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Empresário que matou jovens atropeladas no Pará garante acordo após testemunhas mudarem depoimento sobre embriaguez

Giovanni Maiorana dirigia em alta velocidade quando colidiu com outros veículos e acabou vitimando duas jovens
Colagem reúne diferentes registros de Giovanni Maiorana. Em um deles, o empresário aparece ao lado do governador do Pará, Helder Barbalho.

Foto: Reprodução/Redes sociais

11 de setembro de 2024

Resumo da Notícia

    • Caso ocorreu em setembro de 2018; Giovanni Maiorana não passou 24 horas preso

    • Testemunhas chegaram a relatar embriaguez do empresário, mas mudaram as versões posteriormente

    • Maiorana foi beneficiado por um acordo que garante que ele não será preso, desde que ele cumpra as condições impostas pela justiça

Por que é importante saber disso? Giovanni Maiorana é, atualmente, parceiro do governo do Pará em obras que impactam o estado. Recentemente, seu grupo empresarial, o Grupo Roma, obteve a concessão de um prédio para construir um hotel de luxo para a COP-30, evento da ONU sobre mudanças climáticas, considerado o mais importante do planeta no tema, que ocorrerá em Belém, em novembro de 2025. Empresário é herdeiro de um dos principais grupos de comunicação da Região Norte do país.

Era a madrugada do dia 27 de setembro de 2018, quando as amigas Gabriela Costa, 19, e Kinberly Guedes, 20, saíam de uma boate, em Belém (PA). Mas enquanto as jovens entravam em um táxi, o veículo foi atingido em um trágico acidente causado por um carro de luxo, em alta velocidade. 

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Gabriela, que estava grávida, foi arremessada violentamente e morreu no local. Ela deixou um filho de quatro anos.

Kinberly também foi atingida e chegou a ser socorrida, mas não resistiu aos ferimentos. A jovem trans morreu poucas horas depois do acidente, em um hospital. O laudo de ambas apontou a causa da morte como hemorragia interna devido a politraumatismo em razão do atropelamento.

Os laudos de Gabriela Costa e Kinberly Guedes apontou a causa da morte como hemorragia interna devido a politraumatismo em razão do atropelamento. (Reprodução/Redes sociais)

Outros dois taxistas foram feridos e hospitalizados. O mais grave, Carlos*, teve a perna quebrada, com fratura exposta, e escoriações em diversas partes do corpo. Além das vítimas, os danos materiais se estenderam a pelo menos outros quatro táxis, principais fontes de renda das famílias.

O causador do acidente e condutor do carro de luxo foi Giovanni Ricardi Chaves Maiorana, uma figura ilustre de Belém, herdeiro de um dos principais grupos de comunicação da Região Norte, membro de uma das famílias que fazem parte da elite econômica e política local e empresário. 

Maiorana precisou ser abrigado para não ser alvo da revolta de populares. Com a chegada da polícia, os agentes constataram que o empresário apresentava “visíveis sinais de embriaguez” – suspeita relatada também por dois taxistas. Além disso, no interior do jeep compass dirigido por Giovanni foram encontradas latas e garrafas de bebidas alcoólicas. 

Para reforçar a suspeita de embriaguez ao volante, publicações nas redes sociais mostraram o empresário em um bar, horas antes do acidente, ao lado de Gominho, ex-participante do reality show “A Fazenda”. Um dos vídeos publicado pelo famoso mostra Giovanni Maiorana segurando um copo com bebida identificada nas próprias imagens como “cachaça de jambu”.

Apesar dos indícios, Giovanni não passou nem 24 horas na cadeia, nunca foi denunciado pelo Ministério Público e não foi julgado. No final de 2023, foi beneficiado por um acordo que prevê que ele não será punido pelo crime, desde que cumpra as condições impostas pela justiça. O acordo foi celebrado depois que testemunhas mudaram o depoimento sobre a embriaguez do empresário.

Hoje, vice-presidente do Grupo Roma, Giovanni Maiorana é bem relacionado na política estadual. Só em 2024, já foram duas grandes parcerias entre o governador Helder Barbalho (MDB) e o Grupo Roma: a realização do mega evento junino Parárraia e a cessão de um prédio da Receita Federal ao Grupo Roma para a construção de um hotel de luxo para a COP-30.

