O Complexo da Maré passou recentemente por seis dias ininterruptos de operação policial. As ações aconteceram entre os dias 9 e 14 de outubro de forma articulada entre as polícias civil e militar, endossadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro como uma possível solução para a desarticulação das redes ilícitas e criminosas que se instalaram na região. Denominada como “Operação Maré”, a ação é repercutida pelo próprio governo como uma “intervenção bem-sucedida”.
Por outro lado, o resultado para a população da Maré foi desastroso: a operação deixou uma pessoa morta e quase 18 mil alunos sem aulas no período. Em relação às Unidades Básicas de Saúde (UBSs), 770 atendimentos médicos foram cancelados e diversas determinações da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (ADPF das Favelas) ficaram a desejar.
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“Isso demonstra o quanto o governo do Rio de Janeiro continua apostando numa lógica de confronto, que dispensa o reconhecimento da dignidade humana das pessoas que vivem nas favelas e nas periferias”, afirmou a deputada estadual Renata Souza (PSOL).
A partir das ações policiais na Maré, a parlamentar – juntamente com outros grupos de apoio – acionou o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ). A ação exige que o órgão determine a instauração de uma apuração a fim de verificar se as operações obedeceram aos protocolos existentes e adotados pelas polícias quanto ao uso comedido da força.
O processo sugere também a averiguação das denúncias de abusos de poder durante a intervenção das polícias, e que o MP designe um membro de controle externo da atividade policial para acompanhar a investigação das violações e esclarecer quanto à legitimidade das operações ocorridas.
“O Ministério Público precisa exercer aquilo que a Constituição manda, que é exatamente o controle externo da atividade policial, com investigações concretas sobre os abusos cometidos pelas polícias no estado do Rio de Janeiro e em qualquer outro lugar. A gente precisa que seja remontado também um processo de redução da letalidade policial”, reforçou Renata Souza.
Invasões a domicílios e policiais sem câmera corporal
Segundo informações da Redes da Maré, a cobertura midiática no primeiro dia de operação inibiu a hostilidade policial, mas isso não durou muito tempo. No segundo dia, com menos acompanhamento da imprensa, a operação voltou a adquirir o padrão dos últimos anos, com diversos relatos de invasões de domicílios e com a morte de uma pessoa, em situação que indica execução, de acordo com a instituição.
Uma das invasões foi relatada pelo influenciador e artista Raphael Vicente. Em tom de desabafo, ele contou que policiais exigiram entrar e revistar a sua casa. Longe de casa a trabalho, ele disse que a irmã precisou recorrer às redes sociais para que os policiais não continuassem com a invasão domiciliar: “Eles só foram embora porque mostrei o seu Instagram”, disse a irmã de Raphael a ele por mensagem.
A Redes da Maré registrou uma série de violações de direitos, sobretudo, praticadas por agentes dos grupos de elite das polícias, que não utilizaram câmeras corporais. De acordo com informações oficiais, o governo do Rio já investiu, desde 2021, R$1,5 bilhão, especificamente, em equipamentos tecnológicos como câmeras portáteis para uniformes, veículos semi blindados e drones.
“Hoje o investimento nas polícias do Rio de Janeiro chega a R$ 13 bilhões. É um investimento maior daquilo que é previsto no próximo ano para saúde e educação. E nem meio por cento desse investimento irá para inteligência, informação, para perícia. Ou seja, aposta-se nas polícias como uma arma de guerra e não uma arma para concluir inquéritos responsabilizar aqueles que, porventura, não respeitaram as leis” , explica a deputada Renata Souza.
O educador Laerte Breno, que faz parte de uma iniciativa de educação dentro do Complexo da Maré, avalia que a operação foi mais uma ação do governo estadual para “enxugar gelo”.
“Foram gastos milhões, né? E a gente viu o governador [Cláudio Castro], que é uma das lideranças do estado do Rio de Janeiro, se manifestando, falando que a operação está sendo um sucesso, sendo que nem todos os PMs usavam câmera”, pontua.
Durante as operações, o comércio local não funcionou, o que afetou drasticamente a economia local do Complexo da Maré. “O povo é correria, depende do dinheiro, do trabalho autônomo. Boa parte dos moradores da Maré são trabalhadores autônomos”, completa Laerte.
Denúncia à ONU
A operação policial impactou, de acordo com estimativa da Redes da Maré, 20 mil das 140 mil pessoas que residem na região. Foram 13 favelas, das 16 existentes no território, afetadas. Outras atividades no campo dos projetos sociais, educacionais, esportivos e culturais, desenvolvidas pela Redes da Maré e demais instituições da sociedade civil, também foram lesadas pela operação, além do comércio que não pôde funcionar integralmente.
“Ignora-se o cotidiano daquela população que precisa estudar, que precisa trabalhar, que precisa ir aos postos de saúde. São milhares de crianças e adolescentes fora da escola, dentro desse período em que a gente teve tiroteios todos os dias. Então, o direito de ir e vir foi negado, o Estado Democrático de Direito foi inviabilizado”, completa a deputada estadual Renata Souza.
À reportagem, Renata Souza também contou que a ADPF das Favelas, movimento pelo fim da violência no Rio de Janeiro, também irá enviar um comunicado à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) para notificar a “situação que está insustentável para quem vive nas favelas e periferias”.
A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro afirmou que desde o último dia 9, o trabalho integrado das forças estaduais de segurança na Operação Maré teve como resultado a prisão de 28 criminosos, apreensão de mais de meia tonelada de maconha e drogas sintéticas, assim como de 100 quilos de pasta base de cocaína. Em seis dias de operações, 14 fuzis estão entre as armas apreendidas, além de 104 veículos recuperados.