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A Folha de Saquarema: ideólogos da escravidão no séc. XXI

Se a Folha hoje amanhece perguntando se é racista, a resposta é fácil. Não é só racista, como é senhorial. A Folha é supremacista branca. Ela é saquarema.

Redes sociais Folha de SP

Foto: Redes sociais Folha de SP

20 de janeiro de 2022

Desde as primeiras décadas do XIX, a escravidão passou por um forte questionamento no Atlântico. Revoltas escravas, abolições nas Antilhas e Américas e crescimento da diplomacia antitráfico criaram um clima de indefinições. No entanto, no Brasil, ela não só vigorou como chegou a número inéditos. O núcleo político responsável por essa “segunda escravidão” era chamado de saquaremas, ou simplesmente de “partido negreiro”. Sua base social se estendia do Vale do Paraíba a Minas Gerais, orbitando sobretudo os senhores do café. Iniciado com a chegada do Regresso ao poder (1837), “o tempo saquarema”, na consagrada expressão de Ilmar Rohloff de Mattos, definiu a defesa da escravidão como questão de Estado. Essa hegemonia manteve o contrabando negreiro até 1850 e formou as bases institucionais de estabilização do escravismo, as quais só seriam derrubadas definitivamente em 1888.

Para tanto, desde os fins da década de 30, os saquaremas estabeleceram uma verdadeira blitz na arena política, definindo a legitimidade da escravidão e os discursos possíveis sobre o tema. Analogias com outros países, a doutrina cristã, a necessidade econômica, a soberania nacional e etc. serviam de álibi para a expansão do escravismo no país. Entre esses argumentos, os saquaremas criaram um singularmente brasileiro. Tâmis Parron o chama de “paternalismo liberal”. Segundo esse ponto, a escravidão no Brasil era um sistema bom para o negro, pois possibilitava sua ascensão social num contexto desprovido de barreiras raciais.

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De acordo com os saquaremas, ao “buscar” negros na África, a escravidão os retirava da barbárie e os inseria numa atmosfera civilizatória, com vias abertas para sua mobilidade social e política. O argumento era completado atestando as características específicas do Brasil: aqui, não há discriminação dos brancos para com os negros. Silenciando a realidade insidiosa de um país atravessado pelo contrabando e pela servidão negra, os saquaremas afirmavam que a identidade nacional brasileira tinha como traço relações raciais harmônicas. As palavras de Antonio Deodoro de Pascual, membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1861, delineiam as bases desse discurso:

(…) o brasileiro liberta o escravo quando lhe nasce um filho, o liberta quando se casa, o liberta quando morre (…). O nosso escravo chega a ser um cidadão, um homem de letras, um médico, um advogado, um comerciante, um fazendeiro (…). O homem de cor brasileiro sabe que nos Estados Unidos é expulso dos teatros, das reuniões públicas, dos ônibus e até dos templos de Deus. 

Ou seja, a escravidão não era odiosa e violenta, mas benéfica ao negro. A bondade dos senhores, as alforrias, as definições de cidadania e as profissões exercidas por negros libertos “atestavam” a identidade benévola do país. Veja-se documento defendendo a escravidão, de 1852:

“Comparem os pretos da Costa de África com a sua liberdade toda, sempre em guerra uns com os outros, a venderem os pais e os filhos… Compare, digo, estes com os pretos cativos do Brasil: e vejam uns são oficiais de diferentes ofícios, como pedreiros, carpinteiros, sapateiros, alfaiates, funileiros, ferreiros, serralheiros, caldeireiros, barbeiros, carpinteiros de machado, calafates, bordadores de ouro e prata e de matiz, pintores, douradores; outros no negócio de diversas quitandas; e civilizados; a maior parte deles já cidadãos brasileiros etc. etc…”

No mesmo sentido, Carneiro da Silva, em 1838:

“Eu tenho visto escravos que só têm desta condição o nome. Oficiais peritos, eles não só trabalham para seus senhores, como para si, e chegam por meios lícitos a ajuntar o dinheiro necessário para liberdade, que algumas vezes chega a preço alto. Tenho visto escravos senhores de escravos, com plantações, criações de gado vacum e cabalar, e finalmente com um pecúlio vasto e rendoso. Tenho visto muitos escravos libertarem-se, tornarem-se grandes proprietários, serem soldados, chegarem a oficias de patente, e servirem outros empregos públicos que são tão úteis ao Estado.”

E, por fim, o grande líder saquarema, Bernardo de Vasconcelos, em 1835, abrindo a frente em defesa do contrabando negreiro:

“Este sr. Deputado disse que a escravidão dos africanos não era tão odiosa como a representavam alguns outros senhores; que ela era amoldada aos nossos costumes, conveniente aos nossos interesses e incontestavelmente proveitosa aos mesmos africanos, que melhoravam de condição.”

A representação idílica do escravismo tinha um objetivo claro: contestar as denúncias humanitárias, filantrópicas e abolicionistas do sistema. Idealizar para mais escravizar. Representar o paraíso para manter o inferno. Compilar artificiosamente exemplos pinçados para cobrir com neblina a violência generalizada da escravidão, impedindo o debate sobre os direitos dos negros. E os saquaremas foram vitoriosos nessa batalha: em menos de 30 anos, mais de 760 mil africanos foram ilegalmente traficados e o regime escravista encontrou no Brasil a sua mais longa duração.

Tais questões são importantes para entendermos o sedimento histórico no qual se escoram discursos do presente. Quando lemos uma coluna que enfatiza a “mobilidade social” no regime escravista; um editorial que se vale das suas “políticas de diversidade” para continuar sendo racista; ou inversões paternalistas da realidade que falam de racismo antibranco propagado por “identitários” traidores da brasilidade, estamos lidando simplesmente com a semântica saquarema. É a retórica negreira, sem tirar nem pôr. 

Idealizar a escravidão ou as condições de vida da população negra, citar casos fora da curva e mistificar o “caráter nacional” das nossas relações raciais são artifícios discursivos senhoriais, os quais foram universalizados como prática política pelo grupo social mais escravista da nossa história. São recursos do supremacismo à brasileira. Pois engana-se quem acredita que o supremacismo só existe de capuz branco, vendendo jornais chamados “The Good Citizen” e advogando abertamente leis segregacionistas. Os saquaremas e seus espectros contemporâneos demonstram o contrário. 

Leia mais: Expressão ‘racismo estrutural’ ainda é utilizada de forma inadequada na imprensa

Portanto, o que a Folha faz é velho. É constitutivo de uma das maiores tragédias humanas. É escravismo na sua mais alta performance. Se a Folha hoje amanhece perguntando se é racista, a resposta é fácil. Não é só racista, como é senhorial. A Folha é supremacista branca. Ela é saquarema.

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Um dos melhores retratos da hegemonia saquarema é a dissertação do Tâmis Parron, de onde as citações foram retiradas.

*Marcos Queiroz é o pesquisador e jurista, autor do livro “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana”, que discute a influência da revolta haitiana no Brasil e na região.

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