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Moro: o “jagunço” de toga e a metáfora da justiça

7 de maio de 2020

Diana Alves, Coordenadora do departamento de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM, acredita que Sérgio Moro tenha cumprido com o papel de aprofundar as práticas violentas por parte do Estado contra a população negra, em especial aquela presa

Texto / Dina Alves I Imagem / Lula Marques

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Sérgio Moro abandonou o governo de Bolsonaro, mas não o projeto de poder. Sua saída do Ministério da Justiça e Segurança Pública se deu no ambiente da pandemia de Covid-19, que aprofundou ainda mais a crise sanitária, econômica, política, social e de segurança pública no país.

A insana guerra às drogas que já produziu um desastre social e humanitário no país com mais de 812 mil pessoas pessoas privadas de liberdade, outras centenas de milhares de famílias destruídas, milhares de mortos/mortas nos chamados “confrontos” entre policiais e traficantes de drogas, e no aumento das altas taxas de mortes por intervenção policial, especialmente, no número de mulheres negras mortas nesse contexto. As unidades prisionais e as carceragens das delegacias são verdadeiros “calabouços da tortura” e um dos maiores problemas sociais, culturais e políticos que o país enfrenta.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 347 (ADPF 347), julgada em setembro de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), reconheceu que a realidade prisional no Brasil faz parte de um “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, o próprio Estado reconheceu, publicamente, por sua mais alta Corte, a omissão e ação de agentes públicos que promovem intensa e massiva violação de direitos fundamentais da população carcerária. Em 2019, o ambiente prisional no Ceará, Amazonas e Pará foi marcado por massacres, denúncias de torturas, negligenciamento e descartabilidade das vidas aprisionadas e de seus familiares. Só para ter uma ideia, no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, o massacre teve o saldo de mais de 57 mortes, considerado o maior morticínio em um mesmo presídio, desde o massacre do Carandiru em 1992, quando 111 presos foram assassinados, durante a violenta incursão da sanguinária PM de São Paulo. Para enfrentar a crise no sistema carcerário no Pará, Sérgio Moro autorizou a instalação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) em 13 unidades prisionais. A medida foi um desastre. O Ministério Público Federal do Pará denunciou uma série de violações de direitos humanos contra a população prisional sob a atuação daquela Força-Tarefa.

As dinâmicas de punição no Brasil, com foco na privação da liberdade, e o déficit de vagas que, atualmente, chega ao número de 312.125 nas unidades carcerárias, aprofunda ainda mais a crise generalizada no sistema prisional com o crescimento exponencial de mortes e a disseminação da pandemia de COVID-19. As denúncias da Frente pelo Desencarceramento, da Pastoral Carcerária, das Defensorias Públicas, dos familiares demonstram os prejuízos irreversíveis com a expansão do novo coronavírus no sistema que pode ser, nos próximos dias, o epicentro da pandemia no Brasil.

Recentemente a Pastoral Carcerária formalizou denúncias de 300 casos de casos de violações de Direitos Humanos na Unidade Prisional do Puraquequara, em Manaus. Entre as denúncias, relatadas pelos presos, estão as queixas de sintomas da COVID-19 e falta de alimentação, água, e de remédios. As denúncias foram confirmadas com a explosão da rebelião, no dia 2 de maio deste ano, e o apelo dos presos e de seus familiares sobre os riscos de maior contaminação.

Em outras unidades do estado já existe a confirmação de mortes pelo Covid-19, num cenário que está superlotado, com os atuais 5.742 presos, mas com a capacidade para abrigar 3.508. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução 62, em que recomenda aos magistrados que reavaliem as penas da população prisional e de adolescentes em medidas socioeducativas, aplicando entre outras medidas, o relaxamento da prisão para cumprimento domiciliar ou concessão de liberdade provisória. Os beneficiários seriam, justamente, o grupo de risco e as pessoas que cometeram crimes sem violência. Outros pedidos para desencarcerar a população também foram objetos de liminar do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

A Portaria interministerial nº. 07, editada entre os Ministérios da Justiça e Segurança Pública e o da Saúde, é uma aberração como proposta de enfrentamento ao coronavírus no sistema prisional. Chamam a atenção alguns pontos críticos da portaria de Moro e Mandetta, ex-ministro da Saúde: a) as recomendações do uso de máscaras e do isolamento social por meio de cortinas ou marcações no chão para a delimitação da distância mínima de dois metros entre presos; b) a manutenção da população em espaço fechado, com ventilação e suprimentos para a realização de etiqueta respiratória, c) a garantia de meios de higienização constante das mãos, com água e sabão e a redução do número de visitantes ou suspensão total deles.

