Se a grande maioria das vítimas de violência letal no Brasil são adolescentes de 15 até 19 anos, a violência sexual apresenta outra característica: os dados apontam que, entre 2017 e 2020, entre as vítimas de 0 a 19 anos, 81% tinham até 14 anos de idade. É o que diz o Panorama da Violência Letal e Sexual Contra Crianças e Adolescentes no Brasil.
O documento mostra que enquanto em 2017 foram registrados aproximadamente 7,2 mil estupros de vulneráveis com vítimas brancas, e 5,3 mil com vítimas negras, em 2020, foram 5,2 mil e 5,6 mil, respectivamente. “Verifica-se, portanto, uma redução de 26,8% do número de vítimas brancas e um aumento de 6,5% do número de vítimas negras, resultando na inversão da distribuição”, pontua a análise.
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O crime de estupro também tem padrão no sexo das vítimas. Em todas as faixas etárias, a maior parte das vítimas é do sexo feminino. Porém, dentre as vítimas de 0 a 4 anos e de 5 a 9 anos, as meninas representam 77% do total e os meninos, 23%. Já entre as vítimas de 10 a 14 anos e 15 a 19 anos, o sexo feminino responde por 91% dos registros, e o masculino, por 9%. Isso indica que, quanto mais velha a vítima, maior a chance de ela ser uma menina.
A cyberativista, analista de comunicação e administradora do projeto “Mulheres Históricas”, Dai Soares, considera que muitas vezes a infância é roubada de crianças pretas e periféricas pelas ramificações do racismo e sua estrutura. Segundo Dai, muitas crianças começam a trabalhar muito cedo para ajudar em casa e são expostas a todos os tipos de riscos em uma sociedade que silencia a exploração sexual infantil e naturaliza a pedofilia.
“Um dos fatores mais predominantes é a hipersexualização de corpos negros e a adultização de corpos infantis, principalmente nas perferias, onde a grande maioria das pessoas, são pretas”, comenta a cyberativista.
“Eu achei que se contasse para a minha mãe ela ia ficar brava comigo e tomar meu celular. Só depois eu me dei conta de que fiz uma grande irresponsabilidade. Eu acho que se ele [agressor] quisesse, teria me matado. Mas eu acho que alguma coisa ele conseguiu matar dentro de mim. Eu nunca pensei que a minha primeira vez fosse ser assim e terminar em um abuso sexual”.
Ana Clara da Silva*, de 15 anos, moradora da zona leste de São Paulo, faz parte das estatísticas apontadas pelo panorama. Negra, de origem periférica, filha única de mãe solo, ela conta à reportagem da Alma Preta Jornalismo que conheceu um homem no Instagram, que mais para frente se tornaria seu agressor sexual. Ana relembra que tudo começou quando ele chamou a sua atenção ao curtir suas fotos e mandar comentários no direct.
“Eu não vou mentir, eu fiquei feliz de receber os elogios. Na escola, nenhum dos meninos queria ficar comigo e, na pandemia, pior. Então, quando ele começou a curtir minhas fotos, eu fiquei me sentindo bonita, sabe? Foi aí que a gente começou a conversar e ele pediu meu número”, conta a adolescente.
Na época do caso – que durou de outubro de 2020 até março de 2021 – Ana Clara escondeu da mãe que estava conversando com um homem mais velho e até passou a apagar as conversas do celular.
“Ela [mãe] sempre foi de olhar meu celular por medo de eu cair em alguma coisa dessas. Então eu escondi dela, salvei o nome dele como se fosse de uma amiga da escola e apagava todas as nossas conversas. E isso foi ruim depois porque eu não tinha como provar nada do que ele me falou ou fez comigo”, lamenta a jovem.
O homem, identificado apenas como Henrique, tinha 42 anos quando começou a conversar com Ana. Ela conta que se apaixonou por ele e por tudo que ele dizia nas conversas, que iam desde elogios até convites para a casa dele, o que, posteriormente, a adolescente aceitou.
“No começo eu até falei para ele, meio que brincando, sabe? Eu falei: ‘isso é pedofilia por que eu tenho 13 anos’, e ele me respondeu ‘eu não sou pedófilo, sou efebófilo, sou doente, então não tem problema’. Um dia, minha mãe saiu para trabalhar e eu tomei coragem e disse para ele vir me buscar em casa”, diz a jovem.
