Nos dias de trabalho, o porteiro Manoel de Sena, de 56 anos, pega o mesmo ônibus, no mesmo horário e no mesmo ponto da Estação da Lapa, no centro de Salvador, para ir ao trabalho no bairro da Barra, região rica da capital baiana.
Da comunidade onde mora, no bairro do Iapi, até o trabalho, Manoel percorre cerca de 13 quilômetros de distância e o trajeto, que antes era de uma hora, hoje em dia chega a quase duas horas por causa da exclusão da linha de ônibus 0413 – IAPI x Barra, que levava o porteiro direito ao seu destino final.
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“Eu pegava só um ‘buzu’ do Iapi para a Barra, durava 1h, por aí. Agora eu pego do Iapi para a Lapa, chegando na Lapa eu pego o LB1 para poder ir para a Barra. Eu gasto quase 2h”, explica Manoel.
A linha de ônibus que deixava o porteiro Manoel de Sena direito no trabalho é só uma das mais de 350 linhas que foram extintas em Salvador nos últimos anos. Confira aqui as linhas que foram excluídas.
De acordo com um levantamento feito pelo pesquisador Pablo Florentino, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), em conjunto com jornalistas do Observatório da Mobilidade Urbana de Salvador (ObMob Salvador), a maioria dos cortes ocorreu em bairros periféricos da cidade.
A falência das empresas de ônibus aliada com a integração dos coletivos com outros sistemas de transporte, a exemplo do BRT — veículo de transporte rápido implementado pela prefeitura —, tem sido apontada como um dos elementos que aceleraram o corte de linhas pela capital, segundo aponta o pesquisador da mobilidade urbana Daniel Caribé, um dos responsáveis pela campanha “Devolva meu Buzu”.
“Os cortes de linha estão se aprofundando na cidade e a prefeitura não consegue dar uma resposta a isso. Ao contrário, prefere priorizar o BRT e continua cortando linhas para ver se viabiliza o BRT enquanto um modal de transporte patrocinado pela prefeitura”, analisa.
‘Complicou para tudo quanto é lado’
Antigamente, era comum dizer que se você ficasse perdido por Salvador, bastava pegar um ônibus para a Lapa que você encontrava transporte para todos os cantos da cidade. No entanto, só nos últimos dez anos, a população soteropolitana perdeu quase 700 ônibus, sem a devida reposição.
Má qualidade dos coletivos, superlotação, insegurança e tarifas altas estão entre as reclamações mais frequentes de quem utiliza o transporte coletivo diariamente.
No bairro de Manoel de Sena, o porteiro citado no início da reportagem, os moradores chegaram a cogitar o custeio de uma van como forma de suprir a demanda dos ônibus no Iapi que, segundo o porteiro, agora só conta com três linhas.
“Complicou a gente para tudo quanto é lado. A gente estava até fazendo uma lista para botar outra linha, uma van, uma alternativa para melhorar o transporte para a gente porque o transporte lá tá complicado”, desabafa.
Transtornos
Era dia 30 de julho de 2024, às 5h da manhã, quando despertei da cama em um pulo. O banho foi breve. A alimentação? Uma banana que comi em menos de um minuto. Para quem precisava estar na Estação da Lapa, às 6h30, o tempo não é o maior aliado — ainda mais quando se mora em Itapuã, bairro a mais de 20 quilômetros de distância da Lapa e próximo à região metropolitana de Salvador.
Junto com a banana do meu café, engoli também o meu mau humor matinal, pois o destino até a Lapa tinha um propósito maior: ouvir as possíveis queixas de quem também sai de casa preparado para enfrentar uma maratona dentro dos ônibus. Se garantir o ônibus no horário fosse uma modalidade olímpica, o brasileiro já teria conquistado o primeiro lugar.
Para quem, assim como eu, só recebe a “alma” de volta ao corpo a partir das 8h da matina, sentir a correria provocada pelo público da Lapa me serviu melhor do que o despertador do meu celular.
A luta contra o tempo faz parte da rotina de quem teve que aprender a lidar com a exclusão das linhas de ônibus em Salvador.
No meio da multidão apressada na Estação da Lapa, Ana Matos, de 46 anos, estava com um semblante sereno de quem conseguiu, ao menos, passar pela “prova” do tempo para pegar o ônibus no horário.
Assim como o porteiro Manoel, a moradora do bairro Vasco da Gama também foi impactada com a extinção das linhas de ônibus.
No bairro onde mora, por exemplo, ela costumava pegar a linha 0430 – Pau Miúdo x Ondina para ir até o trabalho em uma escola no bairro da Liberdade, mas desde 2017 teve que remanejar toda sua rotina para descer na Estação e, da Estação, pegar outro coletivo para o trabalho.
“Antigamente eu levava de 20 a 25 minutos porque tinha a linha Pau Miúdo x Ondina, que foi retirada. Agora eu levo mais do que 40 minutos. E se eu perder esse daqui, só daqui há uma hora de relógio”, relata.
‘Buzu 0800’
O direito ao transporte está previsto pela Constituição Federal desde 2015, assim como o direito à alimentação, trabalho, educação e moradia. Movimentos e organizações sociais buscam pressionar o poder público em busca de pensar novas possibilidades para enfrentar a crise no transporte público de Salvador e garantir, de fato, o direito.
