Por: Neon Cunha
Desde que travei um processo penal pela alteração de nome e gênero, ainda sigo fazendo a retificação de alguns documentos. Os mais importantes para uma carreira profissional, os diplomas de mais de 50 cursos extra-curriculares, serão perdidos. Sigo pagando pela retificação dos documentos, assim como custeei todo o processo, já que o Brasil não tem uma Lei de Identidade de Gênero que promova e permita a dignidade plena das pessoas divergentes da cisgeneridade.
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No final de 2016, saiu a sentença favorável de um processo que pede inclusive o direito à morte digna caso o Estado Brasileiro me negasse o direito de existir na condição da mulher que sou. Uma sentença inédita, onde o auto reconhecimento é considerado, e usando, pela primeira vez na Constituição, os Princípios de Yogyakarta (uma legislação internacional de Direitos humanos em relação Internacional e Identidade de Gênero, produzida em 2006). E acima de tudo: obtive o reconhecimento da não necessidade de submissão à cirurgia de redesignação genital e todo um processo patologizador.
O fato é que a cada passo dado nesta longa jornada pela legitimidade concedida por outro me faz pensar, reconhecer e me envolver na dor e na distância de quem sequer pode acessar o sistema. E não são poucas as pessoas que são violadas por esta burocracia que nos oprime e determina condições inferiores ou total negação de humanidade. Não consigo celebrar de forma plena uma vida, ainda que a minha, enquanto outras tantas são negociadas, e não deixo de reconhecer e felicitar quem assim o faz.
Aqui falo do que sinto, da raiva ao ver tanta desonestidade para impedir o direito mais simples, o mais autêntico: o de existir em sua verdade. A forma como pessoas trans e travestis são privadas de reconhecimento social e direitos básicos de cidadania, fruto de um cissexismo – o neologismo usado para condensar duas idéias colonizadoras, em que uma opera enquanto norma governamental (cisgeneridade) e a segunda atua enquanto caráter de dominação, hierarquização e inclusão de diferença (sexismo). Estes dois conceitos vão agir sobre processos de exclusão sobre o corpo que escapa da crença de que o gênero de pessoas cisgêneras é, de alguma forma, mais legítimo que aquele de pessoas transgêneras.
Se somarmos a transfobia produzida pelo cissexismo a outra estrutura tão perversa de exclusão denominada racismo, temos outra dimensão do ódio, como muito bem apontado nos dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Trasexuais), que revelam que 82% das vítimas de transfemininicídio são mulheres trans e travestis negras com uma média de vida menor do que 29 anos. Essa mesma ampliação do ódio não poupou Luana Barbosa, que viveu 4 anos como Luan Vitor e foi executada por se “parecer” como homem na palavra dos agentes do estado, deu visibilidade à discussão de transmasculinidades negras muitas vezes invisibilizadas assim como contribui para reflexão de que o gênero não é imutável.
Simone de Beauvoir ensina: Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre. Somente o caminho da liberdade, somente ele pode eliminar a sujeição. Sem dúvida, esta é a maior contribuição das pessoas trans para esta humanidade que segue em transição: o direito de ser quem se é.
Neon Cunha é mulher, negra, ameríndia e transgênera. Ativista independente, tem como pauta principal pensar a racialidade de forma interseccional com a transgeneridade como elementos de construção de não-humanidade. Uma das maiores vozes do Brasil na luta sobre despatologização das identidades de pessoas trans. Integra diversas iniciativas e espaços como ativista independente: conselheira no Instituto Casa de Criadores, Instituto Marielle Franco, Revista AzMina, associada Geledés – Instituto da Mulher Negra e contribui com inúmeras instituições governamentais e não governamentais. Publicitária, diretora de arte e funcionária pública há 42 anos, trabalha com moda há mais de 25 anos e atualmente se dedica às marcas Isaac Silva (Brasil) e Davii (Portugal). Formada também em Artes Plásticas, recebeu excelência acadêmica pela Federal do ABC em 2021 e o prêmio Milu Vilella em 2022. Desde 2018, é matrona da Casa Neon Cunha, espaço de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social no ABC Paulista. Em 2022 foi candidata a deputada estadual e obteve 35.111 votos.