Efebofilia
A psicóloga Débora Bonfim, pós-graduanda em Sexualidade Humana, pedagoga e palestrante, explica que a efebofilia se trata do desejo sexual em relação aos menores de idade, na idade puberal ou pós-puberal, denominado também como hebefilia.
“É uma parafilia ou distúrbio parafílico, caracterizada pelo surgimento de fantasias sexuais intensas, nas quais o principal objeto de desejo está focado em seres não humanos, objetos não consentidos ou incapazes de consentir, ou envolve a existência de dano e sofrimento para si ou para os outros”, comenta.
A psicóloga também aponta que essas fantasias são apresentadas intensamente por, no mínimo, seis meses, e geram disfuncionalidade e alteração no dia-a-dia do sujeito, pois ocupam parte de seu tempo e podem – ou não – gerar desconforto para a pessoa.
“A fantasia pode permanecer imaginativa ou pode pressionar o sujeito a tentar praticá-la. Geralmente, gera um interesse sexual exclusivo, embora este último item não seja essencial em relação ao estímulo parafílico”, afirma a profissional.
“Tecnicamente, esse tipo de interesse sexual pode ser considerado um tipo de pedofilia, pois, nesse caso, o sujeito do desejo do efebófilo permanece menor. No entanto, há uma característica em que elas diferem: no caso dos efebófilos, o sujeito já possui características sexuais semelhantes às de um sujeito adulto, já que está passando pela puberdade ou já a superou, enquanto na pedofilia clássica, interesse é focado em sujeitos pré-púberes, sem atributos sexuais”, completa.
No entanto, para a legislação brasileira, um efebófilo não é considerado uma pessoa “doente”, como aponta a advogada e mestra em Ciências Humanas e Sociais, Ana Paula Freitas. “Nas leis temos as ações que são consideradas como crimes e cabe ao judiciário determinar se os efebófilos cometeram algo ilícito e em qual crime sua conduta se encaixa”, diz a jurista.
A advogada explica que, quanto à penalidade, fica a cargo de um incidente processual determinar se essa pessoa pode ser responsabilizada ou não pelo crime.
“Caso possa cumprir a pena, a pessoa será destinada para o estabelecimento penitenciário comum. Se for concluído que essa pessoa não pode responder por seus atos, ela deve ser encaminhada para um Hospital de Custódia e Tratamento”, comenta.
O crime
“No carro eu estava com medo, mas eu tentei não demonstrar. Daí eu estava tremendo e ele falou que ia fazer umas coisas comigo que talvez eu não gostasse muito, mas que ele precisava fazer por que ele era uma pessoa doente que não conseguia se controlar mais. Ele disse que seria uma prova de amor que, se eu passasse, ele iria convencer a minha mãe de que a gente deveria ficar juntos e casar”, relembra Ana Clara
A adolescente conta que ao chegar na casa de Henrique, ele começou a dizer várias vezes a frase “olha o que você me faz fazer”. Depois disso, o homem passou a tentar tirar a roupa da menor. Com medo, Ana pediu para que ele parasse, pois tinha mudado de ideia quanto à relação sexual. Foi neste momento que a postura do homem passou a ser mais agressiva.
“Ele começou a me xingar, disse pra eu calar a boca por que ele não ia perder tempo nenhum mais com conversa. Aí ele me deu um tapa na cara, me jogou no sofá e começou. Juro por Deus que eu travei, tentei lutar mas não tinha nem força para reagir. Eu estava com vergonha, com dor, com medo, arrependida de não ter conversado com a minha mãe. Eu realmente quis morrer”, desabafa a jovem.
Ao fim da violência sexual, Ana Clara explica que Henrique se desculpou e disse que a amava muito, mas que era uma pessoa doente “com problema sexual”. Ele ofereceu à jovem um sorvete que já tinha em sua geladeira, pediu para que ela se acalmasse – pois estava chorando – e disse que ia levá-la de volta para casa apenas se a adolescente prometesse que não ia contar a ninguém o que aconteceu.
“Ele disse que me amava, mas se eu contasse para alguém ele ia mostrar o vídeo para todo mundo. Eu gelei porque ele disse que tinha uma câmera escondida na casa dele. Fiquei pensando na minha mãe vendo isso e prometi que não ia comentar nada, e que só queria ir para casa. Eu estava me sentindo muito culpada por tudo que aconteceu”, diz.
