“O audiovisual é um instrumento para traçar novos afetos, novas narrativas e perspectivas”, afirma Edileuza Penha de Souza, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora, atriz, roteirista e diretora, Edileuza faz parte de um gruo de negros e negras que pensam e fazem cinema de animação. São filmes em stop motion, desenho gráfico, à mão livre e diversas outras técnicas que servem como meio para mostrar a cultura afro-brasileira para um público diverso.
Autora dos livros Negritude, Cinema e Educação, volumes 1, 2 e 3, Edileuza é uma grande entuziasta do cinema negro como objeto de trabalho na educação básica. Nestes fascículos ela mostra como professores de várias áreas do conhecimento podem usar o cinema negro em sala de aula. Ela ressalta que o cinema negro de animação é uma forma de colocar em prática a Lei 10.639/2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
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A especialista mostra que, desde sempre, os cinemas protagonizados por pessoas negras ou por personagens negros eram feitos por pessoas brancas. Como é o caso do longa-metragem Soul, da Pixar, por exemplo. Já os filmes negros, feitos por pessoas negras, como é o caso das produções da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro), grupo que surge em 2016 e hoje são mais de mil associados, demonstram que a estética negra pode ter um lugar de destaque no audiovisual nacional e internacional.
“O cinema branco nunca precisou ser intitulado como branco, ele sempre foi branco e ponto final. O diretor, o roteirista, a equipe e a história são brancos e é apenas cinema. Quando a gente [povo negro] está fazendo cinema, vem um monte de adjetivos para a linguagem e a estética que nos deixa de fora desse lugar”, diz Edileuza, que também compôs o hall de pesquisadores entrevistados pelo podcast ‘Dazumana: a ciência sem jaleco‘, realizado por Juliana Mendes e Leyberson Pedroza.
Histórias negras na animação
O curta de animação “Òpárá de Òsùn: quando tudo cria“, cuja direção é de Pâmela Peregrino, conta a história da Orixá das águas doces, que no Candomblé é Òsùn a deusa da fertilidade. Já o curta “Mãe dos netos”, de Isabel Noronha e Vivian Altman, é narrado por Vovó Elisa, personagem central. Ela conta a história de como Francisco, seu único filho, e suas oito mulheres morreram em decorrência do HIV/Aids, deixando sob sua responsabilidade 14 netos.
Ambas as animações foram feitas em stop motion com massinha de modelar e trazem questões profundas que vão muito além de um imaginário infantil. A cultura negra está presente na raiz de cada uma delas e as histórias refletem a complexidade das narrativas afro centradas.
Em Òpárá de Òsùn, o processo de produção do curta-metragem de animação envolveu a comunidade Barroca, em Paulo Afonso, através de oficinas de contação de história dos Orixá e oficinas de técnicas de animação. O roteiro foi elaborado de maneira participativa com o Terreiro de Candomblé Abassà da Deusa Oxum de Idjemim para homenagear a Òsùm Òpárá.
O cenário é vivido no sertão do Rio São Francisco, conhecido pelos povos Indígenas como Opará – rio que corre para o mar ou grande fio d´água, e que em yorubá significa, espaço de criação, onde tudo nasce. O Projeto foi financiado pelo Calendário de Artes da Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia.
“Opará de Oxum mostra que todos têm responsabilidade com aquela produção. A animação teve a participação de indígenas e foi filmado dentro de um terreiro. Quando Pamela junta todos esses elementos, demonstra que o filme é algo feito em coletivo” diz a especialista.
E complementa: “Nesta obra, todos na ficha técnica são chamados de autores e co-autores porque é impossível pensar cinema como algo singular. Dar uma devolutiva, fazer uma mostra nas comunidades e envolver a comunidade no processo é o mínimo que se faz por quem está doando o que é mais precioso: as suas memórias”.
Animação como instrumento de mudança
Mãe dos Netos foi produzido em Moçambique pela FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade). O documentário retrata uma história real, um problema social, cultural, econômico e político ao descrever a morte e a desintegração familiar por conta do HIV e a Aids. Ao mesmo tempo, ele narra o apoio mútuo que opera na família Muchanga.
“Eu não tenho dúvida que o audiovisual é um instrumento que pode trazer novos olhares, como este de desmistificar o HIV e a Aids e mostrar todo um contexto social inserido. Há uma avó que acolhe e que está preocupada com o futuro dos seus netos. Ela diz: ‘E quando eu morrer, quem vai cuidar deles?’”, ressalta Edileuza Penha.
Com esses exemplos, Penha expõe que as animações como um todo não são produções cinematográficas apenas para o público infantil, mas atinge um local de afeto de todas as pessoas e mais profundamente as pessoas negras.
“A primeira questão a pensar é que a animação negra tem esse papel politico social e afetivo de contar histórias, estamos falando de histórias protagonizados por personagens negros e como essa história possibilitam criar outro imaginário, mais posivito sobre si”, diz Edileuza.
Ela afirma, ainda, que quando os filmes são utilizados em salas de aulas e em seminários, as crianças e adolescentes têm uma resposta positiva e podem, inclusive, passar a se assumir como pessoas pertencentes ao candomblé, diminuindo estigmas, discriminações e preconceitos.
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