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Apropriação Cultural: qual é o limite entre brancos e negros

Os debates sobre apropriação cultural perduram por intermináveis linhas no universo digital, mas existem, de fato, culpados no fluxo cultural da humanidade?

29 de agosto de 2017

Os debates sobre apropriação cultural perduram por intermináveis linhas no universo digital, mas existem, de fato, culpados no fluxo cultural da humanidade?

Texto / Vinicius Martins
Imagem / Alma Preta

Uma pessoa branca pode ou não usar turbantes? E dreads? O hip hop e o rap estão ficando brancos? Vestimentas e símbolos tradicionais das culturas africanas estão sendo desrespeitados? Essas são algumas das perguntas que circulam as redes sociais no Brasil e nos Estados Unidos quando o debate sobre apropriação cultural ganha força.

O tópico gera discussões acaloradas e posturas bem polarizadas sobre o modo como a cultura negra é usada por brancos e, até mesmo, pelos próprios negros em uma interminável fila de textões e vídeos que percorrem a internet.

Em fevereiro deste ano, a jovem branca Thuane Cordeiro reacendeu o debate ao postar uma foto e um texto em que diz ter sido abordada por uma mulher negra por usar um turbante em uma estação do metrô de São Paulo. A jovem sofre de leucemia e usava o pano para cobrir a cabeça careca em decorrência do tratamento quimioterápico.

O caso levou a discussão sobre apropriação cultural no Brasil até aos noticiários nacionais e suscitou reações divergentes entre negros e brancos. Debate semelhante aconteceu em março de 2016, nos Estados Unidos.

Uma mulher negra, funcionária da San Francisco State University confrontou um estudante branco por estar usando dreads enquanto andava na universidade. A situação filmada e postada na internet por um dos estudantes da instituição criou debates na web norte-americana, também com grande repercussão.

Na imprensa em geral, as controvérsias sempre retornam toda vez que um famoso ou famosa branca reaparece com um visual diferente, quase sempre usando dreads, tranças nos cabelos ou vestimentas que remetem às culturas negras. Justin Bieber, Kylie Jenner e uma festa inteira da Vogue, entre outros, já foram criticados por mudarem o visual dessa forma.

Nesta semana o debate voltou à tona após as primeiras imagens de um novo videoclipe de Anitta mostrarem a cantora usando tranças enquanto anda pelo Vidigal na Zona Sul do Rio de Janeiro. O direito de Anitta aparecer de tranças levantou questões até que ponto ela seria branca ou negra o suficiente para usar o cabelo daquela forma entre internautas nas redes sociais.

O rap norte-americano e o rap nacional também se debruçam sobre a questão a partir do recente debate em torno do embranquecimento do gênero musical, em que artistas brancos começam a chamar mais atenção e receber mais prêmios do que os rappers negros que sempre estiveram nas cenas do hip hop.

No entanto, depois milhares de curtidas, compartilhamentos e comentários, ainda não há consenso sobre o que é de fato apropriar-se de uma outra cultura e por que isso tem a ver com racismo. Afinal, qual a importância desses debates e de quem é, de fato, a culpa pela apropriação cultural?

Contextos

Compreender essas questões vai muito além de saber quem usa ou deixa de usar símbolos negros ou heranças culturais africanas. O contexto em que esses usos acontecem é o que dá o tom para perceber o que é e o que não é apropriação.

“O empréstimo cultural pode tornar-se apropriação quando reforça relacionamentos historicamente exploradores ou priva os países africanos de oportunidades de controlar ou se beneficiar de seus materiais culturais”, explica Funmi Arewa, professora de Direito da Universidade da Califórnia (Irvine) e especialista em propriedade intelectual e direito autoral.

Para ela, o processo de apropriação cultural vai além dos indivíduos e existem questões estruturais que dão base para esse fenômeno. Segundo a pesquisadora, no caso das culturas negras, há um “legado histórico de extração” e acrescenta: “o colonialismo facilitou a extração generalizada de recursos naturais, de saques culturais tangíveis e de conhecimento intangível”.