Consequências psicológicas
“Eu comecei a perceber ela [Ana Clara] quieta, chorando pelos cantos, isolada. Ela não olhava para mim quando eu falava com ela. Comecei a pensar no pior, que algo de muito grave tinha acontecido com a minha filha. Ela reclamou de cólica por dias, disse que estava com dor e por isso estava tão quieta. Mas eu sentia que tinha algo errado”, lembra Luísa Fernandes*, mãe de Ana Clara.
A psicóloga Débora Bonfim explica que a violência sexual gera grandes sequelas psicológicas nos adolescentes, marcas estas que perduram por muitos anos. Ela diz que a curto prazo, o sentimento de culpa, o medo de relatar aos responsáveis, o sentimento ambíguo de prazer com repulsa são os mais marcantes.
“A médio e longo prazo cito agressividade, desenvolvimento de distúrbios de ordem emocional, dificuldade nas relações afetivas, desconfiança excessiva, perda da inocência, timidez, tristeza profunda, baixa autoestima, submissão sem questionamentos, necessidade de aceitação, depressão, transtorno de ansiedade generalizada, compulsão sexual, disfunções sexuais, vaginismo, automutilação, neuroses, dentre outros distúrbios”, enfatiza a profissional.
Depois de quase duas semanas da violência sexual, dona Luísa diz que já estava no limite e que decidiu colocar a adolescente “na parede”. Preocupada, a mãe solo disse que chamou a filha para conversar, dizendo que se ela falasse a verdade do que havia acontecido, ela prometia que não colocaria a jovem de castigo.
“Foi aí que ela [Ana Clara] desabou. Ela chorava tanto, mas tanto, que eu comecei a ficar desesperada também. Ela só dizia ‘desculpa, mãe, foi tudo minha culpa’. Essa menina começou a tremer, ficar com a boca roxa, falta de ar. Olha, foi terrível ver minha filha assim, não desejo para nenhuma mãe”, lamenta.
“Aí eu perguntei: ‘filha, alguém te machucou’. E ela só respondeu que sim com a cabeça. Eu perguntei o que a pessoa fez e ela começou a chorar mais, chorou por uns cinco minutos e disse baixinho: ‘me estuprou’. Meu mundo caiu naquele momento”, desabafa a mãe de Ana Clara.
Denúncia
A advogada Ana Paula Freitas enfatiza que a Constituição Federal, em seu artigo 227, trata da prioridade absoluta na defesa dos direitos das crianças e adolescentes e diz que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
“Nesse contexto temos alguns crimes previstos na legislação brasileira, mais especificamente no artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. Junto com o crime de exploração sexual, a depender do caso, podem ser incluídos outros crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente no Código Penal”, pontua a jurista.
A advogada pontua que, caso um adolescente ou criança seja vítima de exploração ou abuso sexual, é necessário procurar auxilio com alguém de sua confiança e, na ausência dessa figura, ligar para o disque 100 ou ir até uma delegacia de polícia.
“Sua palavra conta como prova importante da configuração do crime, e será encaminhada para submissão de exames médicos e acolhimento. O caminho para levar uma denúncia para frente é a primeira notificação. Após tomar conhecimento dos fatos, cabe ao Ministério Público e a polícia conduzir as investigações”, salienta.
Ao saber do ocorrido, a mãe de Ana Clara seguiu com as etapas descritas pela jurista Ana Paula Freitas. Luísa afirma que não irá deixar o caso de lado e que o processo ainda está em aberto, mas que ela conta com apoio de um advogado. A mãe de Ana Clara prefere não detalhar os trâmites, para sua proteção e da filha.
“Eu não vou parar enquanto esse homem não for preso e punido pelo que fez com a minha filha. O adulto é ele, ela é só uma menina. Eu quero que ele pague o que a lei determina, nem nada a mais ou a menos. É só isso que eu quero. Ela errou em se expor assim? Errou. Mas o adulto é ele. Quem tem que pagar é ele, e não ela, que já está traumatizada”, destaca a mãe da adolescente.
