outra. Por exemplo, Ogum, o orixá do ferro, nunca foi São Jorge. Iansã, a deusa dos ventos e tempestades, nunca foi Santa Bárbara. Mas esse fenômeno, chamado de sincretismo, fez com que, em algum momento, acreditassem que os africanos tinham abandonado seus deuses”, explica a pesquisadora.

O professor e babalorixá Daniel ressalta que, neste ponto, é importante separar o candomblé da umbanda. Segundo ele, a umbanda é uma religião brasileira sincrética em sua essência, o que a diferencia do candomblé.

“O culto da umbanda aglutina elementos do cristianismo católico – como o uso de imagens de santos católicos, por exemplo –, do candomblé, pois as sete linhas são regidas pelos orixás, e também indígenas, com o culto aos caboclos”.

Já o candomblé brasileiro é a união de diversos cultos praticados na África, segundo o líder religioso, formado no Brasil a partir do culto implementado por três mulheres africanas: Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nasó Oká.

Sincretismo religioso nos dias de hoje

Para o professor Daniel Pereira, é necessário compreender a importância do sincretismo religioso como forma de resistência na época do Brasil Colônia. No entanto, o sacerdote acredita que isso não é mais necessário no candomblé de hoje em dia.

“Entendo perfeitamente que o Brasil teve quase quatrocentos anos de escravidão, ao passo que a abolição da escravatura é muito recente – algo em torno de 130 anos. Portanto, reparar o estrago feito pelo sincretismo religioso nas práticas religiosas, sobretudo de quem professa única e exclusivamente o candomblé, levará algum tempo”, pondera.

Para a doutora e pesquisadora Cláudia Alexandre, atualmente é necessário que a sociedade revise as narrativas que basearam os estudos afro-brasileiros. “É preciso separar a leitura, que temos de fora, da tradição, que segue cada terreiro”.

“Como uma narrativa que justifique que São Jorge é Ogum, por exemplo, o sincretismo já caiu por terra. Sabemos que santos católicos e orixás têm origem em tradições completamente diferentes, de visões de mundo diferentes, mas que o processo de colonização fez com que as trocas culturais fossem inevitáveis, tendo a escravização como um dado cruel e motivador desse processo”, explica.

Cláudia ainda completa que apesar dos estudos já refutarem o sincretismo religioso enquanto necessidade, e muitos grupos trabalham atualmente a ideia de dessincretização, em especial dos candomblés, na prática há de se considerar que foi um processo de séculos.

Créditos: I'sis Almeida/ Alma Preta Jornalismo, com adaptação de imagem de Tatiana Azeviche(I’sis Almeida/ Alma Preta Jornalismo, com adaptação de imagem de Tatiana Azeviche)

“Muito se enraizou na nossa cultura e nos próprios candomblés. Como por exemplo, seguir os calendários católicos de festas religiosas, a presença do povo de santo em missas, assim como padres nos terreiros, imagens de santos e práticas híbridas que ainda são mantidas em muitas manifestações afro-brasileiras. Vide as festas da Lavagem do Bonfim [Nosso Senhor do Bonfim] e de Iyemanjá (Nossa Senhora da Conceição), onde convivem os elementos de duas ou mais tradições”, ressalta.

Sincretismo religioso esbarra no racismo?

“Os orixás são divindades africanas, portanto, são negros. Nunca vi ninguém questionar a origem grega de Afrodite ou de Apolo. Mas, se dissermos que Iyemanjá, Oxalá e Xangô são pretos, há pessoas dizendo que orixá é energia, uma força da natureza e, portanto, não tem cor. Querem nos tirar até o direito de cultuarmos deuses negros, numa religião de matriz africana”, destaca Daniel Pereira.

Cláudia Alexandre salienta que o sincretismo religioso é um dos fenômenos que sempre vai apontar para um período não superado processo histórico brasileiro: a escravidão. Portanto, segundo ela, dentre os mecanismos de dominação utilizados para subjugar a população negra está a demonização das práticas tradicionais dos povos africanos.

“De certa forma, associar santos católicos aos orixás e divindades do panteão africano em algum momento da história serviu para diminuir a perseguição contra as práticas negras. Mas o racismo religioso e a intolerância contra as religiões de matrizes africanas fazem parte de uma estrutura”.

Embranquecimento dos orixás

Daniel destaca que falas como “orixá é energia” ou “orixá tem a cor que eu quiser” trazem em si um componente racista muito forte. Para ele, é necessário reconhecer que dizer que “orixá não tem cor” é, em outras palavras, afirmar que para uma divindade africana ser cultuada, “ela precisa ter a cor que o colonizador quer”. Um exemplo do que o líder religioso diz é a figura de Iyemanjá, personificada como uma mulher branca, de cabelos lisos e longos.

Créditos: Reprodução/Wikimedia CommonsCréditos: Reprodução/Wikimedia Commons

“A figura e devoção brasileira à Iyemanjá, a grande mãe das águas iorubá-nagô, traz elementos suficientes para o debate sobre sincretismo religioso, apropriação cultural, religiosidade popular e até de como as tradições são inventadas. A Iyemanjá do panteão africano representa o princípio feminino gerador de uma cultura e não há dúvidas que remete a uma mulher negra, assim como outros orixás são negros”, explica Claudia Alexandre.

Leia também: ‘Iyemanjá: a rainha que para uns é branca, para nós é pretinha’

No entanto, segundo ela, existe uma construção imagética da Iyemanjá no Brasil, a partir de uma junção de lendas e superstições – que vão desde associar a orixá às sereias – e se misturam às crenças indígenas, africanas e católicas.

“Embora não exista nenhuma santa católica com essa representação feminina, ela é associada à Nossa Senhora da Conceição. Da mesma forma que a mulher branca, de cabelos longos lisos e vestes sensuais não remete à imagem de nenhum orixá africano. Mas, sempre foi uma imagem constante dos altares afro-religiosos”, completa.

O branqueamento, e a aceitação dessa representação de Iyemanjá – que tem a devoção de pessoas de todas as religiões–, extrapola o entendimento sobre os efeitos do sincretismo, segundo a pesquisadora. No entanto, ela destaca que “se Iyemanjá é orixá, não há nenhuma dúvida: Iyemanjá é negra”.

Daniel Pereira finaliza dizendo que é necessária uma retomada da consciência racial e a descolonização das mentes dos adeptos ao candomblé para evitar que, a partir do sincretismo religioso, o racismo venha a desestruturar o culto aos orixás. “É leviano querer olhar o candomblé com lentes cristãs”, salienta.

“O uso da imagem de Iemanjá representada como uma mulher branca, de traços europeus e longos cabelos é muito popular. Mas não acho que seja necessário ainda nas casas de candomblé, já que essa imagem ocidentalizada da yabá [orixá feminino] tem raízes na opressão das religiões dos negros escravizados”.

Leia também: ‘Por que o candomblé sacrifica animais?’

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  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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