Há várias razões para repudiar essa aberração penal que afetará ainda mais a população prisional, que já sofre com outras doenças inerentes ao cárcere, em um ambiente hostil, cruel, degradante e desumano. Estamos falando de uma população que convive com ratos, baratas, sem acesso à justiça, com um sistema de saúde precarizado e que não sabe sequer lidar com a prevenção e o combate à tuberculose e à dor de dente. A isso se chama “estado de coisa inconstitucional”.

A geografia mortal, historicamente constituída pela tríade “senzala-favela-prisão”, está ainda mais evidenciada na administração da justiça e no protagonismo das mulheres nas taxas de prisão e mortes. Além da alta taxa de feminicídio no país, os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), apontam que, em 2019, foram 37,8 mil mulheres presas, contra 36,4 mil, em 2018. O crescimento exponencial nas taxas de punições contra as mulheres, especialmente as negras, revela seu lugar histórico no imaginário social (antes escravizadas, hoje, consideradas criminosas em potencial, ou mortas sob a suspeita de serem traficantes de drogas, ou por resistirem à autoridade policial). Além disso, localizo outra população: a que está do outro lado do muro e que é vítima da “punição invisível”, uma vez que o sistema prisional estende a punição às crianças em abrigos e no socioeducativo (pois os direitos parentais são suspensos), às mulheres negras que visitam familiares (que assumem a responsabilidade pela renda familiar) e a toda a comunidade (que tem seus membros associados ao crime por causa da cor e da origem territorial dos/as presos/as). É essa população que está na linha de frente, exposta ao vírus de COVID-19 e ao fuzil do jagunço[2] de toga.

Como jagunço do projeto ultraliberal com a pasta da Justiça e da Segurança Pública, Moro aprofundou ainda mais a militarização da justiça e as violações dos direitos humanos. Ele assistiu de camarote e foi conivente com uma série de medidas de desmantelamento de um dos mais importantes órgãos anti-tortura do país – o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). São as práticas de tortura nas prisões (e fora delas) que revelam a vida póstuma da escravidão no sistema de justiça criminal moderno. Apesar de serem ilegais e extirpadas da legislação brasileira, essas práticas são legitimadas, autorizadas e, agora, ganham novo paradigma de governança no interior das prisões.

Moro, ao invés de recomendar a Resolução do CNJ e ouvir o clamor dos familiares e dos movimentos sociais, operou a máquina de matar e deixou que mais pessoas morressem no interior do sistema. Não é de hoje que os relatórios da Organização das Nações Unidas (2016) e da Human Rights Watch (2010) já denunciaram várias formas de tortura no sistema prisional brasileiro: agressões físicas, uso de choques elétricos no corpo, sufocamento com sacos plásticos, violência sexual, psicológica, afogamentos em privadas com fezes, ingestão de parafina, usos de spray de pimenta, gás lacrimogêneo, bomba de ruído e bala de borracha; uso de armamento pesado, incluindo fuzis, escopetas, espingardas e pistolas, utilizados por funcionários das prisões.

Casos emblemáticos da ressonância da escravidão e predomínio da tortura como prática racial no Brasil podem ser inferidos dos casos de linchamentos de pessoas negras nas periferias e as rotineiras chicotadas em jovens pretos, no interior de supermercados. Ademais, o Brasil é signatário de diversas convenções e tratados internacionais de combate à tortura. São muitas as recomendações de organismos internacionais e nacionais prevendo erradicar a tortura no sistema carcerário, os maus tratos e as violências sexuais contra as mulheres presas. Das mães loucas e roucas, que denunciam tais atrocidades, às mulheres presas violentadas sexualmente, essas denúncias morrem nas burocracias das próprias instituições e na presença de autoridades “competentes” de togas.