Durante a dominação europeia, no processo de formação de colônias na África, a produção cultural local foi um dos principais alvos dos povos colonizadores. Como é o caso dos Bronzes do Benim, criados pelos povos Edo no século XIII e saqueados pela dominação britânica a partir de 1897.

Trata-se de uma coleção com milhares de peças de bronze que integravam os palácios reais do reino independente do Benim, atual República do Benim, localizada na África Ocidental.

Além de roubar as peças, os colonizadores britânicos invadiram o reinado, queimaram prédios, mataram pessoas e exilaram o rei Oba, dando fim ao império que vivia ali.

Boa parte dos bronzes e de outras produções culturais foram vendidas no mercado europeu privado de arte. Outras ficaram sob posse de galerias como a sala 25 do centenário Museu Britânico, em Londres. Alemanha e Estados Unidos também guardam peças oriundas do reino.

Mais de 100 anos depois, poucos artefatos foram devolvidas ao atual Benim. Ainda assim, seu valor nos mercados de arte se mantém em alta. Em 2010, uma máscara da coleção foi avaliada em 4,5 milhões de libras em uma tentativa de venda da Sotheby’s, empresa multinacional especializada em leilões.

Bronzes do Benim exibidos no museu de arte e design Victoria & Albert, em Londres (Foto: Wikimedia Commons)

“As desigualdades evidentes no colonialismo facilitaram a apropriação cultural e outras formas de apropriação. Tanto a apropriação cultural como o colonialismo europeu estão intimamente ligados a hierarquias de cultura, raça e poder. Essas hierarquias estabeleceram o contexto e as interações moldadas entre o colonizador e colonizado notáveis ​​em muitos contextos do século XIX na África, por exemplo.”, afirma Funmi.

Tal dinâmica se mantém até hoje nas relações internacionais entre potências hegemônicas e nas relações raciais entre brancos e negros. As assimetrias de poder racial geradas pela exploração colonial colocam em evidência uma série de outros contextos a serem avaliados no amplo debate sobre empréstimos versus apropriação, segundo Funmi Arewa.

“O que constitui a apropriação pode estar sujeito a debates significativos, particularmente em contextos contemporâneos de empréstimos culturais. Como resultado, o que alguns podem chamar de apropriação cultural pode parecer uma prática diária para outros. O contexto é um aspecto fundamental para avaliar quais empréstimos podem ser apropriação cultural” explica.

Para Rosane Borges, pesquisadora em Comunicação e professora do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americano em Comunicação e cultura) da USP, um desses contextos passa por entender o que delimita a fundação de uma cultura.

“A gente pode definir apropriação como apagamento dos protagonistas de um produto cultural. Eu acho que a discussão, a definição de apropriação cultural só tem sentido quando há um apagamento dos marcos fundantes de uma cultura que ganha uma dinamicidade nas estruturas sociais”, explica.

No caso do Brasil, entender a apropriação cultural passa por analisar as diversas raízes culturais e a forma como elas são tratadas com diferentes pesos e medidas no contexto de construção da identidade brasileira tal como conhecemos hoje.

A origem da apropriação cultural no Brasil

Entre os diversos povos que constituem a herança cultural e humana da África no Brasil destacam-se os sudaneses, os bantus e os negros-maometanos. Ainda assim, a diversidade desses povos costuma ser homogeneizada ao tratarmos das culturas que formam o Brasil.

Frequentemente é possível rastrear e definir com precisão as heranças brancas e europeias presentes no país: cultura portuguesa, cultura italiana, cultura espanhola, entre outras. Na contramão, bantus e sudaneses, por exemplo, não são citados ao nos referirmos às culturas negras.

