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Testemunha denuncia agressão para acusar rapaz de assassinato

Preso há um ano e seis meses, Túlio de Jesus Silva é acusado por homicídio e roubo na cidade de Pintadas (BA); trechos do processo apontam possíveis irregularidades na investigação

Foto: Arquivo Pessoal

Foto: Foto: Arquivo Pessoal

28 de fevereiro de 2023

Uma das testemunhas do caso Tulio de Jesus Silva relatou, em vídeo, que foi agredida e coagida a apontar o jovem negro como o autor de um assassinato ocorrido em agosto de 2021 na cidade de Pintadas, localizada no centro norte da Bahia. Sem citar nomes, Paulo* diz que foi ameaçado na delegacia da cidade, onde foi ouvido, caso não indicasse o nome de alguém como responsável pelo crime.

No dia do crime, Paulo* trabalhava no bar/bordel da vítima, que se chamava Adeniclei Ribeiro, quando dois rapazes chegaram ao local e anunciaram um suposto assalto. Nesse momento, segundo a testemunha, ele correu para dentro de uma casa, onde o bar ficava localizado, para chamar o marido da vítima quando ouviu disparos de arma de fogo. A vítima, conhecida como “Morena”, morreu no local.

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Segundo o processo, ao qual a Alma Preta Jornalismo teve acesso, Paulo* informou na delegacia que um dos autores do crime tinha “aproximadamente 1,70 m de altura, moreno escuro, forte, cabelo preto cacheado, cortado estilo ‘VO’, sem nenhuma deficiência, voz mediana nem fina nem grossa, estava vestido de short jeans escuro e uma jaqueta preta”. Já o segundo autor tinha “aproximadamente 1,65m, cor branca, magro, liso, preto, com corte normal, vestido camiseta azul escuro e um short jeans”.

Além disso, ele informou que “ambos os autores do crime estavam sem máscara, mas que não conseguiu ver os rostos dos indivíduos, pois o local estava escuro”. No entanto, ainda assim, indicou que Túlio teria sido um dos responsáveis pelo crime.

Leia mais: Bahia: rapaz está preso há nove meses e família aponta irregularidades no reconhecimento

No vídeo, gravado no ano passado na casa da testemunha, Paulo* relata que tomou um tapa no rosto e que se ele não indicasse o nome de Tulio seria preso. Além disso, confirmou que Tulio estava sozinho numa sala para o reconhecimento pessoal e que foi pressionado na delegacia a manter a versão de acusação na audiência.

Sobre os relatos, a reportagem entrou em contato com a Polícia Civil, a 1ª Vara Criminal de Ipirá (BA) e a Delegacia de Pintadas e questionou se a polícia chegou a apurar se houve algum tipo de agressão dentro da delegacia durante o depoimento das testemunhas; qual o motivo dos autos de reconhecimento das testemunhas serem semelhantes já que os depoimentos foram distintos; se o segundo suspeito no crime foi identificado; se as digitais de Túlio foram coletadas no local ou alguma arma foi apreendida; e se os bens roubados durante o homicídio foram recuperados. Apenas a Polícia Civil respondeu e disse, em nota, que “o procedimento está na Justiça Criminal e o autor foi denunciado pelo Ministério Público”.

O que fez a defesa

À reportagem, a advogada de defesa, Vitória Abreu, disse que levou a testemunha para prestar depoimento no Ministério Público da Bahia com a promotora Laise Carneiro, onde ele foi ouvido. Segundo a advogada, a declaração foi formalizada e gravada, mas até o momento a defesa não teve acesso ao material para acrescentar ao processo e a testemunha ainda não foi inserida em nenhum programa de proteção, visto o risco de ser ameaçado ou violentado por algum agente de segurança da cidade onde aconteceu o crime.

A advogada também aponta uma irregularidade no reconhecimento pessoal de Túlio, já que ele foi identificado sozinho sem a apresentação de demais suspeitos, além da falta de provas materiais.

