Alguns desfilam em belos navios, outros em algumas canoas, e muitos sem colete salva-vidas ou já em situação de afogamento
Texto / João Victor Santos e Thiago Prado | Edição / Simone Freire | Imagem / PMRJ via Fotos Públicas
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Esse texto é dedicado à memória de Dona Cleonice, mulher preta, 63 anos, primeira vítima letal do Covid-19 no Estado do Rio de Janeiro. Cleonice tinha hipertensão e diabetes, trabalhava como Empregada Doméstica na casa de uma família da Zona Sul Carioca, que havia acabado de voltar de uma viagem à Itália e estava cumprindo quarentena em sua moradia, porém, os serviços da Empregada Doméstica não foram dispensados. Parafraseando uma fala do Documentário “Babás”, o Brasil inteiro cabe nessa relação de Dona Cleonice e seus Patrões.
Tratamos o genocídio como uma política de ceifação, uma gestão de mortes, mas menorizamos que ele também ocasiona uma precarização da vida, ao ponto de produções em massa de “quase-mortes”. E são essas “quase-mortes”, que nos colocam em posições muito distantes nesse mar de ondas agitadas que enfrentamos hoje com o coronavírus, no Covid-19.
Ao contrário dos discursos presentes na sociedade, não estamos no mesmo barco, alguns desfilam em belos navios, outros em algumas canoas, e muitos sem colete salva-vidas ou já em situação de afogamento. A posição nesse oceano é definida pela nocividade da efetivação do genocídio.
Tal produção de “quase-morte”, se apresenta na relação colonial instaurada na família da Zona Sul carioca com a empregada doméstica. A não liberação desse serviço é a mais completa associação de que algumas vidas não são tão vivíveis. Essa relação colonial também está instalada na postura do Estado com o povo negro. Considerando os dados de pesquisas sobre a Saúde Integral da População Negra, que comprovam a racialidade das principais doenças que assolam o país, destaco aqui, por motivos óbvios, a diabetes mellitus tipo 2, hipertensão e a tuberculose.
Essas doenças, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, produzem sofrimento, complicações clínicas e mortalidade, e quando relacionadas com a Covid-19, ocasionam a formação do grupo de maior vulnerabilidade, pois a progressão clínica da Covid-19 tem manifestado na sua forma mais grave, gerando alta taxa de mortalidade.
Essas comorbidades têm um impacto bastante significativo na mortalidade do povo negro, conforme indicam os dados do Ministério da Saúde, no Documento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, de 2017, de modo que a Diabetes Mellitus tipo 2, por exemplo, é a quarta causa de morte, chegando a contemplar 50% a mais mulheres negras em relação às brancas.
No tocante a Hipertensão Arterial, é mais comum em homens negros e chega a marca de 14% de todos os óbitos por ano. Tuberculose, de acordo com estudos, configura-se como uma doença extremamente associada à pobreza, quando comparados negros e brancos, observa-se que a taxa tem permanecido superior entre o povo negro, assim como a chance de óbito.
Dado que deve levar em consideração, que a Tuberculose vem contemplando significativamente a População Privada de Liberdade, cerca de 10% dos registros da doença em todo o país, uma parcela da sociedade que detém de condições graves de estrutura sanitárias, além de contemplar uma expressiva presença de pessoas negras, cerca de 61,7% em um universo de 700 mil encarcerados.
Nesse sentido, essa pandemia possui uma caracterização racial no seu modus operandi. Se ilustrando, em um cenário de realidade social racialmente desigual, com alta densidade demográfica em áreas de maioria negra (favelas, periferias) onde também serviços de saneamento básico são precários, contrariando as recomendações das autoridades internacionais de distanciamento social e higienização constante das mãos.
Com isso, no processo de contaminação do vírus, ele encontrará corpos em situação de maior vulnerabilidade, ou “quase-mortes”, localidades de fácil transmissão, ausências estruturais de hospitais e leitos. Além de governantes que respaldam ou se confortam com o esse caráter genocida.
O que cabe lembrar:
Há corpos que podem se contaminar com o vírus, mas nem todos vão morrer. Há corpos que podem se preservar em quarentena, mas nem todos estão incluídos nessa possibilidade. Há corpos que podem ter leitos de UTI em abundância, mas há corpos que vão disputar vagas.
Há corpos que são Zona Sul, mas há corpos que são “Cleonice”.
Nesse sentido, é de máxima urgência que o Estado acolha a demanda histórica para a elaboração de um Plano de Contenção da Covid-19 para a População Negra, embasada com os inúmeros estudos sobre as desigualdades raciais na saúde, contemplando nos Centros de Operações de Emergências (COE) do Coronavírus a presença de equipes técnicas especializadas em desigualdades raciais, como pesquisadores, militantes negros para, em conjunto com governantes, estruturar medidas de contenção eficaz na criação e implementação de políticas coordenadas entre raça, gênero e classe (uma política interseccional) para conseguir estancar a situação de produção em massa de “quase-mortes” no campo da saúde, garantindo uma gestão democrática dos espaços da cidade, com saneamento básico e melhores condições de habitação.
Essas iniciativas podem ser um importante mecanismo no enfrentamento à desigualdade racial, que é marcada por uma estrutura genocida permeando todos os governos e instituições. De fato, sairemos todos mudados após essa pandemia, mas a questão que deve ficar é: para qual direção será essa mudança?
Escrevo esse artigo para também endossar o pedido das entidades negras brasileiras para que se contemple, nos dados oficiais do governo, o pertencimento racial dos infectados e dos óbitos da Covid-19, nos Estados e Municípios.
Para discutir sobre o assunto, o Movimento Negro Universitário da Universidade Federal do Espírito Santo irá promover essa Gira de Lives com a temática: “Coronavírus: Dimensões e Efeitos da Pandemia para o Povo Negro!”
O live será transmitida na página: https://instagram.com/afrontaufes.