Em junho deste ano, o ObMob Salvador enviou para a Câmara Municipal de Vereadores uma proposta de projeto de lei que institui a Tarifa Zero e a Taxa de Transporte Público na cidade. Na prática, o projeto busca criar uma taxa de transporte público em substituição ao vale-transporte com objetivo de arrecadar, por ano, mais de R$ 1 bilhão para implementação da Tarifa Zero.
Integrante do ObMob, Daniel Caribé destaca a necessidade de adotar uma nova lógica para o transporte público.
“O transporte é o meio garantidor de outros direitos sociais e, portanto, da forma que ele representa hoje para população é um elemento de aprofundamento da desigualdade de gênero, racial e capacitista porque as pessoas com deficiência são as maiores estigmatizadas por conta do sistema precário de transporte público junto com as pessoas idosas”, avalia.
Qual o novo caminho para mobilidade de Salvador?
Com a aproximação das eleições municipais de 2024, a situação sobre o transporte público da capital baiana volta a ser um dos principais pontos a serem debatidos pelos candidatos à prefeitura de Salvador.
Os principais nomes que lideram na disputa são Bruno Reis (União Brasil), Geraldo Júnior (MDB), vice-governador da Bahia; e Kleber Rosa (PSOL).
Só na gestão do atual prefeito e candidato à reeleição, Bruno Reis (União Brasil), Salvador perdeu mais de 100 linhas de ônibus nos últimos quatro anos, de acordo com dados do ObMob.
Para este ano, a proposta de Reis é “expandir” e “modernizar” o transporte público, reduzir o tempo de deslocamento dos usuários dos coletivos e implantar um corredor de ligação da Orla à Cidade Baixa da cidade.
A promessa dos ônibus climatizados é feita desde 2012, durante a gestão do ex-prefeito ACM Neto, que tinha Bruno Reis como vice. No entanto, os veículos só passaram a circular em 2019 e a previsão da atual gestão é adotar uma frota 100% climatizada até 2028.
Já dentre as propostas do vice-governador da Bahia, Geraldo Júnior (MDB), estão o redesenho das linhas de ônibus e a implantação da chamada “tarifa justa”.
A proposta busca fazer uma transição para a “tarifa zero”, um modelo baseado em estudos para garantir a viabilidade de um novo sistema de financiamento do transporte público de Salvador.
À Alma Preta, o candidato informou que planeja readequar as frotas com a devolução das linhas tradicionais que foram retiradas dos bairros sem qualquer avaliação dos usuários.
“Não estamos falando aqui das linhas concorrentes, o metrô tem o papel dele e vai continuar sendo fundamental para melhorar a trafegabilidade da cidade. Estamos falando das linhas que permitem uma integração mais rápida e, principalmente, daquelas que, de alguma forma, são as únicas alternativas para quem precisa se deslocar para determinadas áreas da cidade”, pontua Geraldo Júnior.
O candidato pelo PSOL, cientista social e ativista Kleber Rosa também traz na sua proposta de governo a reativação das linhas e o planejamento das rotas a partir das demandas da população.
A revisão dos custos e contratos de concessão do transporte público estão entre as prioridades do plano de governo de Kleber Rosa para garantir uma maior transparência às contas públicas.
Também fazem parte do programa a luta pela constituição nacional do Sistema Único de Mobilidade (SUM) e a implementação gradual da “Tarifa Zero” que, segundo o candidato, já é uma realidade em mais de 100 cidades do país e favorece “através do direito ao transporte, o acesso à saúde, educação, trabalho e lazer”.
Ter um tempo de lazer com a mãe era tudo o que Cleber Santos, de 39 anos, mais queria. Morador do bairro da Itinga, região metropolitana de Salvador, antigamente ele costumava visitar a mãe no trajeto para o trabalho, mas por causa da suspensão dos coletivos metropolitanos em Salvador ele passou a se contentar com a saudade apenas pela janela do ônibus.
“Eu costumava passar na casa de minha mãe no bairro da Federação. Como eu ‘tô’ morando com a minha esposa em Itinga eu tenho que passar direto e não visitar minha mãe”, diz.
Em maio deste ano, a empresa de transporte metropolitano Costa Verde anunciou a suspensão de três linhas de ônibus em Salvador e em Lauro de Freitas, região metropolitana. Além da Costa Verde, a empresa Avanço, também havia anunciado o fim do serviço.
Na época, as empresas alegaram que a suspensão se deu diante de dificuldades financeiras, alto custo com pedágio, falta de licitação do transporte metropolitano, entre outros fatores.
Para quem vive o “intercâmbio” entre os sistemas de transporte coletivo, a viagem é longa e a classe é sempre econômica. Para chegar no trabalho às oito horas, por exemplo, Cleber Santos já começa a “trabalhar” quatro horas antes do início do expediente.
“Eu tenho que esperar os ônibus que vem de outro bairro – e já chega cheio -, para ir até a estação Aeroporto, descer, pegar o metrô e depois pegar outro buzu. É o maior ‘arrodeio'”, desabafa.