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‘A África é um continente colorido’: rua mantém tradição da moda africana em Paris

Rua Myrha, localizada no bairro Château Rouge, traz pedaço da África para capital francesa ao preservar tradições vestuárias de culturas africanas
O comerciante Abdolaye Alou na loja de tecidos Waxiso, localizada no Château Rouge, Paris, 27 de julho de 2024

Foto: Vinicius Martins/Alma Preta

30 de julho de 2024

Paris – Chegar ao Château Rouge de metrô é diferente da maior parte de outros bairros de Paris. Ao subir a escada rolante da estação local, na saída do boulevard Barbès, é possível ver uma chuva de cartazes e vozes. Mulheres de diversas nacionalidades tentam atrair clientes para seus salões de beleza e homens fazem propaganda de diversas lojas de eletrônicos.

A agitação inicial aos poucos é abafada por vozes firmes que saem de caixas de som do outro lado da via, em uma esquina. Um punhado de imigrantes rodeados de bandeiras do Togo e cartazes que exaltam o panafricanismo elaboram longos discursos políticos em francês.

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No local é possível ver um movimento constante de pessoas, que diminui à medida que se entra nas diversas ruas que cruzam o boulevard. Há também mercadinhos, bancos, lojas de tecidos e alfaiatarias. 

O principal destaque da paisagem são as pessoas. Os tons de pele mais escuros, entre negros, árabes e asiáticos, dominam as calçadas e estabelecimentos. Os brancos são minoria na região localizada no 18º arrondissement* de Paris.

“Os imigrantes não moram no Château Rouge, a maioria vem para trabalho”, explica à Alma Preta o senegalês Lamine Cissé. O bairro é conhecido por reunir comerciantes de origem africana e árabe na cidade. Cissé é uma dessas pessoas. Ele saiu de Senegal em 2012 para tentar a vida na Europa. Antes de viver em Paris, passou alguns anos em Portugal.

Lamine Cissé saiu do Senegal em 2012 para viver em Portugal e posteriormente na França, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)
Lamine Cissé saiu do Senegal em 2012 para viver em Portugal e posteriormente na França, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)

Cissé vive em Aubervilliers, uma comuna** ao norte de Paris, parte da região metropolitana. O senegalês divide sua vida entre idas e vindas até o Châteu Rouge para trabalhar na rua Myrha, uma via tradicional do bairro. Lá ele comanda uma franquia da Western Union, uma multinacional estadunidense, que oferece serviço para transferência de dinheiro.

Seu negócio divide espaço com uma loja de artigos para cabelo como perucas, tranças e cosméticos, comandado por outros membros de sua família. O lugar é tranquilo e poucas pessoas aparecem para movimentar dinheiro. Cissé parou pontualmente a entrevista para executar depósitos e saques de clientes que entravam na loja.

“A quantidade de pessoas diminuiu, está muito calmo, mas também tem as pessoas que vão aos Jogos”, explica o senegalês, demonstrando algum sentimento de indiferença em relação às Olimpíadas deste ano.

‘É como estar em casa de novo’

Mais adiante na rua Myrha, do outro lado de boulevard que corta a via em dois, a calmaria se confunde com cores e texturas nas vitrines das lojas. O local é tradicional pelos estabelecimentos de tecido e alfaiatarias árabes e africanas.

“Gosto do trabalho aqui, é uma boa área para negócios. Todos somos africanos, quando você vem aqui, tem a sensação que está na África, as pessoas parecem com você, lembra seu próprio país”, afirma Abdolaye Alou, de 28 anos, um dos responsáveis pela loja Waxiso, que vende tecidos.

Ele e o irmão vieram de Bamako, capital do Mali, e vivem em Paris há quatro anos. Todo o resto da família permaneceu na sua terra natal. “Sinto saudade deles. Visitei eles apenas uma vez, há cinco anos, mas eles vêm para cá às vezes.”

Abdolaye Alou é um dos administradores da loja de tecido Waxiso, na rua Myrha, no Château Rouge, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)
Abdolaye Alou é um dos administradores da loja de tecido Waxiso, na rua Myrha, no Château Rouge, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)

O malinense pretende visitar a terra natal esse ano, mas tem o sonho de voltar em definitivo para lá. Ele relata que o país é lindo, mas o custo de vida é alto. “Não viemos para ficar ou morar, viemos para conseguir dinheiro, vimos que temos a oportunidade de fazer algumas coisas que sabemos que somos os melhores. Você não sai do nosso país. Se você tem dinheiro, fica lá.”

Assim como o Senegal de Lamine Cissé, o Mali é uma ex-colônia francesa. A nação obteve a independência apenas em 1960 e foi um dos últimos países a se libertar do domínio colonial da França. O país tem baixa expectativa de vida (cerca de 53 anos) e tem uma das taxas de mortalidade infantil mais elevadas do mundo.

O Mali é de maioria muçulmana, quase 70% de seus habitantes vivem em áreas rurais e há um contexto de instabilidade política local. A geografia desértica se soma à atividade de grupos fundamentalistas islâmicos que atuam no norte do país.

Tecidos exibidos nas prateleiras da loja Waxiso, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)
Tecidos exibidos nas prateleiras da loja Waxiso, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)

Herança familiar sem fronteiras

Abdolaye conta que sua inspiração é seu avô, que já trabalhava com tecidos no Mali. Os materiais expressam uma diversidade de estilos, traços e vibrações, em meio à loja tranquila. Mais três pessoas trabalham no local, todos imigrantes.