Muitas organizações de Direitos Humanos, pesquisadores e setores dos movimentos sociais alertaram sobre o aumento da letalidade da juventude negra por intervenção policial, com a vitória de Bolsonaro, já que ele é favorável às milícias e ao esquadrão da morte. Suas declarações públicas ganharam racionalidade nas ações do ex-ministro responsável por oxigenar a “máquina genocida de moer gente” – expressão que a ativista Débora Maria da Silva, do Movimento Mães de Maio, grita aos quatro cantos do mundo. Tanto é que, na sua gestão, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciou que o número de lideranças indígenas mortas em conflitos no campo em 2019 foi o maior em, pelo menos, 11 anos. Foram 7 mortes em 2019, contra 2 mortes em 2018. Da mesma forma, já no início da sua gestão ele editou a Portaria 441 com o objetivo de reprimir a população indígena e outros movimentos sociais em Brasília, utilizando-se do emprego da Força Nacional de Segurança Pública na Esplanada dos Ministérios e na região da Praça dos Três Poderes, numa grave violação da Constituição e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o Brasil é signatário.

Outro ponto a ser observado, como política de segurança pública repressora e militarizada de Moro, foi o Programa “Em Frente, Brasil” implantado em alguns municípios pilotos: Ananindeua (PA), Cariacica (ES), Paulista (PE) e São José dos Pinhais (PR). Em 2019, agentes da Força Nacional militarizaram essas regiões sob o argumento de combater a criminalidade e manter a ordem e a lei. O ex-ministro em nada contribuiu para uma nova política de Segurança Pública que respeite a dignidade da pessoa humana numa sociedade que se quer democrática.

Esta necropolítica vocalizada pelo jagunço não é nova, mas agora ela é levada a novos graus de crueldade, à garantia de um projeto ultraliberal que tem, como fundamento capitalista, a militarização e banalização da vida. Esses são princípios de uma justiça burguesa que vende como cláusula pétrea a subordinação e desumanização sistemática dos povos racializados. A presença de Moro como Ministro da Justiça representou e garantiu a radicalização deste estado e desta justiça e sua missão divina. Isso está posto no seu maior presente ao sistema de justiça criminal – o Pacote Anticrime.

A lei 13964/2019 (Pacote anticrime), promulgada em dezembro de 2019, foi a principal bandeira de Bolsonaro em campanha. O jargão “bandido bom é bandido morto” foi música aos ouvidos dos seus eleitores e da polícia sanguinária, de norte a sul do país. O Pacote anticrime, como nova metodologia do genocídio antinegro/anti-indígena, contra os imigrantes e refugiados e contra a população LGBTQ+1, foi mais uma etapa da tarefa do jagunço de toga.

As alterações nos códigos penal e processual penal impuseram maior rigor na aplicação da lei penal e, por consequência, o fortalecimento do supercarceramento, da hipervigilância ostensiva e de medidas eugênicas, com expressa permissão em colher registros biométricos, de impressões digitais, de íris, face e voz dos presos provisórios ou definitivos. Da tipificação do crime de furto como crime hediondo (com emprego de explosivo) ao aumento da pena máxima de 30 para 40 anos, essas medidas racistas aprofundam ainda mais a segregação racial, o Estado policial nos territórios criminalizados e dificultam o acesso à liberdade, direito fundamental e muito caro às populações historicamente perseguidas e vítimas do braço armado do Estado – a polícia. Esta, agora, com maior discricionariedade de atuação, em que seus membros, como agentes cyber infiltrados, ganham ainda mais o status de semi-deuses e fortalecem sua atuação na distribuição desigual da violência, da morte, da vida e da justiça.

É flagrante o fortalecimento da soberania do Estado como confiscador dos parcos recursos do povo pobre e favelado. Com Moro, a hipervigilância ostensiva foi potencializada com a discricionariedade do juízo criminal ao definir, sem nexo causal, sobre a procedência dos bens materiais e sua relação com algum tipo penal Comumente, policiais já utilizam da força letal contra jovens que não apresentam notas fiscais de celulares, bicicletas, tênis, roupas e demais pertences pessoais. Certamente, o Pacote Anticrime não atingirá o senador Flávio Bolsonaro e o confisco da elevação do seu patrimônio que, em 2002, foi declarado em R$ 25,5 mil e, em 2018, foi de R$ 1,74 milhão. Percebe-se que o pacote de Moro fortalece o poder soberano sobre corpos ilegais, fora da lei. Perdeu, preto! A casa caiu! É assim que se prende, se pune e se mata no Brasil, não é?

