Texto: Juninho Jr. / Edição de Imagem: Vinicius Martins
A idéia de uma sociedade livre, onde cada indivíduo a partir do seu próprio esforço deve construir a sua trajetória, é bastante sedutora. Afinal, somos todos humanos, somos todos capazes, portanto, podemos chegar onde quisermos e senão atingirmos os objetivos estabelecidos, a culpa é única e exclusivamente sua.
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O Estado (estrutura formado pelos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário) deve ter leis rígidas e claras e todas(os) cidadãs (ãos) devem ser tratados igualmente perante a lei.
Esses são alguns parâmetros do conceito do Liberalismo que forma o discurso eloqüente do mais novo vereador eleito pela cidade de São Paulo, Fernando Holiday, que já anunciou em suas redes sociais que suas primeiras medidas serão o combate ao vitimismo, fim das cotas raciais em concursos públicos e revogação do dia da Consciência Negra. Holiday é jovem, negro, gay e ganhou muita visibilidade nas redes sociais por atacar o movimento negro e as políticas de promoção da igualdade racial, pois defende que essas políticas reforçam o racismo. Foi assim que o jovem se projetou como uma liderança do Movimento Brasil Livre (MBL).
Se o racismo não é algo importante na realidade brasileira, se as negras e negros estão em pé de igualdade com os não negros e, a partir do seu esforço individual, sem a presença do paternalismo de estado, podem acender socialmente, porque o próprio Holiday insiste tanto em debater esse tema? Por que seu amigo de MBL Kim Kataguiri é visto como um jovem intelectual para nova geração de liberais e Fernando Holiday só consegue se projetar por ter um discurso raivoso contra o movimento negro e as políticas de combate ao racismo?
Holiday é vitima e ao mesmo refém da pauta que diz combater. Sua ascensão como liderança está condicionada à pauta racial e sua estética lhe dá legitimidade para fazer um discurso que um branco de classe média jamais poderia fazer. É o exemplo perfeito. É a busca de uma narrativa eficiente na desconstrução da luta histórica do povo negro.
É interessante notar como ao longo da história, a elite brasileira sempre buscou formas de apagar, ou minimizar os impactos do que foi o colonialismo e o escravismo até os dias de hoje. O discurso da democracia racial é o maior exemplo disso, pois sempre buscou, a partir da incorporação de elementos das culturas negra e indígenas como parte de uma identidade nacional, esvaziar os conflitos e as assimetrias étnicas legitimadas ao longo da história e que refletem uma profunda desigualdade econômica, social e cultural.
O movimento negro brasileiro se dedicou longos anos para desconstruir a idéia de uma democracia racial. Quero destacar duas frentes para essa desconstrução. A primeira foi forçar o Estado Brasileiro em reconhecer a existência do racismo como fruto de um processo histórico escravista. Era necessário, portanto, a aplicação de políticas reparatórias de promoção da igualdade racial, derivadas da luta para a formação da Fundação Palmares, do reconhecimento na constituição de1988 do racismo como crime inafiançável, da proposta de cotas nas universidades e no serviço publico e na formação de diversos órgãos municipais, estaduais e nacional de promoção da igualdade racial. A segunda frente foi no campo cultural, com o fortalecimento de uma identidade negra, do orgulho negro, da afirmação estética e cultural que foi produzindo um aumento significativo de autodeclarados pretos e pardos nos sucessivos censos.
O momento de avanço desse projeto se deu nos governos Lula/Dilma com a criação da Seppir (Secretaria Especial de Politica de Promoção da Igualdade Racial), com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, da política de cotas nas universidades públicas federais, ProUni e FIES, que garantiram acesso nas universidades particulares, cotas no funcionalismo público, além de políticas econômicas como o bolsa família, valorização do salário mínimo, aumento da oferta de crédito, medidas que mexeram na dinâmica social brasileira e abriram oportunidades para diversos setores historicamente excluídos, mas que mostrou os seus limites pois não foram capazes de enfrentar as bases estruturais da desigualdade como a concentração de riqueza, o latifúndio, o monopólio midiático.
