No complexo de 16 favelas da Maré, na capital do Rio de Janeiro, cada momento da primeira infância se torna uma etapa desafiadora na formação de cidadãos. Com uma população que atualmente ultrapassa 140 mil habitantes, a Maré é atravessada por diversos problemas urbanos relacionados à negligência do Poder Público na garantia de direitos fundamentais e serviços essenciais, principalmente relacionados à moradia e segurança pública.
Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país contabilizava 13.151 favelas até 2019, com mais de 5 milhões de domicílios. Somente no Rio de Janeiro, para se ter ideia, há aproximadamente 450 mil lares situados em favelas. É disso que se trata o estudo “Primeira Infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado (PIM)”. A iniciativa inédita foi conduzida pela Redes da Maré entre 2020 e 2022, com o apoio da Fundação Porticus.
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“Nas favelas da região, onde quase 11% da população são crianças de 0 a 6 anos, a luta contra as desigualdades estruturais é uma missão diária e urgente”, diz o documento.
Em 2021, havia 7,8 milhões de crianças em situação de pobreza, e 2,2 milhões em situação de pobreza extrema. Entre as negras a taxa de pobreza era de 54,3%, e a taxa de pobreza extrema ficava em 16,3%.
O estudo identificou que 1.160 pessoas/famílias (54,1%) tiveram dificuldade com alimentação durante a pandemia. Em 252 domicílios (11,8% da amostra), alguém da família deixou de comer ou pulou refeições para não faltar alimento para as crianças.
Demografia da primeira infância
O diagnóstico da Redes da Maré foi conduzido durante a crise sociossanitária de COVID-19 e teve abrangência em toda a área do complexo, dividido em três subtipos: área 1, que contempla a região de Nova Holanda, Parque Maré, Parque Rubens Vaz e Parque União, abrigando 38,7% da população total e 39,8% da população de 0 a 6 anos.
“Essa população convive com a presença do Comando Vermelho”, de acordo com o informe.
Já a área 2, composta por Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Salsa e Merengue, Nova Maré, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Esperança, Vila do João, Vila dos Pinheiros e Conjunto Pinheiros, reúne 48,6% da população total e 48,3% da população de 0 a 6 anos. Nessa região se manifesta a presença do Terceiro Comando Puro, segundo o relatório.
Por fim, a área 3 inclui Parque Roquete Pinto, Praia de Ramos e Marcílio Dias, com 12,7% da população total e 11,9% da população de 0 a 6 anos. Nessa área há a presença de um grupo miliciano.
No total, o Censo Maré identificou 14.885 crianças de 0 a 6 anos. A favela com a maior população na primeira infância era o Parque União, com 15,2% do total, seguida por Vila dos Pinheiros (11,7%), Nova Holanda (11,1%) e Vila do João (10,1%). A menor população de 0 a 6 anos estava concentrada na Praia de Ramos, com apenas 2%.
Segundo o Censo Maré, há 47.758 residências distribuídas nas 16 favelas que conformam a região. Ao todo, foram aplicados 2.144 questionários nas entrevistas domiciliares com responsáveis por 3.837 crianças de até 12 anos na Maré, incluindo 2.796 crianças de 0 a 6 anos.
“Esses dados fornecem uma amostra representativa da região e ajudam a entender as condições geopolíticas que afetam as famílias e as crianças na primeira infância”, destaca o documento.
Como moram as crianças?
Cerca de 32,8% das pessoas entrevistadas indicaram ter renda familiar mensal de até um salário-mínimo (valor vigente em 2021, de R$1.100), somando-se todos os membros da família, sendo que majoritariamente as famílias não tinham casas próprias. Eram alugadas (42,2%) e/ou moravam de favor ou por ocupação/posse da residência (8,6%).
As casas, na grande maioria, eram de alvenaria e contavam com 4 a 5 cômodos em 65,3% dos casos. Além disso, 96,7% das residências têm acesso à rede de eletricidade e 94,4% dos entrevistados responderam ter iluminação pública em suas ruas. Porém, 44,6% informam ter problemas com o fornecimento de luz.
Já 44,7% dos moradores da Maré informaram que em dias de chuva a sua rua é alagada, 370 famílias (aproximadamente 17,3%) costumam ter problemas de acesso à água, e 337 núcleos familiares (aproximadamente 15,7%) ressaltam os problemas com a qualidade da água. Apenas 50,9% dos respondentes informaram ter filtro em casa, 16,5% compram água mineral e 2,6% a fervem.
Os dados ainda mostram que, em média, existem 4,32 pessoas por domicílio, sendo 18,5% das moradias com mais de 5 pessoas, chegando até 15 pessoas.
Quanto aos cuidados com as crianças, a pesquisa mostrou que há uma variedade de cuidadores e arranjos coletivos de cuidado. Os domicílios em que o respondente mora apenas com as crianças corresponde a 6%, sendo a coabitação de um casal com crianças cerca de 54,6%.