Testemunhas relataram embriaguez de Giovanni, mas mudaram depoimentos anos depois

Na manhã do dia 27 de setembro de 2018, poucas horas depois do acidente, Giovanni Maiorana foi autuado em flagrante por homicídio culposo e lesão corporal culposa – quando não há a intenção de cometer o crime. Segundo o Boletim de Ocorrência registrado por policiais militares, ele apresentava “visíveis sinais de embriaguez”

“Odor etílico, olhos avermelhados e voz embargada”, descreveu o sargento da PM, Raimundo Nonato Ferreira dos Santos. O argumento foi sustentado por outras duas testemunhas, taxistas, que também tiveram seus veículos danificados.

Gilberto de Jesus narrou à polícia os mesmos sinais descritos pelo sargento. Já Marcos Teotonio, que inclusive prestou socorro a Giovanni depois do acidente, disse que o veículo dirigido pelo empresário vinha “desgovernado e em alta velocidade” e confirmou a suspeita de embriaguez ao volante, afirmando que Maiorana estava “andando de forma cambaleante”. 

Giovanni Maiorana também foi interrogado, mas ficou calado. Apesar dos depoimentos das testemunhas inicialmente concordarem sobre o estado alcoólico alterado do empresário, um teste clínico apontou que “o periciando não se encontra em estado de embriaguez, no momento do exame”. 

Para corroborar com o resultado do teste, em junho de 2022, três anos e nove meses depois do acidente fatal, os dois taxistas mudaram a versão sobre o estado alcoólico de Giovanni Maiorana, sem maiores explicações e sem serem questionados por isso. 

Gilberto disse que “não pode dizer se o mesmo [Giovanni] estava embriagado, dado que a preocupação principal no momento do fato era com as vítimas”. Já Marcos afirmou que “não identificou sinais de embriaguez” e, ainda, que “não viu” a velocidade que Giovanni vinha no momento em que causou o acidente. Os dois ainda reforçaram que Maiorana reparou os prejuízos provocados na colisão.

A mudança na versão dos depoimentos não foi questionada pela justiça paraense. Já o Ministério Público, por meio do promotor Samir Tadeu Moraes Dahás Jorge, da 4ª Promotoria de Justiça do Tribunal do Júri, caracterizou como “curiosa” a mudança da versão, mas não solicitou novas diligências.

O argumento e o exame clínico negativo de embriaguez foram algumas das bases que fundamentaram o entendimento de que o crime se tratava de homicídio culposo e lesão corporal culposa, o que permitiu a proposta do acordo.

A reportagem tentou contato com as duas testemunhas do crime por telefone para questionar o porquê da mudança no depoimento, mas não obteve retorno do número que seria de Marcos Teotonio.

Já Gilberto chegou a atender, mas quando questionado sobre a mudança no depoimento encerrou a chamada. Mais tarde, Gilberto entrou em contato via WhatsApp e explicou que a ligação “caiu”. Sobre o caso, declarou que “nem lembrava mais [do caso], já tem tempo” e ainda “não tenho mais nada a falar”.

Giovanni Maiorana não passou nem 24 horas preso

Giovanni Maiorana foi solto horas depois de ter sido preso em flagrante. Na audiência de custódia, realizada na tarde de 27 de setembro, o juiz Heyder Tavares da Silva Ferreira, da 1ª Vara de Inquéritos Policiais e Militares, concedeu ao empresário liberdade mediante fiança de R$ 500 mil e medidas cautelares. Para o juiz, “restaram dúvidas” quanto ao estado de embriaguez” de Giovanni. 

Em recurso, o promotor de Justiça, Luiz Márcio Teixeira Cypriano, da 2ª Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial, pediu que o juiz revertesse a decisão e determinasse prisão preventiva para Giovanni Maiorana ou o reforço da fiança para R$ 5 milhões.

Ele questionou a coerência do juiz na aplicação dos precedentes judiciais e argumentou que Heyder Tavares já havia decidido pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva em casos semelhantes ao de Giovanni. Cypriano afirmou que a decisão compromete a “segurança jurídica” do sistema judiciário. 

“Outros réus, diante das mesmas circunstâncias fáticas, estão presos; e qual a razão de mantê-los presos, se o juízo (…) modificou seu entendimento, comprometendo a segurança jurídica em casos análogos?”, provocou o promotor.

Sobre as dúvidas levantadas pelo juiz acerca da embriaguez de Giovanni, o promotor lembrou que quatro testemunhas afirmaram, em depoimento, que o indiciado estava com “visíveis sinais de embriaguez”. Segundo Cypriano, o Código de Trânsito Brasileiro considera o depoimento de testemunhas como prova para embriaguez ao volante.

