“Barriga cheia, coração contente”. Essa frase resume muito a forma que pessoas negras se relacionam com a alimentação. Em um país onde a fome é um problema que atinge um quinto das famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas e pretas (20,6%), segundo dados da Agência Brasil, ter comida no prato é mais do que garantir a sobrevivência: é uma demonstração de afeto.
São os terreiros de candomblé os precursores dessa relação entre pessoas negras e alimentação como forma de amor. De acordo com a iyálorixá Fabiana de Almeida, o afeto entre pretos escravizados na época colonial era demonstrado com pequenos presentes, que, na maioria das vezes, eram comida boa para dividir entre eles, como frutas.
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A sacerdotisa explica que, intrinsecamente, as práticas de candomblé, as ciências e as comidas são feitas e elaboradas na cozinha, espaço de compartilhamento de saberes ancestrais, mesmo durante o período escravagista.
“Cozinhar para orixás e comungar com eles era uma forma de nossos antepassados se servirem do banquete dos deuses em meio ao sofrimento. Há muito amor envolvido em cada prato típico dedicado aos orixás do panteão africano, que alimentam o corpo e o espírito”, explica.
Em festas típicas, as comidas de todos os orixás são feitas, momento este em que os adeptos à religião se unem para festejar o renascimento de um irmão para a vida no sagrado. As pessoas presentes comem o que é servido em folhas de bananeira ou de mamona e não é permitido desperdício de comida.
“Para nós [candomblecistas], o alimento é sagrado e nós honramos a Oxóssi, orixá da fartura, quando aproveitamos tudo que uma comida pode oferecer. Fartura de verdade é saber construir sabores com pouco, dividindo com nossos irmãos aquilo que cozinhamos com nossas próprias mãos. E a gente só divide com quem a gente ama”, diz a mãe de santo.
Comida e afeto nos consultórios
De acordo com a nutricionista Lívia Amaro Costa, é fundamental a sociedade compreender que para pessoas negras a alimentação tem outro significado. Esse viés social e de classe, segundo ela, está em pequenos atos do dia-a-dia, fatos que um profissional relacionado à saúde alimentar deve sempre estar atento.
“Atendo pessoas negras e escuto muitas histórias sobre como a comida é um sinal de segurança para as famílias que vieram do pouco. Ter a despensa cheia é luxo e mostra que você ama sua família. A gente está falando de gente que aprendeu a se virar com o que tem para comemorar pequenas vitórias”, salienta.
“O primeiro emprego traz o sonho de fazer uma compra no supermercado para a casa da mãe. O primeiro amor? Desperta aquela vontade de dar uma caixa de chocolate para o seu par. Nasce um bebê? ‘Vamos levar um bolo para a puérpera’. A comida sempre está ali, demonstrando o afeto”, completa a nutricionista.
Para a profissional, mais do que pensar em um plano alimentar quando se atende uma pessoa negra para falar de alimentação, é fundamental compreender o peso que a comida tem na vida dessas pessoas.
“Existe quem come de tudo – porque cresceu tendo tudo – e há aqueles que comem porque só era aquilo que tinha. Há quem coma pouco porque tem medo de faltar para a família. Portanto, em todos os atendimentos, é essencial considerar a negritude, para que nós, nutricionistas, sejamos agentes de transformação social e acolhimento”, orienta.
A psicóloga Valquíria Azeredo, especializada em transtornos alimentares, avalia que toda a alimentação de pessoas negras é simbólica. Mulher negra, ela relembra que sua mãe fazia questão de servir um bolo simples em seu aniversário, nunca deixando a data passar em branco.
“Meus pacientes negros e eu temos muito em comum. Quando queremos demonstrar a importância de alguém, ofertamos comida. Compramos um doce. Fazemos um brigadeiro. Então não podemos nunca distanciar os sentimentos bons dos alimentos, pois é fácil dicotomizar as coisas – como boas e ruins” – Descreve. “Ruim é passar fome”, complementa.
Tempero de mãe e de avó
“Aprendi a cozinhar vendo a minha avó ensinando a minha mãe a fazer comida para mim. Minha mãe me teve aos 13 anos, era uma menina que criava um bebê. Com o tempo, minha mãe superou minha avó na cozinha, se tornando uma chef de mão cheia”. É o que diz a cozinheira Carolina Neves.
A empreendedora, que vende marmitas na Zona Leste de São Paulo, diz que sempre foi óbvia sua vocação: cozinhar. Em um lar chefiado por mulheres negras, Carolina cresceu sentindo o cheiro de tempero invadir suas narinas logo de manhã. Sua avó, Maria Conceição, cozinhava para trabalhadores de obras do entorno. Logo, o trabalho passou para a sua mãe, Anita, e com o falecimento das duas devido à Covid-19 em 2021, Carolina assumiu o lugar delas em frente ao fogão.
“Eu era menina, minha mãe uma jovem adulta, e estávamos nós na cozinha ajudando minha avó a preparar as marmitas. Era um momento quase perfeito. Minha avó, mineira, contando seus ‘causos’. Minha mãe, detalhista, limpando frango. Eu cortando tomate, cebola. E rindo das histórias da velha”, diverte-se com a lembrança.
Carolina afirma que as lições importantes de sua vida foram aprendidas na cozinha. Logo, a cozinheira – que cresceu ao lado de grandes panelas quentes – diz não ser possível separar os alimentos do amor pelas mulheres responsáveis por sua criação.
“Todas as minhas melhores lembranças são de dentro da cozinha. Então, quando eu faço um feijão clarinho, lembro da minha avó. Quando faço uma salada de maionese com os legumes cortados igualmente, lembro da minha mãe. Cozinhar me desperta amor. Saber que o meu trabalho alimenta outros trabalhadores, pretos e pobres como eu, é a minha forma de gritar o amor bem alto”, finaliza.
MA’AT O Bem Viver Na Consciência Negra. Este conteúdo faz parte de uma série baseada no Bem Viver, movimento baseado nos conhecimentos ancestrais, colaborativismo e equilíbrio ambiental. Uma forma de repensar a exploração do trabalho e a fruição da vida.
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