“As pessoas, os poderes, os grupos raciais hegemônicos, eles advogam e eles defendem o seu patrimônio cultural do ponto de vista do protagonismo e da elaboração cultural desses produtos deles enquanto sujeitos”, afirma Rosane Borges.

E completa que essa homogeneização não é exclusividade das culturas negras: “é preciso que do ponto de vista do poder, que a gente tenha as designações, porque, normalmente, as pessoas quando consomem cultura indígena, a arte indígena, quando elas reconhecem, elas dizem que é a arte indígena, elas não dizem, ‘essa arte é Macuxi, essa arte é Guarani, essa arte é Pancararu’, não, se dilui tudo na cultura indígena”.

Falar da herança africana no Brasil atual é falar da cultura negra como algo único e homogêneo, sem considerar suas peculiaridades ao tratarmos de outros povos presentes na história do país.

O antropólogo João Baptista Borges Pereira dedicou algum tempo de estudo a esse debate. Para ele, esse é apenas um dos processos responsáveis pelo afastamento do cidadão negro de suas culturas de origem.

“No jogo da oposição branco-negro, as especificidades culturais ou étnicas perdem sentido na medida em que todas as manifestações de cultura não identificadas ao grupo branco passam a ser julgadas como de negros, sem distinção de eventuais nuances culturais”, afirma o pesquisador no artigo “Negro e cultura negra no Brasil atual” publicado nos anos 80.

Ao longo dos anos, o processo de colonização diluiu a diversidade étnica e racial dos negros trazidos ao Brasil. Segundo o autor, a pele escura passou a ser tratada como “negro-escravo” até a abolição e “negro-cidadão” no pós 1888. Da mesma forma, as diferentes culturas negras presentes em terras brasileiras tornaram-se uma coisa só.

Essa é a base para o segundo processo de afastamento do negro de suas culturas: uma onipresença da identidade negra na imagem cultural do Brasil a despeito da baixa presença de negras e negros em espaços de poder político, econômico e social.

“A onipresença da variante cultural negra na cultura brasileira serve, sob medida, para reforçar o mito da democracia racial com dados irrefutáveis, ao demonstrar não haver quaisquer restrições no Brasil a ‘coisas de negros’”, afirma João Baptista.

Rosane Borges complementa que o mito da democracia racial e o discurso de mestiçagem sempre estiverem presentes nas discussões culturais do Brasil: “a miscigenação, a mistura, ela sempre foi o signo utilizado para atestar a ausência de racismo. Como é que ele [o discurso da democracia racial] se sustentou? Ele se sustentou pela via cultural. Nós somos um país inevitavelmente assimilacionista do ponto de vista da cultura”.

Em sua análise, João Baptista acrescenta que há uma grande receptividade diante da cultura negra, mas sempre acompanhada de um exotismo.

“Na verdade, a cultura brasileira revela grande receptividade no tocante às influências negras, e, os brasileiros – principalmente os da classe média para cima – encontram na adoção de elementos culturais negros uma forma de cultivar certo esnobismo, que os fazem ora diferentes, ora exóticos, ora muito democráticos em relação às minorias injustiçadas”, escreve.

A era Vargas visou a criação de uma unidade cultural para o Brasil (Foto: Wikimedia Commons)

Durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas, a primeira noção ampla de identidade nacional foi criada por um governo no país, levando em conta, sobretudo, o caráter mestiço do Brasil. Até então, os governos republicanos anteriores foram adeptos de políticas sistemáticas de branqueamento da população negra após a abolição da escravidão. A cultura negra, apropriada culturalmente pelo Estado, passa a integrar o imaginário da identidade nacional.

“O que é que a gente tem até 1930? Um país sem uma fisionomia identitária, um país envergonhado, porque a maioria era negra, um país que fracassa nas suas teorias racistas do final do século XIX e que passa a positivar aquilo que ele não conseguiu extirpar”, afirma Rosane Borges e completa: “então, ele positiva adotando a dimensão cultural como nexo importante, como uma dimensão importante, e amortecendo assim as possíveis tensões nesse plano cultural. Uma ideia inclusive de cordialidade, a ideia do povo festeiro, do povo alegre”.

