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Ser negro e quilombola na Amazônia é depender apenas do SUS para atendimento na pandemia

Efeitos da Covid-19 recaíram de maneira desigual entre os grupos da população brasileira; na região amazônica, com histórico de falta de investimentos, Sistema Único de Saúde é única garantia de atendimento

Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Acervo Pessoal de Jenyfer Sousa da Silva

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9 de fevereiro de 2021

Aos 42 anos de idade, a pedagoga Jennyfer Sousa da Silva morou anos no Rio de Janeiro, onde era funcionária pública. Natural de Manaus, a quilombola retornou em setembro de 2020 à comunidade Barranco de São Benedito, na capital do Amazonas, para cuidar da mãe, que havia sofrido um acidente vascular cerebral (AVC). Ela desembarcou em 28 de setembro de 2020, quase um mês depois passou mal com tosse, falta de ar e cansaço. Procurou o serviço de saúde e foi internada no dia 4 de novembro. Foi para a Unidade de Terapia Intensiva, entubada e faleceu no dia 10 de dezembro.

Jennyfer faz parte de tristes estatísticas de um Brasil que já acumula mais de 231 mil vidas perdidas para o novo coronavírus em quase um ano. Ela saiu do Rio de Janeiro, cidade que há poucos dias liderou em números de mortes no país e foi à Manaus, capital com a maior taxa de mortalidade. Era negra e quilombola, grupo retirado da primeira fase da vacinação contra a doença do Plano Nacional de Imunização, pelo Ministério da Saúde e, por consequência, de vários estados também.

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Ela era prima de Rafaela Fonseca, pedagoga, e não foi a única pessoa da família a morrer vítima de complicações pela infecção pelo vírus. Em maio, um tio de Rafaela faleceu após 17 dias internado. Neste ano, duas pessoas faleceram, um caso confirmado e o outro suspeito.

“Eu tenho certeza que quase todo mundo aqui pegou Covid no ano passado. Quase todos apresentaram sintomas de febre, cansaço, falta de ar, tosse, dor no peito, falta de paladar e olfato. Mas todo mundo se tratou dentro de casa”, comenta a pedagoga. “Estamos nos resguardando até hoje, até porque temos muitos idosos, muitos com comorbidades, como hipertensão e diabetes e que só agora estão sendo vacinados porque entraram no critério de idade, não foi por serem quilombolas”, complementa.

São Benedito foi o segundo quilombo urbano certificado do país, em 2014. Localizado na Zona Sul de Manaus, no bairro da Praça 14 de Janeiro, o quilombo conta com mais de 150 famílias, a maioria vive da informalidade e vê no Sistema Único de Saúde a única garantia de atendimento. “Sem o SUS, a maioria de nós teria morrido. Nós não temos dinheiro para pagar plano de saúde. Se privatizarem, como vivem falando, nós não teremos atendimento”, desabafa Rafaela.

Nesta segunda onda da pandemia, que afeta duramente a capital do Amazonas, os quilombolas recorrem às inalações, remédios para tosse e aos recursos naturais para se tratar. “Eu tomava chá, coisas das nossas ancestrais, com jambu e alho. Era isso o que a gente tomava aqui”, afirma a quilombola, que suspeita ter contraído o novo coronavírus, assim como o marido e os filhos.

A comerciante de Manaus, Fanuela de Oliveira Vasconcelos, 40 anos, também apresentou sintomas da doença no ano passado. Ela foi à Unidade Básica de Saúde, fez o teste rápido e confirmou: era Covid-19. Saiu de lá com uma receita e medicamentos em mãos: ivermectina e azitromicina. Remédios sem eficácia comprovada para a doença. Ficou em isolamento em casa e manteve distância da família. Ela conta que o tratamento foi todo feito por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). “Eu não teria condições de pagar por isso tudo. Durante o tempo de isolamento eu recebia ligações da médica que me atendeu. Ela me dava orientações até sobre a saúde mental, para eu não ver tanto as notícias e procurar ouvir músicas, ver séries e cuidar mais de mim”, recorda.

Agora, Fanuela elabora estratégias para permanecer trabalhando e tem notado como a pandemia atingiu sua cidade. Em 14 de janeiro de 2021, houve os primeiros registros de falta de oxigênio da cidade. “A sensação que temos é de medo. Os registros da nova cepa do vírus deixaram a situação ainda mais tensa”, desabafa.

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Foto: Reprodução/Fotos Públicas

O drama da falta de oxigênio aprofundou desigualdades uma vez que o preço do cilindro aumentou muito. “Não era o oxigênio, havia outros equipamentos necessários para quem estava em tratamento em casa. Aumentou o preço, mas chegou o momento em que mesmo quem tinha dinheiro não conseguia comprar”, conta a advogada e jornalista Luciana Santos, coordenadora de um grupo de estudos sobre a vulnerabilidade racial.

