Vera Lúcia da Silva Santos, conhecida como Tia Vera, fundou em 1992 uma associação em uma das regiões mais pobres da Zona Sul e que hoje atende mais de 2 mil crianças e adolescentes; após mais de um mês desaparecida, o corpo da liderança foi encontrado carbonizado
Texto: Juca Guimarães | Edição: Nataly Simões | Imagem: Reprodução/TV Globo
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No começo da década de 1990, o jardim Auri Verde, na região de Varginha, Extremo Sul de São Paulo, era um aglomerado de ruas de terra batida e quase sem infraestrutura do Estado. Essa era a realidade de diversos bairros da região na época. Foi lá que um grupo de moradores liderados pela empregada doméstica Vera Lúcia da Silva Santos fundou a associação Aury Verde, que ao longo dos anos passou a se chamar ONG Auri Verde.
No dia 18 de julho, o corpo de Vera foi encontrado carbonizado dentro do porta-malas do próprio carro. A líder comunitária estava desaparecida e a última vez que ela foi vista com vida foi no dia 16 de julho, por volta das 10h, quando saiu da sede da ONG. O Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) investiga quem são os assassinos e qual a motivação do crime.
Tia Vera, como ficou conhecida, tinha 64 anos de idade e era uma grande referência e liderança comunitária na região do Grajaú. Desde a organização do mutirão para construir a primeira sede da Auri Verde até os projetos de parceria com a Prefeitura e diversas empresas privadas. O filho da líder, Edson Passos, conta que a ONG surgiu para suprir uma necessidade de moradia das famílias que viviam nas áreas de mananciais entre as represas Guarapiranga e Billings. Depois, surgiram outras demandas educacionais e culturais para crianças e adolescentes pobres.
“Os moradores corriam risco de perder suas casas e a organização nasceu da luta por moradia. Uma vez resolvida essa questão junto aos órgãos públicos, surgiram outras questões como a necessidade de educação infantil e cultura e lazer para os jovens, com aulas de capoeira, hip hop e também cursos profissionalizantes. Minha mãe acreditava muito no potencial do indivíduo e a Auri Verde tinha na sua essência a adaptação às necessidades da comunidade”, explica.
Incentivado pela mãe, Passos começou a dar aulas para crianças e adolescentes no local e depois para adultos que buscavam se alfabetizar. “Minha mãe me dizia: ‘ninguém é tão novo que não possa ensinar alguém’. Eu comecei a dar aulas na sede e comecei a entender na prática o papel dela naquele espaço. Eu participei de muitas histórias da organização ao lado dela e juntos também passamos muito perrengues”, recorda.
O filho da líder comunitária lembra que nos anos 90 ela participava de reuniões de uma instituição a fim de buscar apoio para os projetos na periferia e que em um dado momento ela comunicou que não poderia mais participar porque o tempo que levava para participar dos encontros a comprometia com as atividades assistenciais. “Um dia ela chegou em uma das reuniões e disse que não participaria mais porque não tinha dinheiro nem tempo. Ela disse ‘vou deixar uma panela vazia e uma colher de pau aqui para vocês se lembrarem de onde eu estou, que é atrás de comida para as crianças da creche’.”, relata Passos.
No dia seguinte, o presidente da instituição foi até à comunidade onde Vera atuava e firmou uma parceria, com uma doação de 200 mil reais para a Auri Verde. O dinheiro foi usado para a construção da sede da ONG.
A organização da líder comunitária levantou seis creches para crianças de zero a três anos, um centro comunitário, um centro para crianças e adolescentes de seis a 14 anos e uma escola. Ao todo, atualmente, a ONG conta com 130 colaboradores, que atendem mais de 2 mil crianças e suas famílias, inclusive durante a pandemia da Covid-19, o novo coronavírus.
Segundo relatos de amigos, Vera também cozinhava e a feijoada dela fazia sucesso nos eventos da AurI Verde. Ela também era uma articuladora e fomentadora de políticas públicas. Em 9 de maio, ela conduziu uma live para discutir sobre o futuro das organizações sociais em tempos de isolamento social.
Tia Vera nasceu na cidade de Taperoá, na Bahia, em 1956. Perdeu a mãe aos três anos de idade e foi adotada por uma família. No início da década de 1970, ela se mudou para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica.
No velório, amigos e parentes distribuíram saquinhos de sementes e uma foto da Tia Vera como forma de homenagem e agradecimento pelo trabalho que mudou a vida de milhares de famílias durante mais de 30 anos. A liderança comunitária deixou cinco filhos.
O Alma Preta procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) e questionou a evolução da investigação sobre o assassinato da vítima. Até a publicação deste texto, o órgão vinculado ao governo estadual não se posicionou.