O Brasil, país reconhecido mundialmente pela cultura negra pulsante, ainda não tem, perante um microcosmo oligárquico representado pela Academia Brasileira de Letras (ABL), suas raízes legitimadas. De acordo com a professora doutora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora em literatura negro-brasileira e africana de língua portuguesa Vanessa Teixieira, a escolha do ícone da música popular e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, para uma cadeira, 124 anos após a fundação da Academia, em 1897, evidencia “a constituição de uma sociedade brasileira patriarcal, racista, machista e colonial que continua mantendo as relações de superioridade e inferioridade entre as pessoas.”
Com 21 dos 34 votos possíveis, Gil foi eleito para a cadeira número 20 da ABL, vaga que ficou disponível com a morte, em 27 de maio do ano passado, do jornalista Murilo Melo Filho. Os outros dois concorrentes foram o poeta Salgado Maranhão e o escritor Ricardo Daunt. Com Gil, apenas três homens negros ocuparam um lugar no Olimpo da literatura, dentre eles, um dos fundadores da casa, Machado de Assis e o escritor Domício Proença Filho, que foi eleito em 2006 para a cadeira 28, suscedendo o acadêmico Oscar Dias Corrêa. Até hoje, nenhuma mulher negra foi agraciada com o título de imortal.
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Para Vanessa Teixeira, a Academia Brasileira de Letras é uma instituição oriunda de articulações sociais centenárias que são base das relações brasileiras até hoje. “Embora, não represente os brasileiros, a ABL é a cara do Brasil, porque mantém sistematicamente essa existência herdeira da elite escravocrata brasileira”, diz a especialista.
Em declaração pública sobre a entrada de Gil na instituição, o presidente da ABL, Marco Lucchesi, utilizou uma metáfora do sociólogo, escritor e político brasileiro Darcy Ribeiro. “Para Darcy, o pássaro da cultura tinha duas asas. Uma delas era erudita e a outra popular. Para que o pássaro possa voar mais longe, ele precisa das duas asas. Certamente, Gilberto Gil é esse traço de união entre a cultura erudita e popular”. A Alma Preta Jornalismo procurou a ABL para esclarecimentos mas não obteve resposta.
Vanessa sugere que a ABL, ao apostar em nomes bastante populares na sua nova composição, tenta elevar a sensação de reconhecimento da instituição perante o povo. Segundo a estudiosa, a Academia é uma instituição destacada da sociedade a qual ela deveria representar. “É uma instituição que não vê a literatura negra brasileira acontecer, que não vê a literatura indígena, que não enxerga as ruas. Por isso, decidiu eleger rostos muitos conhecidos na cultura do país, já que com o passar dos anos, a própria entidade percebe que não está sendo vista pela sociedade”, afirma.
Rosto negro imortal
Em sua declaração sobre a entrada no hall dos imortais, Gil se disse um agente cultural por força do trabalho que faz e da representação que tem. “Essa palavra ‘cultura’, nesse sentido do cultivo da qualidade humana, da humanidade em cada um de nós, é um interesse que eu sempre tive”, expõe o artista.
Para a professora Andressa Marques, doutora em literatura pela Universidade de Brasília (UnB), a eleição de Gil à qualidade de imortal da Academia Brasileira de Letras é um marco da criatividade do povo negro na herança cultural. Ela lembra que o cancioneiro de Gil revela em intimidade o racismo que estrutura a sociedade em canções como “A mão da limpeza” e “Extra II – O rock do segurança”, bem como reflete sobre a criação literária em “Metáfora” e a “A novidade”, para ficar em pouquíssimos exemplos.
“A cadeira de Gil na ABL é uma exceção que apenas escancara a regra para a escolha dos(as) imortais, em sua maioria, representantes da elite e autores(as) de obras desconhecidas do grande público ou pouca expressão. Resta saber até quando a instituição fundada por Machado de Assis, grande autor negro brasileiro, continuará sustentando escolhas que dialogam cada vez menos com as pessoas do mundo real, aquele que a literatura tanto tenta alcançar”, declara a professora.
