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Silêncio sobre o racismo é quebrado e manifestações mudam cenário do futebol

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8 de janeiro de 2021

Quadras e estádios voltam a se transformar em arena de protestos contra o racismo após 50 anos de “punhos cerrados” nas Olimpíadas no México

Texto: Aline Bernardes | Imagem: Reprodução

Cinquenta e dois anos depois de cerrar o punho em sinal de protesto nas Olimpíadas do México em 1968, os ecos desencadeados por John Carlos e Tommie Smith contra o racismo ainda ressoam com força no mundo do esporte. O futebol, infelizmente, não reproduz nada de novo. Do Brasil a Portugal, a convivência pacífica com o preconceito tem sido assimilada como norma ao longo de décadas. E os sinais estão aí para quem quiser ver. Mas se antes a conivência com o racismo era regra não escrita do futebol, hoje a relativização da discriminação racial em nome do espetáculo não tem vez – ou pelo menos não deveria ter.

Mundo, 2020. Enquanto a pandemia do novo coronavírus impedia aglomerações e pedidos de “fique em casa” eram amplamente divulgados pelas autoridades sanitárias, dois episódios iniciaram as ondas de protestos nos Estados Unidos. O brutal assassinato de George Floyd por um policial branco enquanto dizia “eu não consigo respirar” no mês de maio e o alvejamento por sete tiros nas costas de Jacob Blake fizeram atletas da NBA, liga de basquete, pintar as quadras com Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e cancelar jogos devido à paralisação dos jogadores da franquia em protesto.

Assistir atletas da NBA se manifestar não é novo. O que me deixou surpresa e, de certa forma aliviada, foi presenciar a quebra do silêncio ensurdecedor do futebol mundial frente a essa pauta. Quantos casos de racismo nos estádios, seja de jogadores, comissão técnica ou torcedores você consegue resgatar na sua memória? As bananas jogadas em direção a Daniel Alves, ainda no Barcelona, e ao Balotelli quando jogava na Itália, as imitações de sons de macacos dirigidos ao Tinga durante uma partida contra o Real Garcilaso-PER e ao Yaya Touré em partida pela UEFA, e tantos outros exemplos.

Se existe a regra 50 da Carta Olímpica, que proíbe manifestações políticas e religiosas durante os Jogos Olímpicos, e pontos do artigo 67, da Conmebol, que veta protestos de jogadores, também há aquele ditado “regras foram feitas para serem quebradas”. Para analisar especificamente o futebol e como o boicote aos atletas que se rebelavam frente ao racismo eram feitos, é preciso apoiar-se na história.

Um dos casos mais emblemáticos do futebol talvez seja o de Moacir Barbosa, goleiro do Vasco da Gama, considerado um dos grandes jogadores de sua posição na sua época. A segurança com que impedia a bola de ir às redes, a elasticidade, o bom posicionamento, saídas rápidas do gol com uma mão só e defesas de mão trocadas, o fizeram conquistar a sonhada vaga na seleção brasileira. Mas, a lembrança que perpetua na memória do torcedor brasileiro é o chute que ele não conseguiu defender.

Maracanã, 1950. Aos olhos de mais de 200 mil pessoas presentes no estádio, a seleção brasileira jogava por um empate, mas perdeu a final para o Uruguai por 2 a 1. A culpa pela derrota foi atribuída aos três jogadores negros em campo. “Quando o brasileiro acusou Barbosa, Juvenal e Bigode, acusou-se a si mesmo”, escreveu Mário Filho no livro “O Negro no Futebol Brasileiro”. A frase do jornalista descortinava o racismo por trás da acusação contra os jogadores na época em que o mito da mestiçagem se fazia presente. Este discurso da fragilidade do negro, repetido por décadas, criou uma mística negativa para os goleiros que ainda habita o imaginário. De Barbosa até a Copa do Mundo de 2018, apenas três goleiros negros foram titulares da seleção brasileira em Mundiais. Manga, em 1966, Dida em 2006, e Jefferson em 2014.

Alguns anos depois, durante a ditadura militar brasileira surge o maior artilheiro do Atlético Mineiro, José Reinaldo, que comemorava seus gols cerrando o punho para o alto, assim como Smith e John Carlos, e não foi diferente na estreia do Brasil na Copa de 1978 na Argentina, que também vivia sob regime militar. Preocupação antes mesmo de embarcar, o jogador – famoso pelas comemorações de cunho político – revelou em sua biografia “Punho cerrado: a história do Rei”, que ao receber a visita, com a presença dos outros jogadores e comissão técnica (toda formada por militares), do presidente Ernesto Geisel, foi lhe dito “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”. Mas assim como muitos dos nossos, ignorou a ameaça por pensar em tudo que deveria ser denunciado. E não deu outra, além de isolado, deixou de ser convocado e passou a ser perseguido.