Os produtos vendidos ali chegam de diversas fontes. Parte deles é produzido na Europa, em países como a Holanda, e outra parcela vem de diversas nações africanas. “Não são do mesmo preço, depende muito da qualidade do tecido. Os mais caros são os produzidos aqui no continente. Eles têm mais qualidade”, explica.

Ao entrar na loja é impossível não perder o olhar nas diversas prateleiras. Cada uma tem estilos, texturas e padrões diferentes.

“As pessoas vêm aqui para ver os tecidos e coisas da África, que não se encontram em nenhum outro lugar na França. Aqui é o melhor lugar para encontrar tecidos e itens africanos. Vem gente de todas as nacionalidades. Malinenses, marfinenses, todos os países da África… mas a maioria é da África Ocidental.”

A diversidade de clientes se traduz nos desafios cotidianos. “No trabalho, tem que ser paciente, frio, amável, cada cliente é diferente”, reflete. Os tecidos funcionam como matéria-prima para vários produtos como roupas e acessórios. Lençóis e artigos para decoração de casas também estão entre os interesses dos compradores.

“Alguns vêm aqui e não sabem o que querem […]. Algumas pessoas querem algo para um casamento, e outras querem vestir estilos africanos. Temos que conhecer o estilo de todos, as necessidades de todos e quando fazemos isso, temos mais clientes e mais dinheiro.”

Questionado sobre a concorrência na região diante das dezenas de negócios semelhantes, Abdolaye diz não se assustar. O comerciante conta que ele e o irmão têm boa relação com os outros negócios ao redor. “Há outras lojas iguais na área, mas todos têm suas chances. Mesmo próximos, isso não te tira do jogo.”

Longe do clima de rivalidade, para ele qualquer pessoa que vier ao Château Rouge e à rua Myrha verá um contexto de união.

“Se vier aqui, vai ver pessoas para socializar, vai ficar próximo das pessoas, vai poder conversar mais profundamente, todos amam e todas estão felizes, todos conversam e não há diferença.”

Abdoulay Alou, de 28 anos, pretende voltar a viver no Mali um dia, Paris, 27 de Julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)

O prazer de vestir a calmaria

A poucos metros dali, do outro lado da rua, a loja La Reine de Saba (A rainha de Sabá, em tradução livre), chama atenção de longe. A fachada exibe tecidos e roupas pendurados, alguns manequins e a vitrine expõem chapéus, turbantes, véus, colares e diversos artigos de vestuário.

No lado de dentro, o turbilhão de cores e itens se confunde com o som calmo de uma máquina de costura solitária. Awa*** — dona da loja — observa tudo dos fundos do estabelecimento. Sua personalidade falante contrasta com o comportamento reservado. “Nada de fotos”, sorri e prossegue: “Só vou responder algumas perguntas”.

O nome do local é uma referência à sua religiosidade. Ela é muçulmana e homenageia Bilqis (denominação islâmica), soberana do reino de Sabá. Especula-se que o império tenha ocupado uma área que engloba a atual Etiópia e a península arábica, hoje ocupada pelo Iêmen e pelo Omã.

Fachada da loja La Reine de Saba na rua Myrha, Paris, 27 de julho de 2024 (Vinicius Martins/Alma Preta)

Aos 55 anos, ela vive na França há pelo menos 35. Nascida na Gâmbia, nunca teve a intenção de permanecer em Paris. A gambiana veio para a cidade visitar uma tia.

“Eu era muito jovem, tinha 17 anos”, explica. Sua parente se sentia solitária, gostava dos talentos culinários da sobrinha e sua insistência a fez ficar de vez no país. 

Mesmo vivendo a contragosto na capital francesa, Awa foi mudando de ideia com o tempo. Casou-se e formou uma família. Tem quatro filhos, hoje todos adultos. Para além do convívio familiar, outras paixões a convenceram a permanecer em Paris: a loja e a moda.

“Você me vê? Visto esses modelos africanos. Visto e me sinto feliz, sinto-me jovem, sinto com a mente livre e é minha inspiração para continuar fazendo bons vestidos e ternos para homens e mulheres”, explica. Awa vestia um véu amarelo mostarda, brincos de argolas prateadas, algumas bijouterias nos braços e no pescoço, além de uma bata amarela com formas múltiplas em azul e vermelho.

“Essa loja tem quase 24 anos. Antes de ter a loja, eu trabalhava nessa região do Chateau Rouge para outras pessoas. Hoje, sou a dona e tenho minha liberdade”. Anteriormente, o local abrigava uma loja de computadores.

Awa se orgulha de ter sido a primeira alfaiate a trabalhar com tecidos do continente africano na rua Myrha. “Amo modelos, amo as listras africanas e elas são tão bonitas, tão fofas. Eu criei meus próprios desenhos. Eu tenho alfaites que trabalham para mim. Explico [como quero] e eles fazem para mim”, conta orgulhosa.

Inspirada pelas formas e padrões da cultura africana, para ela as roupas podem proporcionar uma sensação de paz e pertencimento, especialmente de sua terra natal. “Em nosso continente, precisamos de materiais de algodão. Esses materiais são pintados com muitas cores. A África é um continente colorido. A vida africana é paz. Então, é o motivo pelo qual esses materiais são serenos. Quando você veste, se sente calmo e bonito”.

*arrondissement: divisão administrativa de Paris, cada uma engloba um grupo de bairros.

**comuna: semelhante a um município, é uma divisão administrativa dotada de prefeito e câmara municipal.

***Awa não quis revelar seu nome completo.

  • Vinicius Martins

    Jornalista formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). É sócio e cofundador e diretor multimidia da Alma Preta Jornalismo. Antes, foi jornalista de vídeo na Folha de S.Paulo e gestor multimeios no Instituto Vladimir Herzog.

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