Fernanda Montenegro e Conceição Evaristo
A pesquisadora baiana Calila das Mercês, também doutora em literatura pela UnB, assim como outras potências da área no Brasil, recebeu com entusiasmo a nomeação da atriz Fernanda Montenegro para a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras. De acordo com ela, Montenegro, além da genialidade nas artes cênicas, simboliza uma minoria quando observada a diversidade de gênero da instituição. Ao todo, oito mulheres ocuparam cadeiras na entidade que manteve-se incólume à presença feminina até 1976, ano em que o Regimento Interno, que até então restringia a eleição aos “brasileiros do sexo masculino”, foi alterado, assegurando às mulheres a possibilidade de candidatura.
A pesquisadora destaca a ausência de qualquer representante feminina negra em toda a história da Academia. Em 2018, a instituição teve a possibilidade de receber a escritora Conceição Evaristo, autora de sete livros e 40 antologias, porém, dispensou. Evaristo teve apenas um voto e perdeu a vaga para o cineasta Cacá Diegues.
Reconhecida nacionalmente e internacionalmente, a escritora, que a priori não ia se candidatar, teve a maior campanha popular da história da Academia. Foram mais de 40 mil nomes em um abaixo assinado promovido pelos admiradores do seu trabalho. “Se eu entrar, não será porque escrevi um ‘Marimbondo’ do Sarney, não [romance que levou o ex-presidente à ABL, em 1980]. Eu quero entrar porque é um lugar nosso, porque temos direito”, disse em uma palestra no Salão Carioca do Livro.
“Conceição Evaristo é uma das maiores escritoras da América Latina e representa o povo brasileiro com suas artes literárias e enquanto intelectual. Sua obra dialoga com diversos espaços e gerações”, afirma Calila.
O não-lugar de Evaristo no time aristocrata reflete a estratificação social que rege toda a sociedade brasileira, admite Vanessa Teixeira . “Ela não entrou [na ABL] por se recusar a entrar no jogo, por não fazer uma campanha interna e não estar presente nos chazinhos da tarde”, argumenta a especialista. Ao lembrar que Fernanda Montenegro, a despeito de sua genialidade na interpretação cênica, não é uma escritora, a doutora mostra que, dentro das relações vigentes no Brasil, o discurso de um homem branco tem mais valia que um discurso de uma mulher branca, que por sua vez valerá mais que a fala de um homem negro, que valerá mais que uma mulher negra.
“A mulher negra, estando nesse lugar de uma voz menor, para ser sujeito em uma sociedade racista e machista não basta existir. Na construção de uma subjetividade, a existência enquanto sujeito é relacional: é necessário existir, falar, ser ouvido, ter espaço de projeção e representatividade”, conclui a professora.
Ironia machadiana: a literatura negra viva e forte
Apesar da Academia Brasileira de Letras insistir em não representar a população do país — com 56% de pessoas negras —, para as estudiosas, Conceição Evaristo, Lima Barreto, Cruz e Souza, e Carolina Maria de Jesus, por exemplo, não dependem da chancela da ABL para serem os escritores conceituados que são. “Eles estão vivos apesar da ABL”, dizem.
Teixeira afirma que Machado de Assis, um dos fundadores da Academia, foi um dos grandes críticos do seu tempo. Ele é lido, investigado e reconhecido “pela ironia mordaz com que apontava a hipocrisia da burguesia brasileira”.
“A ABL infelizmente acaba caindo na própria crítica machadiana. Uma ABL que não está atenta, que não enxerga o que realmente tem circulado no Brasil, ou seja, a literatura negra existe, está sendo consumida e está vindo das ruas, vindo de outros espaços para dentro das universidades. O que parece é que essa Academia se acostumou com uma determinada máscara, e essa máscara não é a cara do Brasil”, disse Teixeira.
Andressa Marques ressalta ainda que, nos últimos vinte anos, a literatura de autoria negra vem se estabelecendo como um nicho editorial impossível de passar despercebido. Há movimentos literários como o Quilombhoje, que publica coletâneas de poesias e contos desde 1978, com um papel crucial na manutenção de espaços editoriais em que a voz autoral negra seja possível. “Basta lembrar que Conceição Evaristo publicou seus poemas e contos pela primeira vez nos Cadernos Negros, publicação do Quilombhoje”, indica Marques.
As especialistas destacam editoras negras como a Malê, a Nandyala e a Mazza, que são voltadas exclusivamente para a publicação de autoria negra, como exemplos de empreitadas frutíferas na divulgação e manutenção da literatura negro-brasileira. “Também percebo a grandiosidade da Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio de Janeiro, como marco na literatura do país. Imagina se a ABL percebesse a FLUP como literatura?”, declaram.