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Nas ruas, jovens ‘aboliram’ diferenças ‘por uma Nigéria melhor’, diz pesquisador nigeriano

17 de novembro de 2020

Ao longo do mês de outubro as ruas da Nigéria foram tomadas por uma juventude com sede de mudanças. O Alma Preta conversou com um pesquisador que vive no país africano para entender o espírito dos protestos e as consequências para o futuro do país

Texto: Redação | Imagem: Reprodução/Twitter

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O Esquadrão Especial Anti-roubo (SARS, na sigla em inglês), criado na Nigéria em 1992 para combater roubos e crimes sérios, é acusado de corrupção e prática de assassinatos extrajudiciais. Isso colocou o grupo no centro de protestos de massa contra a violência policial que a partir de 7 de outubro tomaram as ruas nigerianas e depois as redes sociais mundo afora com o slogan EndSARS. A situação se agravou quando 12 manifestantes foram mortos a tiros por forças de segurança em Lagos, no dia 20 de outubro – o que o governo nega. Desde o início, mais de 60 pessoas morreram nos protestos.

“Esse grupo [SARS] tem praticado todo tipo de crime, dentre eles estupro, extorsão, sequestro e muitos abusos de poder. A juventude resolveu se colocar contra isso. Foi aí que nasceu o #EndSARS”, explica Félix Ayoh’Omidire, professor titular na Universidade Obafemi Awolowo, em Ilê-Ifé, na Nigéria. O professor é também o atual diretor do Instituto de Estudos Culturais na universidade nigeriana.

Apesar do foco dos protestos ser o fim do esquadrão – encerrado pelo governo como resposta às manifestações -, a insatisfação que levou os nigerianos às ruas é abrangente. A República Federativa da Nigéria é um país que convive com crescimento rápido da população jovem, uma urbanização feroz e desigualdade social descontrolada.

O país africano também convive com tensões sociais e étnicas – principalmente entre Iorubás, Hausas e Igbos – e religiosas – muçulmanos e cristãos – e viveu um longo período de regimes militares intermitentes, ainda enraizados na política local. A Nigéria tornou-se independente do Reino Unido apenas em 1963 e a atual república data de 1999.

Para o pesquisador Félix Ayoh’Omidire, todo esse quadro político e social está presente nas ruas em meio aos protestos contra o SARS que, para ele, revelam a esperança de renovação que a população nigeriana almeja.

“Nossa expectativa é que esses protestos gerem, na verdade, uma mudança profunda na política do país, porque o controle da política do país está nas mãos de pessoas que não estão ligadas. Os nossos políticos são os mais corruptos, eles se arrogam salários mirabolantes”, aponta o professor demonstrando insatisfação.

Usando uma calculadora comparativa no site da BBC é possível confirmar que um senador nigeriano, somando benefícios, ganha anualmente, em dólares, um valor maior do que o salário do presidente dos EUA – US$ 400 mil por ano, segundo o site Fox Business. Uma estimativa de 2010 aponta que 70% da população nigeriana vive abaixo da linha da pobreza, apesar de o país ter um PIB de 1,2 trilhão em paridade de compra.

“O país precisa de uma mudança profunda de liderança, de ideologia e de rumo. Todo mundo acha que o país está sem rumo neste momento e que isso tem que mudar. Nossa expectativa é que essas manifestações acabem provocando uma mudança profunda no país, na política”, afirma.

Ayoh’Omidire recorda que as universidades públicas nigerianas estão em greve desde fevereiro contra o governo federal exigindo mais recursos. Esse é um dos elementos apontados como combustível para os protestos no país, uma vez que uma multidão de universitários está parada.

O professor de Ilê-Ifé avalia que a situação de precariedade contestada pelas universidades se espalha por todo o setor público. Para ele, nesse contexto os protestos contra o SARS confrontam o atual estado da política nigeriana, apesar de descartar que as ruas contestem diretamente os militares na Nigéria.

Para Félix, o protesto contra a força policial não se encerra aí e lembra da insatisfação dos jovens com o governo nigeriano, pois “o governo não consegue lidar com as necessidades da juventude e o país parece estar nas mãos de pessoas que estão fora da compreensão da situação nacional”.

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O pesquisador Félix Ayoh’Omidire. Foto: Acervo Pessoal

Herança militar e postura do presidente Buhari

Apesar da transição para um regime democrático em 1999, todos os presidentes nigerianos desde então são ex-militares. A atual república é a mais longa da história independente do país e todas as tentativas anteriores foram interrompidas por golpes militares. O atual presidente nigeriano, o major general Muhammadu Buhari, chegou a liderar um golpe militar no país e comandou a Nigéria entre 1984 e 1985.

