Ao longo do mês de outubro as ruas da Nigéria foram tomadas por uma juventude com sede de mudanças. O Alma Preta conversou com um pesquisador que vive no país africano para entender o espírito dos protestos e as consequências para o futuro do país
Texto: Redação | Imagem: Reprodução/Twitter
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O Esquadrão Especial Anti-roubo (SARS, na sigla em inglês), criado na Nigéria em 1992 para combater roubos e crimes sérios, é acusado de corrupção e prática de assassinatos extrajudiciais. Isso colocou o grupo no centro de protestos de massa contra a violência policial que a partir de 7 de outubro tomaram as ruas nigerianas e depois as redes sociais mundo afora com o slogan EndSARS. A situação se agravou quando 12 manifestantes foram mortos a tiros por forças de segurança em Lagos, no dia 20 de outubro – o que o governo nega. Desde o início, mais de 60 pessoas morreram nos protestos.
“Esse grupo [SARS] tem praticado todo tipo de crime, dentre eles estupro, extorsão, sequestro e muitos abusos de poder. A juventude resolveu se colocar contra isso. Foi aí que nasceu o #EndSARS”, explica Félix Ayoh’Omidire, professor titular na Universidade Obafemi Awolowo, em Ilê-Ifé, na Nigéria. O professor é também o atual diretor do Instituto de Estudos Culturais na universidade nigeriana.
Apesar do foco dos protestos ser o fim do esquadrão – encerrado pelo governo como resposta às manifestações -, a insatisfação que levou os nigerianos às ruas é abrangente. A República Federativa da Nigéria é um país que convive com crescimento rápido da população jovem, uma urbanização feroz e desigualdade social descontrolada.
O país africano também convive com tensões sociais e étnicas – principalmente entre Iorubás, Hausas e Igbos – e religiosas – muçulmanos e cristãos – e viveu um longo período de regimes militares intermitentes, ainda enraizados na política local. A Nigéria tornou-se independente do Reino Unido apenas em 1963 e a atual república data de 1999.
Para o pesquisador Félix Ayoh’Omidire, todo esse quadro político e social está presente nas ruas em meio aos protestos contra o SARS que, para ele, revelam a esperança de renovação que a população nigeriana almeja.
“Nossa expectativa é que esses protestos gerem, na verdade, uma mudança profunda na política do país, porque o controle da política do país está nas mãos de pessoas que não estão ligadas. Os nossos políticos são os mais corruptos, eles se arrogam salários mirabolantes”, aponta o professor demonstrando insatisfação.
Usando uma calculadora comparativa no site da BBC é possível confirmar que um senador nigeriano, somando benefícios, ganha anualmente, em dólares, um valor maior do que o salário do presidente dos EUA – US$ 400 mil por ano, segundo o site Fox Business. Uma estimativa de 2010 aponta que 70% da população nigeriana vive abaixo da linha da pobreza, apesar de o país ter um PIB de 1,2 trilhão em paridade de compra.
“O país precisa de uma mudança profunda de liderança, de ideologia e de rumo. Todo mundo acha que o país está sem rumo neste momento e que isso tem que mudar. Nossa expectativa é que essas manifestações acabem provocando uma mudança profunda no país, na política”, afirma.
Ayoh’Omidire recorda que as universidades públicas nigerianas estão em greve desde fevereiro contra o governo federal exigindo mais recursos. Esse é um dos elementos apontados como combustível para os protestos no país, uma vez que uma multidão de universitários está parada.
O professor de Ilê-Ifé avalia que a situação de precariedade contestada pelas universidades se espalha por todo o setor público. Para ele, nesse contexto os protestos contra o SARS confrontam o atual estado da política nigeriana, apesar de descartar que as ruas contestem diretamente os militares na Nigéria.
Para Félix, o protesto contra a força policial não se encerra aí e lembra da insatisfação dos jovens com o governo nigeriano, pois “o governo não consegue lidar com as necessidades da juventude e o país parece estar nas mãos de pessoas que estão fora da compreensão da situação nacional”.
O pesquisador Félix Ayoh’Omidire. Foto: Acervo Pessoal
Herança militar e postura do presidente Buhari
Apesar da transição para um regime democrático em 1999, todos os presidentes nigerianos desde então são ex-militares. A atual república é a mais longa da história independente do país e todas as tentativas anteriores foram interrompidas por golpes militares. O atual presidente nigeriano, o major general Muhammadu Buhari, chegou a liderar um golpe militar no país e comandou a Nigéria entre 1984 e 1985.