A formação racial do Brasil e o contexto racial brasileiro oferecem alguns exemplos ao longo da história para a interpretar esse debate. O samba, a capoeira, as religiões de matriz africana e até mesmo territórios ocupados pela população negra cabem na pauta sobre apropriação.

Da folclorização à apropriação

A partir da homogeneização e da onipresença da cultura negra um novo fenômeno é observado na tese de João Baptista Borges Pereira. A folclorização cultural tanto dos costumes quantos dos indivíduos negros.

Tal movimento produz uma dimensão exotizada da pele escura e da sua cultura, ligado à ideia de falta de seriedade e leviandade, de forma que gera estereótipos negativos em relação aos corpos negros.

Estigmas como a malandragem, a preguiça e a magia se acirram nesse processo em diversos segmentos representativos da herança africana no Brasil.

A folclorização também afeta espaços ligados à sociabilidade negra como escolas de samba, centros de capoeira, terreiros de umbanda e de candomblé. A despeito de sua importância cultural e da herança que carregam, esses locais e suas práticas ganham outro caráter quando interpretados e consumidos por outras esferas da sociedade brasileira.

“Para a sociedade brasileira, que incorpora ortodoxamente uma visão de fora, tudo isso é rotulado como divertimento, manifestações exóticas do ‘ser’ brasileiro, material adequado para ser explorado pelas indústrias de lazer onde se destacam os mecanismos de comunicação de massa”, afirma João Baptista em seu artigo.

No plano da estrutura cultural do Brasil, a apropriação da cultura negra percorre o caminho de governos e mercados. O lazer, o turismo, as indústrias e o comércio aparecem como fatores de influência no processo de apropriação.

Entre as consequências, é possível perceber os significados originais de símbolos e territórios culturais tomarem a dimensão de produto e mercadoria para uma audiência consumidora. O exemplo do turismo se adequa a essa lógica.

“As agências, além de se apropriarem de bens culturais, canalizando-os para si como bens econômicos, ainda impõem, direta ou indiretamente, alterações nessas práticas culturais visando adequá-las às exigências de sua plateia ou clientela”, reflete João Baptista.

A pesquisadora Rosane Borges explica que isso é um processo inevitável na estrutura capitalista do mundo: “eu gosto muito de uma frase do [Walter] Benjamin que diz o seguinte ‘o capitalismo coloniza tudo, ele só não coloniza o que a gente tem de mais esquisito’. Então, a gente vê que do ponto de vista da difusão de determinadas práticas e do consumo dessas práticas culturais, o mercado se apropria, ele reelabora e isso é inevitável num mundo capitalista”.

Representação da capoeira, enquanto atividade proibida, no Rio de Janeiro (Imagem: Augustus Earle/Wikimedia Commons)

Até mesmo em sentido mais amplo, o mercado influencia a territorialidade física e simbólica da cultura negra. Nesse sentido, o protagonismo e a ocupação territorial dos espaços pode ser afetada. Um exemplo é a especulação imobiliária em bairros ou territórios originalmente pertencentes às comunidades negras, através de processos de gentrificação.

“Em geral, as instituições negras localizam-se em áreas periféricas, que foram valorizadas pelo avanço da cidade, tornando-se grande atrativo para os especuladores imobiliários, com os quais os negros não têm condições econômicas de competir”, afirma o antropólogo João Baptista.

Exemplos que ilustram essa dinâmica podem ser encontrados nas remoções na Vila Autódromo para as Olimpíadas do Rio, em 2016, ou na saída da escola de samba da Vai-Vai de seu local histórico, devido a chegada de um metrô na região do Bixiga em São Paulo-SP.