“Nada foi encontrado com ele [Túlio], na casa dele, nem houve nenhum tipo de busca depois para tentar localizar isso nas proximidades. Também não houve busca nem investigação para tentar localizar esse segundo indivíduo apesar de estar no B.O. características muito específicas dessa segunda pessoa”, comenta a advogada de defesa.

A reportagem entrou em contato com o Ministério Público da Bahia (MP-BA) e questionou o motivo do vídeo do depoimento da testemunha Paulo* ainda não ter sido disponibilizado. Em nota, o MP-BA informou que “os fatos noticiados pela testemunha, após sentença de pronúncia, ainda estão sendo investigados”. Conforme o órgão, não há prazo para o fim das apurações.

Sobre o programa de proteção à testemunha, o MP-BA respondeu que ela “não aderiu ao programa de proteção ofertado e foram frustradas todas as tentativas de contato feitas pelo MP”.

A reportagem tentou agendar uma entrevista com a testemunha citada, mas não obtivemos retorno até o fechamento da reportagem. As informações foram baseadas em provas obtidas pela Alma Preta.

O caso

O caso aconteceu no dia 17 de agosto de 2021, quando a vítima Adeniclei Ribeiro, mais conhecida como “Morena”, foi morta a tiros por dois homens dentro do bar Beira Rio, que também funcionava como um prostíbulo e onde atuava como gerente. Ao chegar no local, os suspeitos mandaram as funcionárias deitarem no chão, atiraram na vítima e depois fugiram.

Tulio de Jesus Silva foi preso em flagrante um dia após o crime, dentro de casa, após ser apontado como o principal suspeito. Ele é acusado por homicídio e roubo, já que uma das testemunhas foi roubada no local. Não há, no processo, indícios de que o material tenha sido encontrado com ele. O caso será levado à júri popular, ainda sem previsão de acontecer. Atualmente, Tulio está preso de forma preventiva no Conjunto Penal de Feira de Santana, região do centro-norte da Bahia.

Apesar da acusação, imagens de câmeras de segurança mostram que no horário do ocorrido Túlio estava a 1,7 quilômetro de distância do local do crime. Conforme imagens de uma loja da região, Túlio se desloca de bicicleta até uma praça da cidade às 19h26, onde foi encontrar a namorada. No dia, ele usava um boné vermelho, uma camisa azul de manga longa e uma bermuda jeans. Às 19h50, Túlio é visto retornando em sentido à sua residência, onde ficou até ser preso, conforme familiares.

Apesar do inquérito policial indicar que o crime teria acontecido por volta das 20h30, familiares apontam que o crime teria ocorrido por volta das 20h10. O tio de Túlio, Genivaldo Manuel, é uma das testemunhas do caso e conta que no dia do crime foi a um hospital da cidade quando, ao sair do local, viu duas pessoas entrarem na emergência para solicitar uma ambulância. Posteriormente, Genivaldo foi informado que eles também foram testemunhas do crime

À Alma Preta Jornalismo, Genivaldo conta que só soube do crime no outro dia, quando a sua irmã, mãe de Tulio, informou que ele foi preso. Também foi Genivaldo que solicitou as imagens das câmeras de segurança que provam a localização do rapaz. Para ele, a prisão do sobrinho se trata de uma “maquiagem” dos fatos.

“É algo muito maquiado, principalmente por parte das testemunhas de acusação. Não tem como alguém, que diz que conhece Tulio, dizer que é ele. Se foi Tulio, verdadeiramente, porque quando a polícia chegou [no local do crime] já não enviou imediatamente? São perguntas que eles não responderam”, ressalta.

O tio também destaca que o sobrinho era vítima de perseguição policial na cidade e era abordado diversas vezes ao dia. “Que flagrante é esse que não acharam nada com ele? Cadê a arma? As digitais de Tulio? Cadê a perícia para mostrar que ele efetuou esses tiros?”, questiona.