Do desmonte das políticas sociais ao recrudescimento do Estado penal, o jagunço, à serviço das elites, cumpriu bem o seu papel. A Lava Jato foi um instrumento importante na criminalização de setores progressistas e sociais, e no desmonte de parte do setor produtivo que viabilizou a extrema hegemonia de outra fração da classe dominante: o capital financeiro e o agronegócio.

O projeto do governo Bolsonaro, com a valiosa contribuição do ex-juiz Sérgio Moro, transformou atrocidades em legalidades, e mostrou a Deus e ao mundo que na lógica neoliberal, legalidade nada tem a ver com a verdadeira justiça. É só lembrar que a escravidão no Brasil era legalizada. Havia justiça nisso? De que Justiça estamos falando? Evidente que essa é a justiça das elites.

A operação Vaza jato evidencia de que lado e a quem serve a justiça institucional e boa parte de seus operadores. A campanha #MoroMente, lançada pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, fez ampla denúncia com provas das ilegalidades de Moro e seus crimes, na condução da Lava Jato: abuso de autoridade, improbidade administrativa, prevaricação e formação de quadrilha. O jornal The Intercept Brasil também demonstrou que Moro orientou manifestações do Ministério Público Federal, discutiu linhas de investigação e chegou a indicar uma testemunha aos procuradores, revelando flagrante parcialidade no comando da mesma operação. Tais fatos consolidam o simbólico funeral do polido juiz e a encarnação do jagunço de toga.

À frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o ex-ministro abriu doze inquéritos para proteger Bolsonaro – o maior número dos últimos 25 anos. Ao mesmo tempo, foi omisso e acobertou crimes ligados à família Bolsonaro no caso Queiroz e o esquema de “Rachadinha”, no gabinete do senador Flávio Bolsonaro. Ele também deixou de fora da lista de criminosos mais procurados do país o miliciano Adriano da Nóbrega, principal envolvido com as milícias e com o mesmo esquema criminoso do referido senador. Como bom jagunço de toga ele também interferiu nas investigações que apresentaram fortes indícios da participação de Bolsonaro no assassinato de Marielle e Anderson, segundo o depoimento do porteiro do condomínio “Vivenda da Barra”, residência do presidente. Moro, a fim de proteger Bolsonaro, abriu inquérito contra o porteiro alegando falso testemunho, com o objetivo de obstruir e atrapalhar a linha de investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro e também proteger as milícias.

Boa parte da missão do jagunço de toga foi cumprida. A principal dela foi o fortalecimento da arquitetura do Estado-penal autoritário e o aprofundamento do repertório de violências históricas, sob a égide de um novo paradigma de governança na administração da justiça, instrumentalizando e sofisticando o racismo e seus desencadeamentos na sociedade. Eu diria que compreender o perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros (ver CNJ, 2014/2018) é um diagnóstico importante que nos aponta para uma corpografia jurídica branca, masculina, cristã e cisheterossexual. Essa corpografia, traduzida pela brancura dos operadores do Direito, que compõem o sistema, está presente não apenas na figura simbólica de MORO/BOLSONARO (ambos uma coisa só), mas ao ethos atrelado ao gênero masculino, necessariamente branco, cristão, cisheteronormativo e aos princípios ultraliberais, como metáfora da justiça.

[1] Advogada. Coordenadora de justiça e segurança pública do IBCCRIM, feminista negra abolicionista. Doutoranda em Ciências Sociais na PUC/SP. Atriz e membra Co-fundadora do Coletivo Adelinas.

[2] Termo que tomo emprestado das análises do colunista Odair Dias. Ver aqui https://isnportal.com.br/economia/politica/2020/04/30/o-czarismo-bolsonarista-anuncio-de-uma-autocracia-esfacelada/

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