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Mulher sofre aborto após ser intoxicada por agrotóxico em quilombo no Pará

O despejo irregular do veneno ocorre nos arrozais de fazendas sobrepostas à área de ocupação tradicional em Salvaterra, no Marajó
Registro mostra reunião entre órgãos e comunidades quilombolas de Salvaterra.

Foto: Divulgação/Hugo Sampaio/Ascom Defensoria Pública do Pará

17 de abril de 2024

Uma mulher sofreu um aborto espontâneo dias depois de ser intoxicada por agrotóxico no quilombo da Providência, município de Salvaterra, no Arquipélago do Marajó (PA). O caso ocorreu em março deste ano e foi relatado à Defensoria Pública do Estado do Pará na semana passada, durante vistoria nas comunidades da região.

Moradores explicaram que o aborto ocorreu sete dias após a contaminação. Segundo a comunidade, o despejo irregular do veneno ocorre nos arrozais de fazendas que estão sobrepostas à área de ocupação tradicional. As denúncias apontam que a pulverização de agrotóxico ocorre a cada dez dias. 

As fazendas são pertencentes a José e Joabe Dauzacker Marques, representantes da empresa Salvaterra Alimentos, fabricante da marca de arroz “Salvaterra”. Os ministérios públicos Federal (MPF) e do Pará (MPPA) já pediram a suspensão do cultivo dos arrozais por irregularidades no registro das fazendas e no licenciamento ambiental.

José Marques, um dos proprietários das fazendas de arroz que despejam agrotóxico no município de Salvaterra. (Thiago Gomes/Agência Pará)

Foi relatada uma série de impactos à saúde dos quilombolas em decorrência do uso de agrotóxico. Durante a aplicação do veneno, são registrados quadros de desmaios, vômitos, dores de cabeça, coceiras e problemas respiratórios entre a comunidade. Os moradores também reclamam da falta de regularidade no serviço de testagem toxicológica.

Os danos ainda ocorrem no âmbito do modo de vida das famílias, do meio ambiente e das violações a direitos humanos. Além do quilombo da Providência, outras quatro comunidades também receberam a comitiva liderada pela Defensoria Pública estadual, são elas: Deus Ajude, Paixão, Boa Esperança e Rosário.

Ao todo, existem 17 comunidades quilombolas no município de Salvaterra que já pediram a titulação de terra junto ao Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas sem resposta. Segundo dados do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) de 2022, o Pará tem 125 áreas remanescentes de quilombos no Pará, mas apenas 62 são tituladas.

Moradores denunciam truculência dos fazendeiros

Desde 2010 os arrozais se expandem sobre as terras quilombolas no Marajó, expropriando famílias inteiras. O resultado é que áreas que tradicionalmente pertenciam aos comunitários passaram a ser de propriedade das fazendas, impactando as atividades de subsistência, como agricultura familiar, criação de animais, pesca e caça para consumo próprio. 

Até mesmo um cemitério informal está na área invadida pelos fazendeiros, que agora impedem o acesso dos moradores com segurança armada. Um morador do quilombo da Providência afirmou que foi agredido com um tapa por um segurança das fazendas e que teve uma arma apontada em sua direção. 

A truculência ainda se estende aos animais criados pelas famílias. Durante a reunião, houve relatos de que mais de 30 porcos domésticos foram mortos a tiros ao adentrar as fazendas para se alimentar. Diante do quadro, a comunidade vive com a sensação de que “teve seu lar cercado”.

“De uns três anos para cá não tivemos mais paz. Somos perseguidos de todos os jeitos, ameaçados de morte, intoxicados com agrotóxico. O próprio segurança da fazenda me ameaçou, tiraram nossas roças e o nosso direito de ir e vir. Não temos mais a colheita do açaí. Nem velar nossos mortos podemos mais. A vida aqui não está fácil”, lamenta um morador, que teve a identidade preservada por segurança. 

Os impactos ambientais também são sentidos. Isso porque, para plantar arroz, uma área das fazendas foi desmatada, o que provocou o desaparecimento de espécies de árvores, como é o caso dos bacurizais. De acordo com os relatos, há ainda desvios de cursos d’água e contaminação dos rios em razão do uso do agrotóxico. 

Além disso, veículos pesados utilizados para transportar a produção causam danos à estrada utilizada pelas famílias e trazem perigo sobretudo às crianças que transitam pela via rumo à escola, que também fica nas proximidades da pista.

Falta de titulação aumenta vulnerabilidade das comunidades

Parte das violações já foram registradas de modo formal, inclusive com decisões favoráveis às comunidades. Em 2023, a Vara Agrária de Castanhal impugnou a construção irregular de uma estrada que atravessaria o quilombo do Rosário para o escoamento da produção das fazendas. Mas, sem a devida ação dos órgãos competentes, seja para fiscalizar ou na aplicação de punições, os transtornos continuam.