Uma das testemunhas que tem uma casa ao lado do bar onde aconteceu o crime, Roberto*, também alega que o crime aconteceu por volta das 20h10 já que estava com o celular na mão e que Tulio não foi o responsável. No dia do ocorrido, ele conversava com um rapaz na porta de casa quando viu os assassinos chegarem armados.

A testemunha relatou que, na ocasião, foi procurada por policiais dentro de casa que mostraram a foto de Tulio e perguntaram se ele o reconhecia como autor do crime. Em depoimento, ele disse que não o reconhecia como autor dos fatos porque trabalhou por cinco anos vendendo picolé nas ruas da cidade e que conhecia o jovem e a sua família.

Contradições

Além da possível irregularidade no reconhecimento pessoal do acusado na delegacia, com violação do artigo 226 do Código de Processo Penal, uma das divergências apontadas pela Defensoria Pública, na época representante de Tulio, se refere aos depoimentos prestados pelas testemunhas. Conforme trecho do processo, a Defensoria alega que foram levados em consideração “elementos derivado de prova irregular”, como o fato de duas testemunhas terem afirmado que não o reconheciam como autor do crime.

Além disso, em audiência, à qual a Alma Preta Jornalismo teve acesso, uma das testemunhas afirmou que não realizou ato de reconhecimento pessoal em sede policial e que assinou o termo sem ler, pois foi informada de que se tratava de documentos para sua “liberação” da delegacia.

No caso do reconhecimento pessoal, o depoimento das testemunhas indica que elas foram expostas às fotos de Tulio por policiais que estiveram no local no dia do crime, o que, segundo a defesa produziu uma “enorme carga sugestiva” já que várias fotos dele foram mostradas antes do reconhecimento pessoal. “Ou seja, nada garante que as testemunhas não estariam reconhecendo a imagem que viram nas fotografias, em vez da imagem do eventual criminoso”, cita um trecho da defesa.

No processo, também é possível identificar que todas as testemunhas indicaram, nos autos de reconhecimento, a mesma descrição para as características dos suspeitos do crime, embora os relatos da fisionomia dos autores tenham sido diferentes durante as audiências. Inclusive, no depoimento de uma das testemunhas ela afirma que não conseguiu ver o rosto dos suspeitos e no auto de reconhecimento há descrições detalhadas sobre os autores.

Vale ressaltar que duas das testemunhas ouvidas declararam em juízo que o autor do crime era branco, com cabelo cacheado na altura do ombro e cabelo meio branco ou grisalho, características que diferem da fisionomia do jovem.

Em audiência, uma terceira testemunha indicou que Tulio foi o autor do crime, mas deu características distintas das roupas utilizadas por ele. Ela informou que um dos indivíduos estava de calça jeans, casaco preto, mochila nas costas, tênis branco e uma arma prateada na mão, e que não conseguiu ver o outro porque ela entrou para dentro da casa na hora dos tiros para chamar o marido da vítima.

roupa tulioRoupas vestidas por Túlio no dia do crime diferem das vestimentas informadas pelas testemunhas | Foto: Reprodução/Defensoria Pública do Estado da Bahia

Ela trabalhava no bar há apenas uma semana e não conhecia o indivíduo pois não era moradora da cidade. No dia do ocorrido, ela conta que os policiais mostraram a foto de Tulio e também foi exposta às fotos dele no dia seguinte, na delegacia.

O que diz o MP-BA?

Em um trecho do processo, datado de julho do ano passado, o MP-BA, através da promotora Laise Carneiro, da 3ª promotoria de Justiça de Ipirá, argumentou que o reconhecimento pessoal, quando a testemunha já conhece o autor, é “dispensável”, como foi o caso de Paulo*, que disse em depoimento inicial que conhecia Túlio.

“Portanto, se por um lado o reconhecimento fotográfico e pessoal sem adoção do procedimento legal gera a invalidade desse meio de prova, por outro não há nulidade decorrente da falha procedimental quando existe o prévio conhecimento entre os sujeitos (vítima ou testemunha e autor)”, pontuou.