Porém, apesar da renda per capita das pessoas em um núcleo familiar ser baixa, 57,4% das famílias não recebem nenhum benefício do governo.
“Considerando que o maior dispêndio das famílias pobres foi identificado como sendo com alimentação, especialmente no período da pandemia, a dificuldade de acesso integral a benefícios compromete a segurança alimentar de famílias e o acesso à alimentação adequada ao desenvolvimento infantil”, diz o informe.
Iniciativas solidárias, como a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, distribuíram 1.980 toneladas de alimentos entre março e dezembro de 2020 devido à grande necessidade do local.
O filho é da mãe
Quando se trata de cuidar das crianças, as práticas de cuidado são moldadas pelas circunstâncias e necessidades específicas da comunidade. Por exemplo: mães e avós representam as principais cuidadoras das crianças na primeira infância, responsáveis por 93,1% dos menores do complexo de favelas.
Embora os pais sejam responsáveis por boa parte dos custos financeiros das crianças em 53,9% dos casos, apenas 6,1% das crianças ficam sob a responsabilidade deles quando o cuidador principal está ausente – que é normalmente a mãe ou avó.
“Isso levanta questões sobre o papel do pai na vida das crianças e o que acontece quando os pais se separam”, salienta o relatório.
A maioria das crianças (94,7%) mora com a mãe e mantêm contato diário com ela. Em contraste, 53,4% moram e têm contato diário com o pai. Em 80% dos casos, as responsáveis pelas crianças eram mulheres negras.
“Essa diferença evidencia o quanto a figura materna é central na vida das crianças na Maré. Quando pensamos na ausência da figura paterna no desenvolvimento das crianças, encontramos uma quantidade significativa da ausência de contato”, completa o informe.
Violência doméstica é comum para as crianças
Presenciar violência também faz parte da rotina dos pequenos moradores do complexo de favelas. Cerca de 39,6% das crianças de 0 a 6 anos vivem nos 315 lares em que presenciaram os responsáveis se xingarem, enquanto 14,8% estão nas 83 casas em que viram os próprios responsáveis se agredirem.
E não para por aí: 4,1% das crianças de 0 a 6 anos estão nos 150 lares em que presenciaram outros parentes se agredirem, e 7,0% moram nos 411 domicílios em que testemunharam outras pessoas se agredirem.
Quanto à polícia, 20,0% dos pequenos de 0 a 6 anos estão nos 170 domicílios em que presenciaram a violência policial, enquanto 8,0% vivem nos 819 domicílios em que as crianças já presenciaram algum tipo de violência. O maior número de respostas afirmando exposição da criança a algum tipo de violência é em Nova Maré (54,1%), seguida por Rubens Vaz (54%), Nova Holanda (45,2%) e pelo Parque Maré (42,2%).
Os domicílios em que as crianças já viram a violência policial abrigam 8% das crianças de 0 a 6 anos, com destaque para: Morro do Timbau (17,7% das crianças), Parque Maré (14,8%) Rubens Vaz (13,6%), Baixa do Sapateiro (13,1%), Parque União (11,6%) e Nova Holanda (11,5%).
De maneira geral, as crianças da Maré são expostas a traumas, especialmente nas áreas mais atingidas por confrontos armados. As estratégias de cuidado são criadas principalmente no âmbito comunitário e familiar, muitas vezes sobrecarregando mulheres que exercem o cuidado parental sozinhas, de acordo com a pesquisa.
Exposição à violência policial e encarceramento
Em todas as 16 favelas da Maré houve relatos de crianças expostas à violência policial, mas em 33 casas, onde habitam 46 crianças de 0 a 6 anos, alguém foi morto pela Polícia. Já em 27 delas, alguém foi morto por grupos armados.
Em 74 domicílios, com 102 crianças de 0 a 6 anos, pessoas já foram atingidas por tiro, com 33 deles sendo considerados casos de “bala perdida”.
“A exposição grave à violência é atribuída ao Estado, seja por não combater eficazmente o crime organizado ou por adotar estratégias bélico-militarizadas que revitimizam os moradores. A negligência estatal e a falta de políticas sociais também são compreendidas como formas de violência direta e indireta na Maré”, salienta o informe,
Em 40 domicílios da amostra, havia algum morador encarcerado no momento da pesquisa, incluindo pais, padrastos e irmãos. Nesses lares, moram 2,1% das crianças. Além destes, em outros 104 lares, com 6,5% das crianças, alguém da casa já esteve preso.
Com base nos dados apresentados, é possível observar o impacto negativo da violência no cotidiano das crianças, a partir das categorias brincar, restrição/circulação, diminuir desempenho e perder aula, especialmente nas favelas da Nova Holanda, Baixa do Sapateiro e Vila dos Pinheiros, segundo o informe.
“Globalmente, a violência compromete significativamente tanto o processo de aprendizagem quanto o desenvolvimento das crianças da Maré.”