Em 1880, o escravizado Damião virou manchete do jornal Diario de Pernambuco depois de matar um feitor do Engenho Cangaça, onde trabalhava, em São Lourenço da Mata. É na cidade, que fica há 19 km do Recife, que vive o artista Hórus, um jovem que, ao pesquisar e conhecer sobre a história de Damião, resolveu torná-la fonte de inspiração para uma letra que reflete sobre reparação histórica para o povo negro. O clipe, disponível no seu canal no YouTube, a partir das 16h deste sábado (26), conta com a participação especial do MC Rimocrata e foi produzido de forma independente e teve como cenário a Zona Rural de uma cidade que ainda carrega fortes marcas do período escravocrata.
André Artur é o nome de batismo de Hórus, que é rapper, beatmaker, designer, produtor e iniciou sua carreira musical em 2012, aos 13 anos de idade. Jovem engajado nas pautas raciais, seu trabalho carrega forte teor político desde 2016, quando lançou seu primeiro trabalho solo intitulado “Don’t Look Back”, que foi seguido por Palace II, em 2017, e Anti Arte, em 2018. Com o single “Damião”, o artista questiona as bases racistas que estruturam a sua cidade natal.
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Com a participação de Rimocrata, outro rapper pernambucano, a música tem como tema central a importância de promover reparação para o povo preto brasileiro. A história de Damião, que se rebelou contra seu feitor, é exaltada como um exemplo de reação negra contra a dominação branca, uma forma de emancipação, quando o oprimido enfrenta o opressor. “Reparação vai ser na marra até que tenhamos paz, terra e pão”, diz a letra.
O refrão do EP “Damião”, cantado e escrito por Hórus, carrega a referência de uma música de mesmo título do Douglas Germano, dedicada a Damião Ximenes Lopes, que morreu no dia 4 de outubro de 1999, na Casa de Repouso Guararapes, vítima de tortura, haja vista ambos os artistas legitimam a violência em busca de justiça/vingança.
“Estou feliz de ter realizado esse trabalho. Eu comecei a estudar sobre a história de São Lourenço em 2018 e aqui não existe biblioteca pública nem da prefeitura. “Pesquisando na Biblioteca Pública Digital, encontrei esse jornal do Diario de Pernambuco, de 22 de outubro 1880, o qual tinha essa manchete falando que o português Moreira foi assassinado a caminho do Engenho Cangaçá e o acusado foi o escravo Damião. Isso é há menos de 500 metros da minha casa e do meu estúdio. Achei uma parada muito forte e achei que ele merecia essa música”, conta.
São Lourenço da Mata, onde viveu Damião, é considerada a capital do Pau Brasil, responsável pelo primeiro ciclo econômico do país e que viabilizou a exploração de povos indígenas e africanos. A cidade tem em suas raízes fortes marcas de uma sociedade escravocrata chegando a contabilizar 28 engenhos de cana de açúcar com a produção de mão de obra escrava, o que é ilustrado nos versos: “Vermelho na roupa não é Pau Brasil / Nós não trabalha mais nesses canaviais / Respeita minhas tranças e meu candomblé / Meus tambores vem com força desses ancestrais”.
A música também aborda referências diversas do campo de estudo do racismo estrutural e institucional. Dessa forma, nomes como Mohamed Ali, Malcom X, Jordan Peele, Franz Fanon e Thomas Sankara também são referenciados na letra. Hórus também faz críticas a indústria cultural das massas que dá palco à programas televisivos/de reality show que violenta o corpo negro em razão do entretenimento.
O clipe tem direção assinada por Cleiton Oliveira, Maria Beatriz (roteirista) e Paulo Victor (câmera e edição de vídeo). O filme também exalta a importância da capoeira como elemento fundamental de resistência negra africana no Brasil e que foi representada pelas participações dos capoeiristas Felipe Oliveira da Paixão, fundador do Quintal Capibaribe (espaço cultural e de economia criativa) e Kuey Rafael, integrante do grupo Angoleiros do Sertão, fundado na Bahia, mas que possui um núcleo na cidade de São Lourenço da Mata desde 2018. Os personagens principais são interpretados pela atriz Fabíola Tayane, do Coletivo Mulheres na História, e os atores Felipe Daren e Marcos Coutinho.
“O projeto em si é muito bonito porque as pessoas que participaram já trazem e carregam lutas, projetos de reparação e conservação da nossa história”, pontua Hórus. Para ele, contar a história de Damião é uma forma de honrar a ancestralidade e luta por dignidade para o povo negro. “Damião, provavelmente, morreu achando que a escravidão nunca ia acabar e nunca passou pela mente dele que alguém ia fazer uma música em homenagem a ele”. O trabalho de Hórus é mais um exemplo da potência dos artistas negros nordestinos, legado da luta de homens como Damião.