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Mães-solo sim, sozinhas não: mulheres negras são importantes redes de apoio para puérperas

O aquilombamento feminino é historicamente comum na diáspora africana e serve como ferramenta de afeto, bem viver e acolhimento para mulheres que enfrentam a maternidade sem a presença do pai da criança
Mulheres negras representam o apoio e acolhimento entre mulheres mães-solo.

Foto: @sweetilustra/Alma Preta

28 de novembro de 2023

Em um país com cerca de 11 milhões de mães-solo, segundo dados da Agência Brasil, poder contar com uma rede de apoio é considerado uma estratégia de Bem Viver, especialmente para a população negra feminina, que corresponde a  6,9 milhões de mulheres com a responsabilidade de criar seus filhos sozinhas, sem a participação do pai da criança.

Às vezes, essa rede faz parte da família. Em outras ocasiões, o apoio provém de amigos e pessoas próximas, que buscam suprir as necessidades dessas mães-solo mesmo em meio às dificuldades financeiras. É o que explica a historiadora e mestra em sociologia Janete de Almeida.

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“Historicamente, as mulheres negras se aquilombam para educar crianças juntas, pois a rotina de trabalho extensa e o abandono paterno é uma situação que assola essas mulheres desde o regime escravagista”, salienta.

Janete explica que durante o período colonial, quando uma mulher negra dava à luz e passava pelo período conhecido como puerpério, outras escravizadas realizavam o seu trabalho para que ela pudesse repousar nesse momento. As refeições eram reforçadas no intuito de que essa mulher pudesse amamentar e tudo era compartilhado para garantir uma boa dieta para a puérpera.

“A gente vem de uma tradição ancestral em que mulheres apoiam, acolhem, ensinam e fortalecem outras mulheres. E mesmo após o fim da dita escravidão, esse costume pode ser visto em comunidades periféricas até os dias de hoje”, pondera a historiadora.

Acolher, ensinar e proteger as puérperas

A maternidade solo, segundo a psicóloga Juliana Cardoso, é complexa, especialmente quando se trata da primeira gravidez de uma mulher. Quando se aplica o fator racial às mais diversas situações que essas mães-solo passam durante o pós-parto, a condição de saúde mental dela precisa ser assistida de perto, a fim que não haja o desenvolvimento de problemas, como a depressão e a ansiedade.

“Nesse momento cabe a rede de apoio o trabalho de acolher essa mulher, ensiná-la a viver da melhor maneira possível essa fase e protegê-la da exaustão física e mental. Estamos falando de mulheres negras, presentes em todas as estatísticas sobre violência obstétrica do Brasil”, descreve a psicóloga. 

Segundo o artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, feito pela pesquisadora Maria do Carmo Leal, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mulheres negras têm 50% de chances a menos de receber anestesia durante o parto, possuem maior risco de ter um pré-natal inadequado, têm maior peregrinação entre maternidades – buscando mais de um hospital no momento de internação –, e frequentemente estão sozinhas, com ausência de acompanhante durante o parto.

“Logo, contar com outras mulheres negras que infelizmente já passaram por tais situações ou entendem o racismo estrutural é uma importante ferramenta de acolhimento, transmissão de saberes e garantia de uma existência materna digna, apesar das adversidades inevitáveis do parto e do puerpério”, completa Janete.

Vizinhança solidária

Carlla Santos da Silva é uma das mães-solo que compõem a estatística nacional. Aos 15 anos, a jovem moradora do Grajaú (SP) deu à luz ao seu filho em setembro de 2023. O pai da criança foi preso durante o primeiro trimestre da gestação de Carlla, restando a ela apenas o apoio de sua mãe e vizinhas – tanto durante o pré-natal como no puerpério.

À Alma Preta Jornalismo, a estudante conta que sofreu muito para ganhar bebê. Sendo submetida a um parto normal induzido, a adolescente ouviu diversos comentários maldosos – proferidos pelos profissionais de saúde – durante suas horas de internação. 

“As enfermeiras me diziam para não gritar, senão iam me deixar sozinha. Não deixaram a minha mãe assistir o parto. Eu cheguei na maternidade sem dilatação. Fiquei 18 horas no induzido. E para o Valentim [filho] nascer, me cortaram muito. Tomei 21 pontos, mais do que se tivesse sido cesárea”, relembra a jovem.

Ao chegar em casa, ainda muito debilitada e com mobilidade reduzida, Carlla contou com o apoio de vizinhas, que se revezavam entre ajudá-la com as tarefas de casa, realizar a assepsia da sua cirurgia, cuidar do recém-nascido para que ela descansasse e pegar na escola as matérias das aulas, para que ela não perdesse o ano letivo.

“Eu não sei o que seria de mim se não fosse a minha mãe e as minhas vizinhas. Elas me ensinaram tudo e até hoje me ajudam. De verdade, eu percebi que literalmente o filho é só da mãe e que só mulheres ajudam mulheres. Até comida na cama me trouxeram, me ajudaram a dar de mamar. Elas [vizinhas] supriram tudo, todas me trataram como filha”, emociona-se a jovem. 