Para uma advogada consultada pela Alma Preta, o julgamento do juiz sobre o estado alcoólico de Giovanni Maiorana desconsiderou os depoimentos das testemunhas e os demais documentos juntados até aquele momento ao processo, em benefício do autor dos homicídios.

“O simples fato do exame para detectar influência de álcool ser negativo não é suficiente para formar a decisão em casos como este, sobretudo quando existem outros meios de provas, como os documentos que o MP juntou nos autos, as mídias digitais e os depoimentos de testemunhas”, enfatizou a advogada e pesquisadora Dina Alves.

No caso de Giovanni Maiorana, o depoimento do próprio sargento da PM que atuou na ocorrência foi desconsiderado pela justiça paraense, mas, para Dina Alves, o entendimento seria diferente se o alvo do processo fosse uma pessoa negra e de periferia. 

“A palavra dos policiais tem fé pública e nunca é desconsiderada em casos de processos criminais em que a população negra é objeto da persecução penal”, ressalvou.

Família sofreu com a impunidade de Giovanni Maiorana

Nos anos seguintes, o promotor Aldir Jorge Viana da Silva atuou no sentido de sustentar que o crime se tratava de homicídio doloso, isto é, que Giovanni matou as duas jovens de forma intencional, já que ele assumiu esse risco ao dirigir embriagado, e que deveria ser julgado pelo Tribunal do Júri. 

Enquanto isso, a justiça paraense revogava as medidas cautelares, considerando o “compromisso [de Giovanni] com a instrução criminal” e sua “conduta (…) de minimizar as consequências de seu ato”, como destacou o juiz Heyder Tavares da Silva Ferreira ao suspender duas das condições.

Por outro lado, os advogados particulares da mãe de Gabriela, vítima fatal do acidente, buscavam chamar atenção para o sofrimento da família na espera do devido andamento do processo e de uma possível responsabilização criminal de Giovanni Maiorana.

“A família sofre muito com a morte da jovem filha, provocada pelo irresponsável motorista que dirigia em alta velocidade e embriagado. Sofre mais ainda pela demora na prestação jurisdicional”, diz um trecho de requerimento direcionado à 1ª Vara de Inquéritos Policiais de Belém.

O documento ainda destacava que Giovanni era uma “pessoa de alto poder aquisitivo e de grande notoriedade na sociedade local, o que compromete a credibilidade da justiça se houver demora não justificável no seu andamento”, completa o texto datado de 13 de dezembro de 2018.

Um ano e nove meses depois da tragédia, em 16 de julho de 2020, o escritório de advocacia voltou a apelar para que o andamento do processo fosse retomado: “Sequer foi oferecida denúncia, estando os autos, desde janeiro de 2020, ainda para decidir qual o foro competente”, diz a petição.

De acordo com o documento, a defesa de Giovanni Maiorana ainda se recusava a fazer um acordo de indenização, sob a alegação de que iria esperar a conclusão do processo.

A Alma Preta foi até o endereço dos familiares das vítimas fatais do acidente, Gabriela e Kinberly, em um bairro da periferia de Belém, e também tentou contato por telefone, mas não foi atendida. No caso de Gabriela, o irmão da vítima afirmou que a família não dá declaração sobre o assunto.

Com o aval da Procuradoria-Geral de Justiça, juíza homologou acordo que garante que empresário não será preso

As discussões acerca da tipificação do crime – homicídio e lesão corporal culposa ou dolosa – e qual a vara competente para julgar o caso continuaram até junho de 2022, quando os dois dos taxistas, que anteriormente tinham confirmado a embriaguez de Giovanni Maiorana, mudaram a versão sobre o estado alcoólico do empresário. 

Depois disso, o promotor de Justiça do Tribunal do Júri, Samir Tadeu Moraes Dahás Jorge, concluiu que a conduta de Giovanni Maiorana não foi intencional. O promotor disse que, com as novas declarações, assim como com o depoimento do investigador Benedito Rodrigues, não há “nenhuma razão para ao menos desconfiar que o laudo de exame clínico de embriaguez do IML não esteja correto”.

O promotor ainda destaca que “mesmo se estivesse embriagado”, isso não significaria que Giovanni agiu de forma consciente e intencional para matar duas pessoas. “Será que toda pessoa que bebe e dirige sempre age com indiferença quanto ao resultado danoso? Acreditamos que não”, declarou.