No momento auge da aplicação das políticas econômicas e sociais que geraram uma mobilidade, o núcleo de poder encabeçado por Lula e o PT abriu mão do debate ideológico e da disputa de consciência, para a exaltação das saídas individuais. A construção fantasiosa da narrativa da formação de uma nova classe média reforçou, no imaginário popular, conceitos liberais, de que a possibilidade de ascensão social e melhorias da qualidade de vida se dão por meio de ações individuais. É neste contexto que cai como uma luva o discurso do Fernando Holiday, pois reforça a idéia de que programas sociais, políticas de cotas, sistema público de saúde e educação formam um paternalismo de Estado, que impedem o desenvolvimento individual das pessoas.
Essa é a maior força do discurso de Holiday e também a sua maior fragilidade. É muito cômodo dizer todas(os) são iguais perante a lei e que só através do esforço individual as pessoas poderão melhorar sua condição de vida, além de afirmar que qualquer política que busque diminuir desigualdades é vitimismo. É curioso que a política de juros altíssimo que gera super lucros para os bancos e que gera uma dívida pública que consome 46% do orçamento federal não é vitimismo, que incentivo fiscal que anistia empresas de pagar impostos não é vitimismo, que não ter impostos que taxem lucros do empresários, heranças e patrimônio não são vitimismos. Ou seja, tudo que beneficia o andar de cima, que transforma o Brasil um dos países mais desigual do mundo não é vitismo. Trocando em miúdos: para Holiday o Estado só deve atuar para manter os privilégios das elites que se mantém no poder há mais de 500 anos e reprimir com leis duras os mais pobres.
Será que no fantástico mundo de Holiday, ele também acredita ser vitismo que no ano passado, cerca de 160 pessoas foram assassinadas por dia no Brasil, o que representa uma pessoa para cada nove minutos. No total, 58.383 pessoas foram mortas violentamente e intencionalmente no país. Desse total, 70% dessas mortes foram praticadas contra jovens , negros e pobres. Será que no fantástico mundo de Holiday isso é vitimismo?
Outro ponto importante do seu discurso que constrói o seu fantástico mundo é a idéia da meritocracia. É muito bonito de acreditar que todas(os) têm iguais condições de disputar qualquer espaço na sociedade, sem levar em consideração as profundas desigualdades existentes . O interessante do discurso liberal é que ele desconsidera a história e a trajetória o contexto. Teoricamente, todas(os) são iguais, têm direitos iguais e isso basta.
No debate das cotas é possível exemplificar bem a fragilidade desse discurso liberal. O vestibular, uma prova de concurso, nada mais é do que um prova com um conjunto de regras e equações e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que têm o melhor desempenho. Nem de longe uma prova como essa mede conhecimento ou capacidade de aprendizagem. Ela apenas reflete os mais bem treinados para aquele padrão de prova. Para quem acredita na meritocracia, o fato de todas(os) concorrentes por uma vaga fazerem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições e aqueles que obtiverem o melhor resultado são os merecedores.
Porém, se a gente analisar esse mesmo processo seletivo, levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que vestibulares e concursos são grande funis sociais. Vamos pegar dois exemplos de pessoas com trajetórias bem distintas. A primeira é uma jovem de classe média, que estuda em escola particular pela manhã, que a tarde faz cursinho preparatório para o vestibular, que tem acompanhamento psicológico, que os pais já possuem ensino superior e a estimulam de todas as formas para o aprendizado. A segunda é uma jovem, moradora da periferia, que estuda a noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados. Essa, se passar no vestibular, será a primeira da família a cursar o ensino superior.
Será que quando essas duas trajetórias se encontram para fazer a mesma prova, com as mesmas regras, elas estão em condições iguais? A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos. Neste sentido, Holiday utiliza sua trajetória como exemplo de como é possível acender pelo próprio mérito e estabelece isso como regra e não exceção.
Por fim, no fantástico mundo de Holiday, não devemos ter memória de resistência. A história e a trajetória que devem ser exaltadas são a dos bandeirantes, dos senhores de engenho, dos heróis nacionais como Dom Pedro II, Tiradentes, José Bonifácio e os Constitucionalistas. O resumo da ópera então é que não podemos ser vitimistas, não podemos cobrar políticas de reparação histórica do Estado Brasileiro e não podemos exaltar a memória daqueles que se rebeleram contra o sistema colonial escravagista. Por isso, não precisamos ter feriado da consciência negra.
Para Holiday o nosso papel histórico deve se resumir em trabalhar, trabalhar, trabalhar e senão conseguir nada da vida é porque não se esforçou o suficiente e o restante fica tudo como está. Só que não!
Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho. É Jornalista, militante do movimento negro e Presidente Estadual do PSOL-SP