“Só mulheres negras me ajudaram”

A vida de Joyce Cristina Araújo, de 19 anos, virou de cabeça para baixo quando ela descobriu que estava grávida. Um mês após completar o ensino médio e a maioridade, veio a notícia da gravidez. Nascida em Porto Alegre (RS), ela foi criada em um lar religioso. Aos 18 anos por pressão familiar e da igreja, Joyce se casou e mudou de cidade, para o município de André da Rocha, interior gaúcho. No entanto, ao descobrir a gravidez, foi abandonada pelo pai da criança, um homem 29 anos mais velho do que ela.

“Quando eu falei que estava grávida ele simplesmente disse que ia visitar a família no Ceará para dar a notícia do bebê e nunca mais voltou ou deu notícias. Me bloqueou em tudo, simplesmente sumiu”, relembra. “Me senti uma idiota, com a minha família contra mim. Uma solidão total porque eu não conhecia ninguém na cidade e meus pais não queriam de volta em casa”, acrescenta.

A gravidez de Joyce foi muito conturbada e de risco. Há mais de 200 km da sua família – que a culpabiliza pelo abandono do marido –, ela diz que se deu conta de que mulheres negras sofrem violência obstétrica durante seu trabalho de parto. Ao completar oito meses de gestação, Joyce sofreu uma queda e perdeu líquido amniótico. Assustada, foi para o hospital às pressas, local em que foi vítima de diversas violências.

“Perguntaram [enfermeiros] o que eu tomei para abortar, porque eu estava com sangramento. Zombaram que ia nascer mais um pretinho sem pai. Foi só quando mudou o plantão e veio uma enfermeira negra que eu fui bem atendida. Ela cuidou de mim, quis saber da minha história, passou o telefone dela e me ajudou no pós-parto”, relata.

“A Maria Helena [enfermeira] me falou que era para eu não me sentir mal, pois as pessoas do Rio Grande do Sul eram racistas mesmo e que no final éramos nós por nós. Ali eu percebi que era negra, que era pobre, uma dentre tantas mães-solo por aí, que sofria preconceito. Se não fosse ela eu não sei como faria”, relembra.

Após a alta, Joyce conta que a enfermeira a ajudou no puerpério. Nas visitas, Maria Helena levava sua filha e sua irmã mais velha para auxiliar a jovem. Segundo Joyce, a amizade com as três mulheres negras dura até hoje. “Sou muito grata por elas aparecerem na minha vida. Só mulheres negras me ajudaram e me deram força. Vou guardar esse ensinamento para sempre”, diz.

Lições da ancestralidade

“Mesmo mães-solo que não têm letramento racial compreendem que o apoio vindo de outras mulheres negras é sagrado e faz parte de seu DNA. As atitudes de uma comunidade feminina marcam o imaginário dessa mãe, o que a faz passar isso para frente. Ou seja: o apoio comunitário, trazido na diáspora, é uma forma de perpetuar a ancestralidade negra de mulheres que se ajudam. É uma sábia estratégia de bem viver”, explica a historiadora Janete de Almeida.

Aos 81 anos, Maria do Rosário é parteira. O ofício foi passado de geração em geração, começando por sua bisavó, que foi escravizada.

“Sei trazer menino para o mundo de um jeito que não faça a mulher sofrer mais do que precisa. Quando tiver que ir ao hospital, eu vou junto. Se o bebê decide nascer em casa, eu corro lá. Ajudo. Ensino a menina a dar o peito. A trocar. Muitas não tem ninguém para ajudar”, conta.

“Eu já vi médico desfazendo de uma mulher porque ela era preta, chamando de ‘fedida’ e ‘suja’. E aqui [Várzea Nova/BA] a gente é muito simples. Então, mesmo com a idade, eu ainda posso ajudar em uma coisa ou outra. Minha mãe aprendeu com a minha avó, que aprendeu com a mãe dela. E eu continuo enquanto Deus permitir”, completa a parteira.

A cidade baiana de Várzea Nova tem cerca de 13 mil habitantes. E nas contas de Dona Maria do Rosário, boa parte dos moradores nasceram com o auxílio de suas mãos. 

“Perdi as contas quando chegou no 300. Mas muita gente veio para esse mundo com a ajuda dessa velha aqui. Minha mãe teria orgulho de mim, por que eu não deixei morrer os ensinamentos que ela passou. Há mais de 45 anos perdi minha mãe, e até hoje lembro de tudo que ela me ensinou”, descreve.

A psicóloga Juliana Cardoso finaliza dizendo que mais do que bem viver, a união e o acolhimento entre mulheres negras é um símbolo de resistência. 

“Aquilombar para garantir às mães-solo um puerpério digno e pleno é um exercício valioso para a saúde mental, de quem se doa e de quem recebe. É um ato político, de amor, que afirma nossa identidade e negritude”.

MA’AT O Bem Viver Na Consciência Negra. Este conteúdo faz parte de uma série baseada no Bem Viver, movimento baseado nos conhecimentos ancestrais, colaborativismo e equilíbrio ambiental. Uma forma de repensar a exploração do trabalho e a fruição da vida.

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  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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