A professora da Universidade da California (Irvine), Funmi Arewa, complementa que os usos culturais envolvendo o mercado capitalista no mundo normalmente não reconhecem as fontes originárias da cultura, seja ela simbólica ou física.

“Esses usos são muitas vezes mais problemáticos porque podem envolver usos em contextos institucionais onde as fontes de empréstimos não são devidamente reconhecidas e para as quais não é paga uma compensação adequada. Vimos muitos exemplos desse tipo de apropriações nos contextos históricos dos usos da música afro-americana. Esses tipos de usos geralmente devem ser questionados e contestados, inclusive através de meios legais e outros”, reflete.

Na música: do Rock ‘n’ roll ao Rap, do Samba ao Axé

Nos anos 50, Sam Phillips, presidente da gravadora Sun Records, tinha uma ambição: apresentar a América branca à música negra. “Se eu pudesse encontrar um homem branco que tivesse o som negro e o feeling negro, eu poderia fazer um bilhão de dólares”, teria dito Phillips. Ele sempre negou essa declaração publicamente, ainda assim, seus objetivos se concretizaram.

No amplo processo de apropriação cultural, a música negra se coloca como um campo central para observação em diversos segmentos.

O Rock ‘n’ Roll é um dos casos mais marcantes. Nasceu nos anos 50 nos EUA segregado, dentro das comunidades negras e evoluiu do blues afro-americano, aglutinando elementos do Jazz (também afro-americano) e do Country.

Artistas como Sister Rosetta Tharpe, Chuck Berry, Little Richards e Bo Didley obtiveram grande sucesso em meados dos anos 50 ao popularizar os chamados “race records”, denominação aplicada às canções escritas e interpretadas por negros nos EUA durante o período de segregação racial.

Da esqueda para a direita: Sister Rosetta Tharpe, Bo Didley, Chuck Berry, Black Merda e Jimi Hendrix (Imagem: Vinicius Martins/Alma Preta)

Por algum tempo, o gênero viveu marginalizado na sociedade americana segregacionista associado à população negra, supostamente por incentivar “danças muito sensuais” e ter proximidade com o consumo de álcool e outras drogas. Algo semelhante ao que acontece com o funk no Brasil.

No entanto, os jovens das classes médias foram conquistados pelo novo ritmo oriundo das comunidades negras, em um período de ampliação de um mercado de consumidores que mirava a juventude branca norte-americana.

Para atender à demanda desse novo grupo de consumo em potencial, diversas gravadoras, entre elas a Sun Records, popularizam artistas brancos dentro do gênero: Elvis Presley, Beach Boys, Bill Haley and His Comets e Jerry Lee Lewis são alguns exemplos.

Pouco a pouco, o mercado foi tomado pela popularidade de bandas e cantores brancos; Elvis tornou-se Rei do Rock. Em 10 anos, o Rock ‘n’ Roll havia sido assimilado pela lógica de produção cultural capitalista da época.

Nos anos 60, os maiores artistas do gênero eram todos brancos, influenciados pela cultura negra passada. Como exemplo pode-se citar as bandas inglesas Beatles, os Rolling Stones e o Cream, além das americanas The Doors e Jefferson Airplane. Entre os negros, no mainstream, apenas Jimi Hendrix e a banda multirracial Sly and the Family Stone.

Ao longo do tempo de hegemonia musical do Rock, poucas bandas negras chegaram aos holofotes do mainstream. Destacam-se aqui o grupo de hard rock/funk metal Living Colour, o hardcore do Bad Brains e as múltiplas influências de Lenny Kravitz.

A pesquisadora Funmi Arewa analisa que no caso da música a mercantilização e a apropriação estão intimamente ligadas, sobretudo após o fim das escravidões na América, sendo uma das bases para a ampliação do racismo.

