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Quem abriga as pessoas resgatadas de trabalhos análogos à escravidão?

Legislação brasileira não garante abrigo para trabalhadores; alguns, como Madalena Gordiano, ficam sem ter para onde ir

Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Divulgação/Polícia Federal

trabalho

10 de março de 2021

Entre 1995 e 2020 cerca de 55 mil pessoas foram resgatadas de trabalho em situação análoga à escravidão. Só em 2020 foram mais de 900 resgatadas, uma delas: Madalena Gordiano, que ficou conhecida em todo o país. Ela trabalhou dos oito até os 46 anos de idade sem salário e outros direitos assegurados, em Minas Gerais. Os trabalhadores resgatados têm direito a um seguro desemprego específico, no entanto não há uma legislação que especifique os caminhos a serem percorridos após o resgate. Não há previsão, por exemplo, sobre um abrigo para quem não tiver contato com a família.

“Isso é uma vergonha para o nosso país, o trabalhador resgatado tem direito de receber o seguro desemprego. Depois disso, não existe amparo do poder público. Ele ficou uma vida inteira ali naquela situação. Não existe uma rede de apoio, como de psicólogos, por exemplo. Na grande parte das vezes, ele retorna para o mesmo trabalho, porque ele não sabe para onde ir, não conhece outra forma de ganhar a vida”, pontua Marianna Lopes, mestranda e advogada na Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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De acordo com a profissional, a clínica atende pessoas resgatadas e entre os serviços que presta, está o de buscar abrigo para os resgatados. “Não existe uma política pública que defina os caminhos dessa pessoa, que dê um abrigo, já que ela estava morando naquele lugar e não tem para onde ir. A clínica está aqui para isso, para tentar satisfazer minimamente os direitos dessas pessoas”, explica.

Perfil racial

Outra falha em relação à legislação é a não exigência, por exemplo, de anotar o perfil racial dos resgatados. “Quando existe uma denúncia, o Ministério do Trabalho por meio dos auditores fiscais, averigua. O resultado disso vem no relatório que traz informações sobre jornada, condições, dos trabalhadores, etc. Ao final tem a conclusão se houve trabalho escravo. O grande problema é que os relatórios de fiscalização não são padronizados no Brasil, não existe a exigência de que se faça o perfil racial ou sócio-econômico. Alguns relatórios só trazem a quantidade de homens e de mulheres, se tinha estrangeiro”, frisa Marianna.

Mesmo sem informações para definir um perfil de pessoas resgatadas, a clínica atende na maioria homens negros. Mas isso também leva a outra falha: boa parte das fiscalizações são realizadas em áreas onde boa parte dos trabalhadores é homem, como pecuária, agricultura, construção civil, etc.

“Às vezes, o homem resgatado trabalha no campo e a mulher na casa. Nem sempre o trabalho dessa mulher é contabilizado como escravo. Isso contribui também para que homens sejam mais contabilizados nos relatórios. Como as fiscalizações estão concentradas nesses setores, os índices de trabalho doméstico, que sabemos onde as mulheres são maioria, sobretudo as negras, fiquem invisibilizados. É muito mais difícil uma fiscalização em um ambiente doméstico do que em uma fazenda, é mais difícil de que alguém denuncie.

Herança da escravidão

Para Lívia Miraglia, professora da Faculdade de Direito da UFMG e coordenadora da Clínica de Trabalho escravo e Tráfico de Pessoas, a situação é uma consequência histórica que precisa ser combatida. “Os quase quatro séculos de escravidão no Brasil continuam repercutindo hoje. No âmbito doméstico e rural é um resquício inequívoco do nosso passado escravocrata. As populações mais afetadas são as marginalizadas. A pobreza e a miséria levam as pessoas a essas situações, são questões ligadas à raça porque a pobreza no país tem cor”, analisa.

Ela conta que após o resgate é feito o atendimento do trabalhador e que o empregador deve garantir algumas despesas, como transporte. “Se morarem em outra região, o empregador é obrigado a pagar o transporte de volta para suas residências. Quando não tem ninguém, é necessário contar com as estruturas do estado que são extremamente precárias para auxiliar as pessoas. Por exemplo, a Madalena está abrigada na casa da assistente social e chegou a ir para a casa do auditor fiscal”, comenta a professora.

O artigo 149 do Código Penal brasileiro traz como elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida. Os elementos podem vir juntos ou isoladamente. Dentre os meios para fazer denúncias está o Disque 100 e o canal criado pela Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Economia (Detrae) disponivel aqui.

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