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Doutora Honoris Causa: ‘Sueli Carneiro é uma rigorosa intérprete do Brasil’

A filósofa, escritora e ativista tem uma produção intelectual extensa voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira

Imagem da filósofa Sueli Carneiro, que é uma mulher negra.

Foto: Imagem: Instituto Ibirapitanga

22 de março de 2022

Uma das maiores intelectuais do Brasil e referência histórica do movimento negro, a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro é a primeira mulher negra a ter título de ‘Doutora Honoris Causa’ da Universidade de Brasília (UnB).

A decisão foi tomada pelo Conselho Universitário da universidade (Consuni) na última sexta-feira (18). ‘Honoris causa’ é uma expressão em latim que significa ‘por causa de honra’. Utilizada atualmente como um título de honra, é o mais importante concedido pela universidade e atribuído a pessoas nacionais ou estrangeiras de grande destaque ou importância por sua contribuição à cultura, à educação ou outras áreas da humanidade.

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O filósofo, professor de Filosofia e Bioética da UnB Wanderson Flor foi o responsável, junto à professora Vanessa Castro, pela escrita do memorial e do pedido para a honraria concedida à filósofa Sueli Carneiro, que foi realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB.

De acordo com o professor, a filósofa foi escolhida por suas profundas contribuições para o Brasil em suas dimensões política e intelectual articuladas. A filósofa é conhecida por seu ativismo no movimento antirracista e também por sua extensa produção intelectual voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira.

A outorga do título de ‘Doutora Honoris Causa’ a Sueli Carneiro foi aprovada por aclamação no Conselho Universitário da UnB.

“Sueli é uma marca de um pensamento rigoroso e de um engajamento sem concessões em torno do enfrentamento ao racismo, ao patriarcado e a outras formas de opressão. Ela, no movimento negro, soma-se ao coro de intelectuais que não apenas querem mudar a realidade social de nosso país, mas também oferecer outras categorias analíticas por meio das quais possamos entender a história brasileira”, explica Wanderson Flor.

“Entre esquerda e direita, continuo sendo preta”

Sueli Carneiro com representantes do Movimento Negro.

Sueli Carneiro, à esquerda, com advogado e ativista Bryan Stevenson e representantes do Movimento Negro de SP em 1991 na sede do Geledés | Crédito: Jornal do MNU N°19

Aparecida Sueli Carneiro Jacoel nasceu em São Paulo em 1950. Nos anos de 1971, ela ingressou no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e é nesse ambiente, vivenciado durante a ditadura militar, entre 1971 e 1980 que a filósofa se aproxima dos movimentos negros e também feminista. Posteriormente, também na USP, Sueli obteve o título de Doutora em Educação.

Aos 71 anos de idade, a escritora constrói reflexão teórica e ativismo pela população negra em seus mais de 150 artigos publicados em jornais, revistas e livros, sendo considerada uma das mais relevantes pensadoras do feminismo negro no Brasil.

De acordo com a Enciclopédia de Antropologia, do Departamento de Antropologia da USP, a militância política de Sueli Carneiro iniciou-se no Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), uma das principais organizações do movimento negro da cidade de São Paulo que foi fundada em 1971 pela produtora e atriz Thereza Santos e pelo sociólogo Eduardo de Oliveira.

A entrada da filósofa no Cecan corresponde com o período em que a entidade coloca a educação como foco maior de atenção, voltando-se mais para a juventude negra. Em 1981,o centro encerra suas atividades, mas não sem antes fortalecer as bases de outros movimentos políticos e negros da capital paulista.

Em 1983, o governo de São Paulo criou o Conselho Estadual da Condição Feminina, composto por 32 mulheres brancas, sem nenhuma mulher negra. Sueli Carneiro foi uma das lideranças que reivindicou a participação de uma representante negra no Conselho.

“Encontramos em Sueli um exemplo de ativista, engajada em ações concretas de enfrentamento às violências e desigualdades causadas e informadas pelas estruturas opressivas racializadas e generificadas em nosso país; de intelectual, que desde seu ativismo, pensa o Brasil; e de cidadã comprometida com uma sociedade menos opressiva, menos violenta e discriminatória”, pontua o professor Wanderson Flor.

Em 1988, a filósofa fundou o Geledés – Instituto da Mulher Negra, a primeira organização negra e feminista independente de São Paulo, que se posiciona em defesa das mulheres negras, buscando combater desigualdades de gênero e raça e fortalecer a autonomia diante de um momento em que as pautas feministas eram vistas sobretudo pela ótica de mulheres brancas.

O nome Geledés foi escolhido porque é originalmente uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso presente nas comunidades tradicionais iorubá, portanto, é um forma de culto ao poder feminino.

Em 1990, a filósofa criou no Instituto um programa de saúde mental e física destinado às mulheres negras, único brasileiro de orientação na área de saúde específico para esse grupo.

“Para o movimento negro e para a história do Brasil, encontramos em Sueli uma rigorosa intérprete do Brasil e uma pujante ativista em prol da justiça social”, destaca o professor Wanderson.

A escritora já ganhou uma série de prêmios e homenagens, como o Diploma Mulher-Cidadã Bertha Lutz, recebido em 2003, como homenagem por sua atuação na defesa dos direitos femininos. Em 2017, também foi ganhadora do Prêmio Itaú Cultural.

“Somos seres humanos como os demais, com diversas visões políticas e ideológicas. Eu, por exemplo, entre esquerda e direita, continuo sendo preta”, é uma das frases ditas por Sueli Carneiro na edição número 35 da revista ‘Caros Amigos’, de fevereiro de 2000, em que sintetiza o lugar político fundamental para o movimento negro no Brasil.

No livro ‘Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro’ a jornalista Bianca Santana traça a biografia e a trajetória política de importância da filósofa, que trouxe de forma central em suas produções o protagonismo das mulheres negras e teve atuação essencial para inserir gênero e raça na agenda pública.

“Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social. Doravante, nada mais será possível sem nós”, explicou Sueli Carneiro, em uma de suas raras entrevistas, na Revista Cult.

Leia mais: ‘Continuo Preta’: Livro sobre a vida de Sueli Carneiro tem lançamento online

Entre Abdias, Milton e Nelson

De acordo com o professor Wanderson Flor, a Universidade é um lugar ainda muito racista e machista. Na lista de títulos de doutor honoris causa concedidos pela UnB, ao longo de quase sessenta anos, foram entregues até agora 51 títulos.

Apenas quatro foram para pessoas negras – Nelson Mandela em 1990, Milton Santos em 1999 e Abdias do Nascimento, em 2006 -, uma pessoa indígena – Ailton Krenak, em 2021 – e cinco para mulheres brancas – Carolina Bori e Lygia Fagundes Telles em 2000, Michelle Bachelet em 2006, Enilde Faulsch em 2017 e Marilena Chauí em 2018.

Após a aprovação pelo Conselho Universitário para o título concedido a Sueli Carneiro, haverá o cerimonial de entrega oficial, que ainda será programado.

“É um pequeno e tímido passo em direção ao reconhecimento de que os sujeitos da história não são apenas homens e brancos. É, ao mesmo tempo um gesto de honraria para Sueli Carneiro, mas, sobretudo, um gesto de agradecimento da própria universidade que deve a Sueli ter aprendido um desses caminhos de ser mais plural. Por isso, esse título é, embora direcionado para Sueli, um presente que ganha a própria UnB”, finaliza Wanderson.

Leia também: ‘Com Bolsonaro, os negros estão marginalizados e sem direitos’, critica Sueli Carneiro

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