“Durante o século XX, vimos uma significativa mercantilização da música afro-americana, que se tornou uma fonte dominante de música popular em todo o mundo. Nós também vimos os padrões contínuos de exclusão de músicos afro-americanos na esfera da música de maneiras variadas ao longo do tempo. Esses padrões de exclusão frequentemente refletiram as assimetrias de poder e o racismo”, explica.

Processo semelhante aconteceu com o samba no Brasil. Criado a partir das raízes negras brasileiras, ele foi criminalizado desde o período escravocrata. As elites brancas brasileiras frequentemente associavam o gênero à bagunça e à desordem.

O samba também era mal-visto por desafiar valores morais do conservadorismo brasileiro. Muitos sambistas foram perseguidos pela polícia no início do século XX. Ser negro e andar com um pandeiro na rua poderia ser motivo suficiente para passar uma noite na cadeia pela Lei de Vadiagem. Algo que perdurou até os governos de Getúlio Vargas na década de 30.

Mesmo assim, o gênero resistiu ao longo do tempo, ainda que dentro de uma lógica racista. Para isso teve que ser assimilado pela indústria fonográfica para entrar no mercado cultural e se adequar a novos padrões estéticos. É a partir daí que surgem artistas brancos como Ary Barroso, que traziam características mais sinfônicas e ufanistas, como na música Aquarela do Brasil.

Grupo de samba no Rio de Janeiro em 1936 (Foto: Wikimedia Commons)

O mesmo processo atinge gêneros musicais mais recentes na discussão sobre apropriação cultural. Em que a origem negra não é suficiente para manter o protagonismo negro de forma justa.

A professora do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americano em Comunicação e cultura) da USP, Rosane Borges, cita o caso do Axé baiano, em que os nomes mais conhecidos na indústria são representados por mulheres brancas.

“A gente sabe que a Bahia, Salvador, o estado e uma cidade que uma de suas sínteses é a cultura negra. Ora, como um estado que tem uma cultura negra tão pujante não são os personagens negros que aparecem na cena globalizada? Porque eu sempre costumo insistir que o problema não é existir a Cláudia Leite nem a Ivete Sangalo. [O problema] é só elas serem as representativas da música baiana”, afirma.

Mais recentemente, o caso do Rap veio à tona no Brasil e nos Estados Unidos. Desde seu surgimento e consolidação nos EUA, nos anos 70 e 80, até à chegada ao Brasil nos anos 90, o estilo manteve-se hegemonicamente negro.

A lista de artistas americanos e brasileiros que fizeram história no Rap é interminável. No entanto, o crescimento do Rap e do Hip Hop na indústria da cultura tem feito o jogo mudar. Segundo a RIAA (Associação das Indústrias Fonográficas da América na sigla em inglês), o gênero movimenta cerca de 1,5 bilhões de dólares por ano.

Parte da consequência é o surgimento de artistas brancos com cada vez mais evidência. Em 2014, os rappers brancos Macklemore e Ryan Lewis levaram as premiações de melhor música, melhor álbum e melhor performance de rap do ano contra artistas como Drake, Kanye West, A$AP Rocky e Kendrick Lamar no Grammy Awards daquele ano.

O jornalista Jair Cortecertu dos Santos, em artigo para o Alma Preta, acredita que o Rap tem cor e que ele está intimamente ligado à estrutura racial em que está inserido: “o rap tem cor sim, brancos e negros fazem rap de maneiras diferentes, não falo de qualidade, falo de temas moldados pela vivência sob um racismo estrutural, onde o branco representa o poder e a normalidade… E o negro se insere e questiona tudo que para o branco é algo natural”.

Ele também argumenta que há uma diferença na forma como brancos e negros tratam o Rap atualmente: “o artista branco pode fazer seu rap totalmente alheio aos problemas vividos pelos negros brasileiros, sem sofrer ou ver seus semelhantes (outros rappers brancos) sofrerem alguma consequência”.