Buhari é hoje membro do partido All Progressives Congress (APC) e ascendeu ao poder em 2015 com um discurso redentor e contra a corrupção, sendo reeleito em 2019. O APC, um partido considerado nacionalista, hoje controla as duas câmaras do Congresso nigeriano e tem como principal opositor o People’s Democratic Party (PDP), um partido liberal e conservador, que tem a segunda maior bancada legislativa da Nigéria e já elegeu três presidentes no país desde a democratização.
Para o professor Félix Ayoh’Omidire, a herança militar do governo não é o principal ponto de insatisfação das ruas. Apesar disso, o pesquisador reconhece que o presidente Buhari seja um símbolo das Forças Armadas do país e que o mandatário não se apresentou para dialogar e negociar com os manifestantes, uma postura “insensível”, aponta.
“Ele [Buhari] como presidente e comandante em chefe das Forças Armadas e que controla todos os recursos do país, tem se mostrado muito insensível. Aliás, muito ausente, porque até o último momento ele nem sequer se apresentou para conversar, para dialogar com os manifestantes”, afirma.
Ayoh’Omidire aponta ainda que o mandatário se apresenta como alguém que “não está no controle” e que a postura presidencial reforça entre os jovens uma visão negativa sobre políticos que, em geral, “são muito velhos”.
Ayoh’Omidire aponta ainda que o mandatário se apresenta como alguém que “não está no controle” e que a postura presidencial reforça entre os jovens uma visão negativa sobre políticos que, em geral, “são muito velhos”.
Em discurso realizado em 22 de outubro, anunciando o fechamento do SARS, Buhari reforçou uma postura autoritária criticando a continuidade dos protestos. O presidente também não citou os assassinatos de manifestantes em Lagos. Há poucos dias, o Departamento de Serviços do Estado nigeriano chegou a ordenar que o Banco Central da Nigéria congelasse as contas bancárias de 19 pessoas e uma empresa ligadas aos protestos. O jornal nigeriano Premium Times reporta ainda prisões, apreensão de documentos e perseguição contra manifestantes.
“Ele [Buhari] tem uma postura de alguém que não está no controle. Ele parece que está fora mesmo da realidade da Nigéria. E isso é o que vem reforçando para os jovens manifestantes que essa geração de políticos muito velhos não está servindo ao país. E ele é um exemplo. Ele parece um presidente cansado, ausente, impotente, sem nenhum poder real e às vezes até sem uma compreensão evidente dos assuntos do momento”, avalia.
Juventude deixou diferenças de lado para protestar
O quadro político nigeriano apresenta uma contradição entre a população jovem e urbana, e seus representantes políticos ligados ao passado militar e de uma faixa etária distante da maior parte da população.
A Nigéria, país mais populoso da África e também a maior economia africana, tem cerca de 70% de sua população de 214 milhões de pessoas abaixo dos 40 anos, sendo que 60% dos nigerianos tem menos de 24 anos e a média de idade do país é de 18,6 anos. Com isso, é possível afirmar que uma larga parcela da população passou praticamente a vida toda sob um regime democrático.
“Até hoje, até esse momento, o papel da juventude na política nigeriana é praticamente nulo. Porque se você olhar mesmo, entre os ministros que esse governo atual elegeu praticamente não tem ninguém com menos de 60-65 anos. […] E que estão completamente alheios às necessidades da grande maioria da população, que é formada pelos jovens, por essa juventude”, explica o professor universitário Félix Ayoh’Omidire.
O pesquisador nigeriano acrescenta que entre as reivindicações das ruas estão mudanças no sistema político como a instituição de um teto de idade para melhor representar a população nigeriana.
Para Ayoh’Omidire, os protestos mostram o nascimento de uma nova Nigéria, mais jovem e unificada e que sob a identidade nacional e a bandeira do fim do SARS colocou diferenças étnicas e religiosas de lado para reivindicar melhorias sociais e econômicas.
“O EndSARS como movimento nos mostrou que a juventude nigeriana se vê como juventude nigeriana mesmo. Eles não se deixam distrair com essas questões de origem étnica, diversidade étnica, religiosa e tal. Claro, antes da erupção do EndSARS havia mesmo […] determinados grupos querendo sair da Federação nigeriana. Mas desde que começou o EndSARS, os jovens aboliram tudo aquilo, são todos nigerianos e querem lutar para uma Nigéria melhor e nada de divisão Hausa e Iorubá, eles não querem saber”, diz.
Os dados demográficos e econômicos desta matéria foram retirados do CIA World Factbook e contêm estimativas realizadas pelo órgão estadunidense.