Assim como Reinaldo, o ex-jogador Aranha, goleiro do Santos na época, também sofreu boicote ao denunciar o racismo. O atleta foi chamado de “macaco” por torcedores do Grêmio durante uma partida da Copa do Brasil, em 2014. Câmeras de televisão flagraram as ofensas, e o clube gaúcho foi excluído do torneio. Três semanas depois do episódio, os times voltaram a se enfrentar, e o goleiro foi vaiado durante toda a partida na Arena do Grêmio. Na época, em entrevista para uma rádio gaúcha, o ex-presidente do Grêmio Luiz Carlos Silveira Martins, defendeu o clube e acusou Aranha de fazer “cenas teatrais” após ouvir um “gritinho”.

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Frente Nacional Antirracista se reuniu com a CBF em dezembro de 2020 para apresentar programas de combate ao racismo. Foto: Mariana Sá/CBF

Dados do Observatório da Discriminação Racial do Futebol mostram que entre os anos de 2014 a 2019 houve um aumento de 235% no número de casos de preconceito envolvendo jogadores de futebol brasileiros no país. Em escala mundial, um estudo da Kick It Out, organização de inclusão e igualdade racial do futebol inglês, revela o crescimento de 53% dos casos no futebol europeu na temporada 2019-2020.

O garoto Moise Kean escutou de Bonucci, seu companheiro de time, que tinha “50% de culpa” depois de sofrer xingamentos racistas ao comemorar um gol. O treinador Mano Menezes insinuou que a reclamação do jogador rubro-negro Gerson seria “malandragem” depois que o atacante saiu inconformado ao ouvir uma fala racista do adversário Ramirez. O brasileiro Serginho chamado de “macaco” em partida pelo Campeonato Boliviano ouviu de um comentarista que: “jogadores sabem onde estão se metendo” ao escolher a carreira nos gramados.

Movidos pelas ações de boicotes e manifestações contrárias ao racismo nas principais ligas norte-americanas citadas no começo do texto, e na Fórmula 1 com Lewis Hamilton, a onda chegou ao campo futebolístico. Lugar de difícil acesso pelos inúmeros interesses comerciais das TV e as blindagens de empresários, gestores, técnicos e presidentes, o futebol mundial que é tomado desde o início pelos símbolos de ódio: racismo, homofobia, xenofobia e intolerância religiosa, começou a mudar.

Richarlison, atacante do Everton (ING) passou a se manifestar pelas redes sociais. Rony, atacante do Palmeiras, ajoelhou em campo, levantando o braço com punho cerrado. O coro foi engrossado por Paulinho, do Bayer Leverkusen; Gregore, do Bahia; Jean Pyerre, do Grêmio; e Lucas Santos, do Vasco. E mais uma vez chorei com o futebol, agora não pela vitória do meu time, mas pela história que estão escrevendo e eu posso contar que vi. A paralisação do jogo entre Istanbul e PSG pela Champions League foi o símbolo mais importante da luta antirracista no futebol em 2020. Os dois times se retiraram do campo após o integrante da comissão técnica Pierre Webo acusar o quarto árbitro Sebastian Coltescu de racismo. Neymar e Mbapé, do PSG, e Demba Ba, do Istanbul, lideraram a saída dos jogadores de campo.

Eu queria terminar o texto com alguma frase de efeito como “com racismo não há futebol, sem democracia não há esporte”, mas nós sabemos que não é bem assim que as coisas funcionam na prática, infelizmente. E é por isso que enfrentar o racismo é uma missão social, coletiva e civilizatória, não um fardo que apenas as pessoas e personalidades negras devem carregar ou ação de marketing. Em 2021, frases como “somos todos iguais” precisam sair do vocabulário para dar espaço às ações. A mudança não vai acontecer se partir exclusivamente de jogadores negros.

Levantar a voz e boicotar jogos não é suficiente, visto que o poder de decisão tanto contra os casos de racismo quanto uma campanha de combate ao racismo estão nas mãos dos dirigentes, donos dos clubes, presidentes das federações, e da Justiça Desportiva. É a partir desse contexto que a Frente Nacional Antirracista se reuniu com a CBF em dezembro de 2020 para apresentar programas de combate ao racismo, que incluía: campanhas publicitárias, ações afirmativas para a inclusão de negros no mercado de trabalho do futebol e projetos de formação antirracista, entre outras medidas. Será que agora veremos mudanças efetivas no esporte mais amado pelos brasileiros?

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