Estrutura versus indivíduo

Em entrevista recente, o rapper Emicida declarou que, como produtor cultural, ninguém tem o direito de dizer o que ele pode ou não usar em seu trabalho. Sua declaração traz a tona um processo constante na humanidade: as trocas e os empréstimos entre indivíduos e culturas são incessantes e, segundo a especialista em comunicação, Rosane Borges, inevitáveis.

“O processo de ressignificação das culturas faz com que a gente reelabore de tal modo que a origem não é algo imutável. É isso que é a grande questão da cultura. A cultura se reelabora e se ressignifica inclusive do ponto de vista endógeno, ou seja, do ponto de vista dos grupos que fundam determinada cultura, daquela matriz fundante”, afirma.

Então, se a cultura está em constante transformação e movimento, há possibilidade de controlar o que indivíduos usam ou deixam de usar? Para a pesquisadora de propriedade intelectual e direito autoral, Funmi Arewa, é impossível limitar os usos individuais que brancos e negros fazem de uma cultura.

“Não acho que possamos ou devamos proibir pessoas brancas de usar dreadlocks ou turbantes. Também não penso que possamos ou proibiremos os afro-americanos de usar moda ou penteados africanos. Em contextos não comerciais de escolhas individuais, o melhor que podemos fazer é tentar espalhar informações para encorajar um diálogo sobre como certas escolhas sobre cabelo e roupas podem ser vistas como ofensivas para os outros”, reflete.

Para além das influências estruturais de Estados e mercados nesse debate, no plano individual a apropriação cultural movimenta argumentações intensas. As diversas polêmicas que circulam no ambiente virtual costumam mirar usos específicos da cultura negra.

A utilização de símbolos como dreads, turbantes, expressões religiosas e a composição racial no hip hop ganham pesos e medidas diferentes de acordo com a cor. Rosane Borges acredita que individualizar a questão não é a melhor saída, ela considera que discussões nesse plano são improdutivas.

“Eu não posso reduzir que é complexo a uma dimensão individual, porque eu não posso dizer que uma pessoa branca não pode ir pro candomblé, por exemplo. Porque se a gente toma isso como parâmetro, eu também, como mulher negra, não posso partilhar, participar, de outras práticas culturais, que não são fundantes, que não são da minha matriz da minha origem racial negra”, expõe.

A jornalista inglesa Zipporah Gene debate a questão cronicamente nas redes. Ela avalia que as tentativas de individualização estão mais relacionadas à uma tentativa de desabafo sobre um problema que é maior que os indivíduos envolvidos.

“Nunca vi apenas uma coisa (ou seja, dreads, por exemplo) como propriedade de uma cultura única sobre outra. Então, quando vejo pessoas que discutem essas questões na internet, pessoalmente falando, acho que isso não é verdade. Chegamos a um ponto em que algumas pessoas muito irritadas só querem ser ouvidas e, portanto, esses ataques irritados são inevitáveis”, relata.

Funmi Arewa acredita que a atenção do debate deve se concentrar nas estruturas desiguais de poder entre brancos e negros, que sustentam o racismo e as desigualdades. Para ela, apesar das possibilidades de apropriação, a inventividade humana sempre dependeu das trocas culturais entre humanos.

“A exposição ao não-familiar e a criação de formas culturais híbridas a partir dessa exposição são aspectos importantes da criatividade humana. O empréstimo é um elemento-chave da cultura”, afirma.

E completa: “o empréstimo pode às vezes tornar difícil conhecer as origens das coisas que consideramos fazer parte da “nossa” cultura. Sem empréstimo, não teria hip hop e outras formas de música que surgiram ou que tenham sido fortemente influenciadas pela cultura afro-americana, pelo menos na sua forma atual”.

 

  • Vinicius Martins

    Jornalista formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). É sócio e cofundador e diretor multimidia da Alma Preta Jornalismo. Antes, foi jornalista de vídeo na Folha de S.Paulo e gestor multimeios no Instituto Vladimir Herzog.

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