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Mercedes Baptista: primeira bailarina negra a criar coreografias para o Salgueiro

Precursora da dança afro coreografada no Brasil, a carioca revolucionou os desfiles das escolas de samba e teve papel fundamental na valorização da cultura negra

Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Foto: Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

16 de fevereiro de 2023

Pioneira e revolucionária. Essas são umas das palavras que definem Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro a criar coreografias artísticas para a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro.

Responsável por transformar os desfiles do carnaval carioca, Mercedes nasceu em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, e, ainda jovem, se mudou com a mãe para a capital carioca onde trabalhou como empregada doméstica, operária em uma fábrica de chapéu e na bilheteria de um cinema. Em 1945, ela se encontra na dança quando passou a frequentar a Escola de Dança da bailarina Eros Volúsia, reconhecida por unir as danças populares ao balé erudito.

Em 1948, Mercedes é aprovada em um concurso e passa a integrar o balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo a única bailarina negra da turma. Mesmo com destaque na companhia, Baptista era vítima de racismo e por isso era pouco escalada para participar das principais apresentações do Municipal.

Foi por meio do movimento negro que Mercedes conheceu o multiartista Abdias do Nascimento e passou a integrar o Teatro Experimental do Negro, iniciativa voltada para fomentar a inserção e protagonismo dos atores negros nos palcos. No grupo, ela idealizava coreografias para as apresentações e fazia a preparação corporal de atores como Ruth de Souza, Haroldo Costa e Santa Rosa.

No início dos anos 1950, ganhou uma bolsa de estudos nos Estados Unidos com a bailarina e pioneira da dança negra norte-americana, Katherine Dunham, que fez uma apresentação no Brasil e conheceu a jovem no Teatro Experimental do Negro. Um ano depois, Mercedes volta ao Brasil e monta o seu próprio grupo, o “Balé Folclórico Mercedes Baptista”, inspirada em implementar elementos africanos e da dança popular no balé brasileiro.

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A relação com o Teatro Experimental do Negro foi um dos pontos cruciais da carreira da Mercedes Baptista, segundo conta o coreógrafo e pesquisador em cultura afro-brasileira, Evandro Passos. “Costumo dizer que foi uma parceria muito feliz o encontro da Mercedes com o Abdias porque quando ela volta dos Estados Unidos e cria o balé afro, ela tenta retomar também para o Municipal, só que ela viu que lá não tinha mudado nada, o racismo lá continuava do mesmo jeito e o Abdias falou com ela: ‘Pô, para de sofrer Mercedes. Se une a nós’, e ela imediatamente se uniu ao Abdias”, destaca o pesquisador, autor do livro “Dança Afro-brasileira: Identidade e ressignificação negra”.

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Apesar de dizer que não tinha religião, a relação de Mercedes com o candomblé se deu a partir da dança e foi construída com muitas pesquisas em terreiro, auxiliada pelo bailarino Gilberto de Assis. De acordo com o pesquisador Evandro Passos, o trabalho foi importante por levar aos palcos uma releitura da cultura popular e africana.

“Por isso que a gente fala dança afro coreografada porque, na realidade, a dança afro já existia: a dança dos orixás, a capoeira. Não quer dizer que a dança afro começou com a Mercedes, é a dança afro coreografada. Ela começou a colocar o orixá no palco, o maracatu, a dança do café, não como grupo parafolclórico, mas com uma releitura sem perder a essência”, explica.

Além de ter sido precursora da dança afro coreografada no Brasil, a carioca revolucionou os desfiles das escolas de samba e teve papel fundamental na valorização da cultura negra. Um dos destaques da carreira de Baptista se deu na década de 1960, quando passou a integrar a ala dos carnavalescos da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro contribuindo para a incorporação de novos elementos aos desfiles, como a presença de alas coreografadas no conjunto das escolas de samba.

Foi em 1963, que Mercedes coreografa a comissão de frente do Salgueiro e integra o emblemático desfile em homenagem à Chica da Silva, que contou com bailarinos negros dançando o minueto, uma dança europeia de origem aristocrata. A apresentação gerou polêmica e Mercedes Baptista chegou a ser chamada de “maluca” e que estava “desvirtuando o samba”, segundo os críticos brancos da época.

chica da silva salgueiroDesfile do Salgueiro com tema “Chica da Silva”, 1963 | Foto: Divulgação

Conforme o pesquisador Evandro Passos, com o desfile, a coreógrafa colocou o corpo negro em outro patamar ao romper com estereótipos e abriu diversas possibilidades de dança para esse público. “A partir daí, o corpo negro, nessas escolas, é visto de uma outra forma. Então não é só mais a ‘mulata’, o que chama a atenção hoje são as alas coreografadas, as comissões de frente com balé, montando verdadeiros espetáculos na avenida”, afirma Passos.

Com uma carreira marcada por pioneirismo, Mercedes também foi responsável por introduzir a disciplina de Dança Afro-Brasileira na Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, além de ter ministrado diversos cursos fora do Brasil. Mercedes Baptista faleceu no dia 19 de agosto de 2014, aos 93 anos de idade. Desde 2016, uma estátua em homenagem à bailarina está exposta no Largo de São Francisco da Prainha, na Praça Mauá, no Rio de Janeiro.

site estatua mercedes EliasTheHorse Wikimedia CommonsEstátua em homenagem à Mercedes Baptista na praça Mauá, RJ | Foto: Elias The Horse/ Wikimedia Commons

Legado

Na árvore genealógica da dança afro, o bailarino Evandro Passos é “neto” de Mercedes Baptista e “filho” da coreógrafa Marlene Silva, pioneira na dança afro em Belo Horizonte (BH) e aluna de Baptista, que a inspirou a romper as barreiras impostas pelo racismo.

Nos anos 1970, Marlene fundou uma escola de bailarinos negros em um bairro de classe média de BH, o Santo Antônio, ocupada majoritariamente por pessoas brancas. Ela também foi a responsável por coreografar a atriz Zezé Motta para o filme “Chica da Silva”, de 1976, e por impulsionar o carnaval de rua em Belo Horizonte. A coreógrafa faleceu em abril de 2020, aos 83 anos.

marlene silva divulgacaoA coreógrafa e bailarina Marlene Silva foi responsável por impulsionar o carnaval de rua em Belo Horizonte | Foto: Divulgação

Foi na escola de Marlene que Evandro decidiu dedicar a sua carreira artística e acadêmica às manifestações africanas. Atualmente ele faz doutorado com o tema “Danças negras na diáspora”, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e possui uma companhia de dança onde repassa para outros jovens negros o legado das bailarinas referências na sua trajetória.

“A gente vê que mesmo o balé folclórico Mercedes Baptista não ter conseguido se firmar, assim como o Teatro Experimental do Negro – por causa de retaliações, falta de patrocínio –, o legado desses grupos estão até hoje quando a gente vê o Bando de Teatro Olodum, a Companhia dos Crespos, a minha companhia de dança, que se inspiraram nesses grupos”.

evandro passosO coreógrafo e pesquisador Evandro Passos faz doutorado com o tema “Danças negras na diáspora” e possui uma companhia de dança | Foto: Arquivo Pessoal

Para ele, a importância de Mercedes Baptista se traduz no repasse da herança africana por meio da dança. “O principal legado da Mercedes é que os nossos corpos negros podem dançar o que nós quisermos dançar. Não é à toa que ela foi a primeira bailarina negra do Municipal, ela só não dançava por causa da cor da pele”, completa.

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