A advogada Ana Paula Freitas enfatiza que pena prevista no art.244-A do ECA é de quatro a 10 anos e multa para crimes sexuais contra adolescentes. “Além da perda de bens, os valores utilizados no crime são revertidos para o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente do Estado em que o crime ocorreu”, comenta.
O que isso diz sobre a sociedade?
A psicóloga Raísa Soares, especializada em atuação feminista e antirracista, aponta que há um grande problema social quando o assunto diz respeito à proteção de crianças e adolescentes negros conta abuso e exploração sexual.
“Nossa cultura naturaliza a violência sexual, a pobreza que atravessa muitas famílias e sobre como os abusadores usam desse cenário para se aproximar de adolescentes. Isso tudo demonstra como o machismo favorece para que corpos femininos sejam lidos como propriedade e objeto”, avalia a profissional.
Raísa pontua que os números a respeito da exploração sexual – como apontados pelo Panorama da Violência Letal e Sexual Contra Crianças e Adolescentes no Brasil – mostram a urgência em criar políticas públicas de combate, bem como o fortalecimento dos canais de denúncia e para trazer conscientização social de prevenção e cuidado.
“Uma sociedade em que questões de gênero, raça e classe são indicadores de violência é uma sociedade em adoecimento. Novas possibilidades precisam ser construídas, psicologicamente, social e culturalmente. É preciso trazer novos debates que combatam a exploração sexual”, pondera.
“Seguir em frente não é fácil”
A cyberativista Raísa Soares avalia que é impossível falar sobre apoio psicológico aos adolescentes vítimas de violência sexual sem pontuar a necessidade de um apoio social. Para ela, a recuperação precisa também ser coletiva.
“É preciso ampliar a política de enfrentamento à violência sexual, informar, conscientizar os adultos e no aspecto psicológico, há um trabalho de fortalecimento emocional a ser feito. As vítimas saem fragilizadas, com medo e vergonha, portanto, devolver a voz e o direito a fala a essa adolescente é o caminho da promoção à saúde”, pondera.
Já Débora Bonfim salienta que os danos causados pela exploração sexual podem ser irreversíveis, dependendo da situação, tempo de exposição a essa situação, e também de quem cometeu tal ato. Para a psicóloga, se trata de sequelas que ferem a alma e atravessam a história de uma pessoa, principalmente quando se está em formação.
“O trabalho em alguns casos precisa ser realizado por uma equipe multidisciplinar (psicóloga , psiquiatra, fisioterapeuta,etc) para a recuperação dessa pessoa e possibilidade de uma qualidade de vida melhor. Esquecer é impossível”, analisa a profissional.
Ela recomenda que em casos de violência sexual, é ideal que a vítima seja submetida a sessões de psicoterapia semanais, no sentido de auxiliar esse adolescente a elaborar toda essa dor. Segundo a psicóloga, há um luto que precisa ser trabalhado.
“Luto pela perda da imagem infantil, pelo que foi vivido antecipadamente, luto pela perda de confiança e referência nos adultos, enfim muitos fatores. O profissional qualificado saberá identificar o tempo e o limite de cada paciente para auxiliar na cura dessas feridas emocionais”, pondera.
Débora ainda pontua que é de extrema importância uma rede de apoio familiar e um olhar atento para esta família também. “É possível que esse adolescente cresça como um adulto saudável, dentro das suas possibilidades, construa uma autoimagem positiva e ressignifique toda a sua história”, diz.
Atualmente, Ana Clara faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico. De acordo com a mãe da jovem, o objetivo dela é que a menina possa aprender a lidar com o trauma que viveu.
“Seguir em frente não é fácil, mas eu fico mais aliviada em saber que ela está bem assistida com os profissionais que cuidam dela. Eu quero apenas que a minha filha consiga seguir em frente e que a pessoa que a traumatizou seja punida. Nem que eu leve a vida toda para ver isso acontecer, eu quero que minha filha saiba que ela é mais do que uma vítima”, explica dona Luísa.
No momento, o agressor de Ana Clara está sendo procurado pela justiça, segundo a mãe da vítima. Ana Clara segue firme no tratamento, mas desde o ocorrido excluiu as redes sociais e evita sair de casa por medo de encontrar Henrique.
*Ana Clara e Luísa são nomes fictícios, a fim de proteger a identidade das vítimas.
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