Buhari é hoje membro do partido All Progressives Congress (APC) e ascendeu ao poder em 2015 com um discurso redentor e contra a corrupção, sendo reeleito em 2019. O APC, um partido considerado nacionalista, hoje controla as duas câmaras do Congresso nigeriano e tem como principal opositor o People’s Democratic Party (PDP), um partido liberal e conservador, que tem a segunda maior bancada legislativa da Nigéria e já elegeu três presidentes no país desde a democratização.

Para o professor Félix Ayoh’Omidire, a herança militar do governo não é o principal ponto de insatisfação das ruas. Apesar disso, o pesquisador reconhece que o presidente Buhari seja um símbolo das Forças Armadas do país e que o mandatário não se apresentou para dialogar e negociar com os manifestantes, uma postura “insensível”, aponta.

“Ele [Buhari] como presidente e comandante em chefe das Forças Armadas e que controla todos os recursos do país, tem se mostrado muito insensível. Aliás, muito ausente, porque até o último momento ele nem sequer se apresentou para conversar, para dialogar com os manifestantes”, afirma.
Ayoh’Omidire aponta ainda que o mandatário se apresenta como alguém que “não está no controle” e que a postura presidencial reforça entre os jovens uma visão negativa sobre políticos que, em geral, “são muito velhos”.

Ayoh’Omidire aponta ainda que o mandatário se apresenta como alguém que “não está no controle” e que a postura presidencial reforça entre os jovens uma visão negativa sobre políticos que, em geral, “são muito velhos”.

Em discurso realizado em 22 de outubro, anunciando o fechamento do SARS, Buhari reforçou uma postura autoritária criticando a continuidade dos protestos. O presidente também não citou os assassinatos de manifestantes em Lagos. Há poucos dias, o Departamento de Serviços do Estado nigeriano chegou a ordenar que o Banco Central da Nigéria congelasse as contas bancárias de 19 pessoas e uma empresa ligadas aos protestos. O jornal nigeriano Premium Times reporta ainda prisões, apreensão de documentos e perseguição contra manifestantes.

“Ele [Buhari] tem uma postura de alguém que não está no controle. Ele parece que está fora mesmo da realidade da Nigéria. E isso é o que vem reforçando para os jovens manifestantes que essa geração de políticos muito velhos não está servindo ao país. E ele é um exemplo. Ele parece um presidente cansado, ausente, impotente, sem nenhum poder real e às vezes até sem uma compreensão evidente dos assuntos do momento”, avalia.

Juventude deixou diferenças de lado para protestar

O quadro político nigeriano apresenta uma contradição entre a população jovem e urbana, e seus representantes políticos ligados ao passado militar e de uma faixa etária distante da maior parte da população.

A Nigéria, país mais populoso da África e também a maior economia africana, tem cerca de 70% de sua população de 214 milhões de pessoas abaixo dos 40 anos, sendo que 60% dos nigerianos tem menos de 24 anos e a média de idade do país é de 18,6 anos. Com isso, é possível afirmar que uma larga parcela da população passou praticamente a vida toda sob um regime democrático.

“Até hoje, até esse momento, o papel da juventude na política nigeriana é praticamente nulo. Porque se você olhar mesmo, entre os ministros que esse governo atual elegeu praticamente não tem ninguém com menos de 60-65 anos. […] E que estão completamente alheios às necessidades da grande maioria da população, que é formada pelos jovens, por essa juventude”, explica o professor universitário Félix Ayoh’Omidire.

O pesquisador nigeriano acrescenta que entre as reivindicações das ruas estão mudanças no sistema político como a instituição de um teto de idade para melhor representar a população nigeriana.

Para Ayoh’Omidire, os protestos mostram o nascimento de uma nova Nigéria, mais jovem e unificada e que sob a identidade nacional e a bandeira do fim do SARS colocou diferenças étnicas e religiosas de lado para reivindicar melhorias sociais e econômicas.

“O EndSARS como movimento nos mostrou que a juventude nigeriana se vê como juventude nigeriana mesmo. Eles não se deixam distrair com essas questões de origem étnica, diversidade étnica, religiosa e tal. Claro, antes da erupção do EndSARS havia mesmo […] determinados grupos querendo sair da Federação nigeriana. Mas desde que começou o EndSARS, os jovens aboliram tudo aquilo, são todos nigerianos e querem lutar para uma Nigéria melhor e nada de divisão Hausa e Iorubá, eles não querem saber”, diz.

Os dados demográficos e econômicos desta matéria foram retirados do CIA World Factbook e contêm estimativas realizadas pelo órgão estadunidense.

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