Ela também justifica que as imagens de Tulio só foram demonstradas após as testemunhas descreverem as características físicas dos autores. Conforme destacou a promotora, uma das testemunhas chegou a dizer que viu diversas fotos de suspeitos e que ela sempre apontava o rapaz como o autor. “Nenhuma testemunha declarou que procedeu ao reconhecimento com a exibição de fotografia única!”, destacou a promotora.

Sobre as imagens das câmeras de segurança, a promotora Laise Carneiro observou que o argumento das testemunhas de defesa sobre os horários que registraram o deslocamento de Tulio se tratou de um “discurso coreografado”.

Conforme a promotora, as imagens não são suficientes para tirar Túlio da cena do crime, que, segundo ela, ocorreu após as 20h. Carneiro também destaca que, do local onde o jovem foi identificado, até a região do crime levaria menos de dez minutos a pé ou menos de três minutos em veículo de locomoção. “Desse modo, as certezas da Defesa, em verdade, são leituras monoculares dos fatos, ou melhor dizendo, criações dos horários dos fatos”, argumentou a promotora.

Julgado pelo povo

Agora, com o caso previsto para ir a júri popular, os advogados de defesa indicam um risco de condenação injusta. À reportagem, o advogado Henrique Machado, um dos representantes de Tulio desde outubro do ano passado, analisa que uma das problemáticas do reconhecimento ilegal está fundamentada nas estruturas racistas que existem no judiciário brasileiro.

Atrelado a isso, o advogado destaca a aplicação do princípio do “in dubio pro societate” no caso, que, conforme explica o advogado, havendo caso de qualquer dúvida, se reverte a favor da sociedade, ou seja, ao júri popular. O especialista destaca que esse princípio é adotado no judiciário puramente por entendimento, mas nunca esteve no ordenamento jurídico brasileiro.

“Embora o júri seja extremamente justo, porque são pessoas da sociedade que têm muita sensibilidade para esse tipo de questão, elas também têm os seus preconceitos, as suas virtudes, e sabemos que submeter alguém a um julgamento de um crime que pode implicar em uma prisão de tantos anos a um jovem inocente é um risco que, infelizmente, estruturas racistas como esse tipo de reconhecimento ainda implicam”, comenta o advogado.

Além de Henrique Machado, os advogados Caio Guerra e Vitória Abreu atuam no caso de forma ‘pro bono‘, ou seja, com prestação de serviço jurídico gratuito e voluntário, por compreender que Tulio vive em situação de vulnerabilidade e foi acusado de forma injusta.

Para Caio Guerra, nesse momento do processo, o objetivo é apresentar ao plenário provas que resultem na inocência do jovem. “A ideia da defesa é mostrar o máximo de provas possíveis em plenário porque quem vai julgar Túlio é o povo, não é o juiz. Então o povo ainda não teve contato com essas testemunhas e precisa ter para que a gente esclareça esse fato”.

Para os familiares, a esperança é de que Tulio saia pela porta da frente em liberdade. “Eles não estão simplesmente prendendo um cara, eles estão acabando com a reputação de uma pessoa. Isso impacta a família, impacta todo mundo […] A família espera que essa audiência de júri aconteça o mais rápido possível, que eles possam ver a moeda pelos dois lados e verdadeiramente e, se houver um culpado, que esse culpado seja encontrado e dado o dever que merece”, completa Genivaldo Manoel, tio de Túlio.

Em última carta, escrita em junho do ano passado, Tulio relatou as angústias do que tem passado, as expectativas para o futuro e agradeceu ao apoio dos familiares, conhecidos e desconhecidos que têm se mobilizado no seu caso. “Às vezes não consigo entender o motivo de tanta dificuldade, mas confio em Deus que tudo vai dar certo e o que sinto em minhas orações se tornará realidade. Fé, apenas isso importa agora”, escreveu o jovem.

A reportagem tentou contato com a mãe do rapaz, mas fomos informados que, após a última visita ao filho, ela voltou abalada e não está em condições de falar.

*Os nomes fictícios foram utilizados para preservar a identidade das testemunhas

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  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

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