“Nós estamos à mercê de muitas violações e invasões, porque os órgãos não conseguem punir os invasores e a maioria das denúncias não foi solucionada. Ficamos impotentes e as nossas vidas ficam nas mãos dos invasores”, diz trecho de carta assinada pela Associação Comunitária de Remanescentes de Quilombo de Rosário e entregue à Defensoria Pública.

A mesma carta conclui que “tudo isso também ocorre porque não temos nosso território titulado”. No documento, a comunidade pede “celeridade do processo de titulação junto ao Incra e o título coletivo quilombola definitivo ao Território Quilombola do Rosário” para assegurar o “direito ao território”. 

Hilário Moraes, liderança quilombola do Marajó e coordenador de Articulação da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), acredita que a falta de titulação aumenta a vulnerabilidade das famílias. “O título, apesar de ser um pedaço de papel, garante a salvaguarda e a reprodução humana da sociedade quilombola”, dispara.

“O fato de nenhum dos 17 territórios ter titulação definitiva deixa um ar sombrio, porque ficamos vulneráveis àqueles que têm a ‘coroa do colonialismo’. Existem territórios que pela falta de titulação perderam 80, 90% de sua área e a comunidade fica restrita em uma cerca, sem poder adentrar rios, igarapés, sem poder plantar, caçar, coletar frutos”, diz o diretor da Malungu. 

“Então nós nos sentimos ainda escravos, porque somos tolhidos de muita coisa e, quando queremos ir e vir, temos que ter a permissão do senhor branco, do dono da fazenda, do senhor do arrozal e fazer o que eles querem”, protesta Moraes. 

Defensoria Pública liderou comitiva em Salvaterra

A vistoria, realizada pelo Núcleo das Defensorias Públicas Agrárias e Núcleo Regional do Marajó da Defensoria Pública do Pará, ocorreu nos últimos dias 10 e 11 de abril. Participaram da comitiva representantes da Prefeitura de Salvaterra, do Governo do Estado, da Polícia Civil, da Assembleia Legislativa do Pará e do Governo Federal.

O objetivo foi realizar a oitiva das comunidades e vistoriar áreas, com a possibilidade de atuação por diversas instituições, para apuração dos fatos e adoção de medidas. Além disso, foi realizada uma ação de saúde pela Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), com consultas médicas e exames.

Após a visita, a Defensoria tomou uma série de medidas administrativas para exigir das autoridades atenção ao cenário dos quilombolas de Salvaterra. De modo emergencial, a instituição expediu uma recomendação à Prefeitura de Salvaterra na quarta-feira (17), para que entregue, no prazo de 24 horas, os exames toxicológicos e medidas de saúde às famílias em razão das intoxicações por agrotóxico.

“Agentes do Estado do Pará se encontravam presentes, mas a Defensoria já oficiou secretários de Estado e órgãos de investigação, além de ter expedido uma recomendação hoje ao prefeito de Salvaterra e à secretária de Saúde de Salvaterra. Também abrimos um procedimento em razão dos fatos apresentados, de modo que outras medidas certamente serão adotadas”, destaca a defensora pública Andreia Barreto.

Defensora pública Andreia Barreto. (Divulgação/Hugo Sampaio/Ascom Defensoria Pública do Pará)

Fazendeiro foi alvo de ação do MPPA e MPF

Em junho de 2020, o MPF e o MPPA apontaram irregularidades nos registros imobiliários e no Cadastro Ambiental Rural (CAR) das fazendas pertencentes a Joabe Dauzacker Marques. Os órgãos afirmaram ainda que o licenciamento ambiental, que autorizou o plantio de arroz na área, ignorou a obrigatoriedade de consulta prévia, livre e informada aos quilombolas. Também foi apontada omissão da União e do Incra pela falta de regularização fundiária dos quilombos do Marajó.

Os abusos ocorreram com a anuência da Prefeitura de Salvaterra, denunciaram os órgãos. O então prefeito Valentim Lucas de Oliveira (PSDB) doou um terreno para a instalação de uma planta de beneficiamento do arroz a Joabe Dauzacker. Para o MPF e o MPPA, a lei municipal que autorizou a doação foi inconstitucional. 

Por esse motivo, uma Ação Civil Pública foi ajuizada contra o fazendeiro Joabe, o ex-prefeito Valentim Lucas de Oliveira, o Estado do Pará, o Incra e a União pedindo o fim do plantio de arroz em áreas quilombolas, mas os pedidos não foram acatados pela Justiça Federal.

Em nota, a promotora de Justiça do MPPA, Ione Missae da Silva Nakamura, informou que há um conflito de competência entre a Justiça Federal e o juiz da Comarca de Salvaterra sobre o caso. Por esse motivo, deve ser encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para determinar qual justiça é competente para julgamento do processo.

A reportagem da Alma Preta procurou os fazendeiros Joabe Dauzacker Marques e José Marques para se posicionar acerca dos relatos das comunidades. Uma atualização da tramitação do pedido de titulação dos 17 quilombos de Salvaterra foi requerida ao Iterpa. O espaço segue aberto para ambos.

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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