Além disso, aponta que a conclusão da perícia mostra que Giovanni Maiorana tentou evitar a colisão, desviando de um dos veículos. Ele ainda disse que a tragédia não iria ocorrer “caso os veículos parados em fila dupla estivessem estacionados de forma regular”.

O resultado é que no dia 14 de dezembro de 2023, com o aval do procurador-geral de Justiça, César Bechara Mattar, a juíza Blenda Nery Rigon Cardoso, da 2ª Vara Criminal de Belém, homologou o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).

O acordo, proposto pela promotora de Justiça Criminal, Sandra Fernandes de Oliveira Gonçalves, garantiu que Maiorana não seria punido pelo crime desde que cumprisse medidas, como a destinação de R$ 200 mil a entidades relacionadas com acidentes de trânsito.

Entre os termos do acordo, ainda estavam: a prestação de contas da assistência dada aos familiares das vítimas do atropelamento, assim como aos demais atingidos; a presença de Giovanni em curso de direção do veículo automotor; e o comparecimento perante o juiz trimestralmente, no período de um ano, para a apresentação de documentação que comprove o cumprimento dos compromissos assumidos no ANPP.

Segundo os termos do ANPP, o acordo é oferecido a pessoas que confessaram o delito e que não possuam antecedentes criminais, com infrações consideradas sem violência ou grave ameaça – o que, no entendimento compartilhado pela juíza e pelo Ministério Público, foi o caso do acidente provocado por Giovanni Maiorana.

Para Dina Alves, porém, o ANPP não cabe ao caso de Giovanni. “Estamos falando de um caso com diversas vítimas, sendo duas fatais. Todas as provas indicam que o caso está configurado como homicídio doloso, que deveria ter sido processado e julgado pelo Tribunal do Júri. Mas, ao invés disso, Maiorana foi beneficiado”, avalia. 

“Os caminhos inversos sobre quem é a vítima e quem é o culpado se estabelecem no abandono judicial às famílias, que receberam um ‘cala a boca’ em acordos extrajudiciais e, do outro lado, um poder judiciário que garantiu a proteção e o zelo ao nome do homicida, com a devida benção do procurador-geral de Justiça”, conclui Alves.

Quem é Giovanni Maiorana?

Vice-presidente do Grupo Roma, Giovanni Ricardi Chaves Maiorana é filho de Romulo Maiorana Júnior. O Grupo Roma mantém empreendimentos como a Roma Incorporadora, a Roma Eventos, o portal Roma News e o luxuoso hotel Radisson.

Elite empresarial local, bem relacionado com o governo do Pará, o Grupo Roma obteve a concessão de um prédio federal para construir um hotel cinco estrelas para a COP-30. No último dia 10 de julho, o próprio Giovanni Maiorana assinou junto ao governador Helder Barbalho a cessão do prédio ao Grupo Roma.

Giovanni Maiorana celebrou junto ao governador Helder Barbalho cessão de um prédio da Receita Federal ao Grupo Roma para a construção de um hotel de luxo para a COP-30. (Marco Santos/Ag. Pará)

Já a Roma Eventos é, hoje, um dos fieis prestadores de serviços do Estado, sendo, recentemente, a principal responsável pelas atrações nacionais do evento “Parárraiá 2024”, o primeiro megaevento junino do governo estadual, realizado de 13 a 16 de junho, no Estádio Mangueirão.

Romulo Maiorana Júnior é irmão de Ronaldo Maiorana, presidente do Grupo Liberal, que detém, entre suas empresas de comunicação, o jornal O Liberal, o portal OLiberal.com e a TV Liberal, afiliada da Globo em Belém. O grupo foi fundado pelo pai de Ronaldo e Romulo Júnior, Romulo Maiorana, mas os irmãos estão publicamente rompidos há anos.

A reportagem buscou o jurídico de Giovanni Maiorana, assim como o Ministério Público do Estado do Pará para comentar as declarações. O espaço continua aberto. Já o Tribunal de Justiça do Estado do Pará também recebeu os questionamentos, mas apresentou apenas as últimas decisões do processo.

Foram utilizados nomes fictícios das vítimas de lesão corporal, que não tiveram seus nomes amplamente divulgados, para evitar maiores exposições e o prolongamento da dor dos familiares.

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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