A profissional fala que a situação no estado é uma consequência do desamparo histórico que a região norte do Brasil sofre em relação ao poder público federal e ainda assim uma parte da população é mais atingida. “Para a população negra é o SUS que garante o atendimento médico. Estamos na base da pirâmide. Essa segunda onda tem atingido o sistema particular também, mas recai pesado no sistema público porque é para onde todo mundo corre na hora que mais precisa”, frisa.

Desigualdade em números

Jennyfer, Fanuela e Rafaela são mulheres negras e adoeceram em Manaus. Elas têm outra coisa em comum: no Norte e Nordeste, cerca de 90% das pessoas não possuem planos de saúde. No Maranhão, somente 5% da população tem convênio de saúde privada. Já em Roraima, são 7,4%, segundo o Plano Nacional de Saúde, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), divulgado em 2020, com dados de 2019.

O estudo ainda mostra que 26% da população tinha acesso a algum plano de saúde médico, na média nacional. Entre os brancos, o índice era de 36,5%, ou seja, duas vezes maior que pretos e pardos, com 18,4% e 17,6%, respectivamente.

Segundo dados da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, no último fim de semana quase todos os estados da região acumulavam alta na média móvel de infectados e mortos. Nos boletins estaduais, atualizados em 5 de fevereiro, a taxa de ocupação da UTI adulta nas redes estaduais passa de 70%. No Amazonas a taxa era de 92,3%, em Rondônia era de 100%. O Amazonas lidera a taxa de mortalidade, com 210,3. É o maior número de óbitos para cada 100 mil habitantes.

Em 2020, a lei que regulamentou o Sistema Único de Saúde em todo o país completou 30 anos de promulgação. O Sistema é a garantia de atendimento para milhões de brasileiros, ainda assim passa por constantes ameaças de privatização e recorrentes cortes de verbas.

“O SUS, como sistema de saúde universal, a que todas e todos dentro das fronteiras do país têm direito, é uma conquista. Ele é resultado dos esforços e lutas da população (destacando-se o Movimento Popular de Saúde), de pesquisadores e legisladores. Tem sofrido ataques desde o primeiro momento, desde a ideia, desde a reivindicação (a luta contra iniquidades no Brasil enfrenta fortes resistências)”, destaca a médica Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, em entrevista à agência Alma Preta, na ocasião.

“O SUS ainda sobrevive, cada vez mais frágil, desempoderado. Mas ele é uma forma de redistribuição da riqueza produzida pela sociedade, em forma de direito e atenção à saúde. Eu celebro a ideia, a proposta e a resistência. Eu celebro o princípio de justiça social que está embutido nele. Mas temos que lutar para que ele não seja destruído”, complementa Werneck.

O último censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrou que cerca de 80% dos usuários do SUS são negros. Logo, os cortes e uma possível privatização podem atingir os que mais usam os serviços. “O racismo como ideologia e estrutura contribui muito para a definição (e execução) de prioridades. No caso da saúde, já se sabia que os indicadores são piores para a população negra e para a população indígena, devido ao histórico de negligências. Portanto, é preciso agir para superar as lacunas que a desassistência deixou – e para isso é preciso investir os recursos que são fruto do trabalho de todas e todos nós”, afirma a médica.

Para Werneck, o agravamento da pandemia é resultado também do enfraquecimento do sistema. “O que temos é resultado da fragmentação do SUS, que para funcionar bem deve ser entendido como único, funcionar articulado. Para não termos tantas mortes, tanto trauma, tanto tempo de pandemia em taxas altas em todo o país, o SUS deveria ter agido usando a melhor técnica que o Brasil já dispõe. Mas muitos governantes e gestores do SUS preferiram a polarização, a manipulação e a negligência”, conclui.

Paulo Desana Amazonia Real

Foto: Paulo Desana/Amazonia Real

De acordo com o último boletim epidemiológico publicado em 2 de fevereiro pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), 195 quilombolas perderam a vida para a Covid-19 no país, além de 5.119 infectados e 1.465 casos em monitoramento. O número de óbitos e infectados pode ser ainda maior devido à dificuldade de contabilização dos dados visto que não há apoio do poder público para a coleta deles.

São cerca de 20 mortes por mês, conforme a entidade, ainda assim, as comunidades remanescentes de quilombo foram retiradas da primeira fase da vacinação contra Covid-19 pelo Ministério da Saúde. A pasta informou que o grupo está contemplado na campanha nacional de vacinação, mas teve que fazer um replanejamento em função da baixa quantidade de doses, apenas 6 milhões priorizando “pessoas que teriam maior risco de internação e óbito, bem como o quantitativo de vacina disponibilizado inicialmente”.

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