No último sábado (25), a Nigéria vivenciou as suas eleições mais acirradas desde o ano de 1999, após o período do regime militar. De forma inédita, três candidatos à presidência chegaram ao protagonismo nas campanhas eleitorais. Diante de uma apuração de votos considerada lenta, além de acusações de fraude e uma possível instabilidade no país por conta de uma eleição comprometida, Bola Tinubu foi declarado o novo presidente do país entre o final da última terça-feira (28) e a madrugada desta quarta (01).
O candidato eleito é representante do partido Congresso de Todos os Progressistas (APC, sigla em inglês), um dos maiores da Nigéria, além de partido do atual presidente Muhammadu Buhari. Tinubu tem 70 anos e é de uma família muçulmana do grupo étnico yorubá, do sudoeste da Nigéria.
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“Tinubu é um bilionário e uma pessoa estrategista. Virou um auditor, trabalhou muitos anos em petroleira e morou nos Estados Unidos. Voltou para a Nigéria durante a época da ditadura. Ele lutou contra os ditadores, pela democracia da Nigéria e foi também governador em Lagos”. É o que conta o nigeriano Adeyinka Olaiya, jornalista da Ancestral News, que nasceu em Lagos e hoje vive no Brasil.
O presidente eleito tem muita influência política, estando envolvido na criação do APC e tendo ajudando aliados a conquistarem espaços públicos, como o atual presidente Muhammadu Buhari. Segundo o jornalista Adeyinka, enquanto esteve à frente do estado de Lagos, Tinubu foi importante para o crescimento da região.
“Até hoje foi o melhor governador do estado de Lagos. Ele fez a cidade de Lagos mais rica na África, só que, além disso, também há acusações de corrupção e de enriquecimento pessoal contra ele. Embora ninguém consiga provar, as pessoas não acreditam muito que ele seja uma pessoa limpa”, comenta.
De acordo com a Comissão Nacional Eleitoral Independente nigeriana (INEC), Tinubu recebeu 37% dos votos do país, cerca de 8,8 milhões. O principal candidato da oposição, Atiku Abukabar, do Partido Democrático do Povo (PDP), obteve 29%, com cerca de 7 milhões de votos. O terceiro colocado, Peter Obi, do Partido Trabalhista, ficou com 25%, cerca de 6.1 milhões de votos.
No país de mais de 200 milhões de habitantes, estavam aptas a votar 93,5 milhões de pessoas. No estado de Lagos, região que já foi governada por Tinubu e a mais populosa da Nigéria, o vencedor foi Peter Obi, de 61 anos, candidato que se mostrou uma surpresa durante o processo eleitoral do país. Ao todo, 18 candidatos estiveram na disputa.
A surpresa da terceira via
“Pela primeira vez em mais de duas décadas temos uma terceira força política, o Partido Trabalhista, ameaçando o protagonismo dos dois maiores partidos do país: o Congresso de Todos os Progressistas (APC) e o Partido Democrático Popular (PDP)”, explica Alexandre dos Santos, jornalista e professor de África no Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Peter Obi | Crédito: The Guardian Nigeria
De acordo com Alexandre, para entender esse atual xadrez político no país, é importante olhar o contexto social político da Nigéria nos últimos quatro anos. “O presidente Buhari se tornou extremamente impopular, principalmente nas regiões sul do país. Ele não foi capaz de combater os insurgentes fundamentalistas no norte do país (promessa de campanha dele) e as políticas econômicas vêm se mostrando ineficazes para debelar a inflação”, explica.
Dados do Banco Mundial indicam que quatro a cada 10 nigerianos vivem abaixo da linha de pobreza. Além disso, informações do Escritório Nacional de Estatísticas da Nigéria (NBS) registram que 33,3% da população do país está desempregada. A taxa de desemprego entre jovens chega a 53,4%, sendo mais expressivo na faixa etária de 15 a 24 anos, segundo informações da Folha de São Paulo e do NBS.
A Nigéria é o país mais populoso da África e o sexto do mundo, com projeções de que seja o terceiro mais populoso até 2050. Atualmente, a juventude de até 24 anos representa a maior parte da população do país, mais de 140 milhões de pessoas, segundo dados publicados pela Folha.
“A sensação de ineficácia do governo e de aumento da corrupção vêm alimentando manifestações populares, o que fez o presidente Buhari suspender as mídias sociais durante um período (mais especificamente o Twitter). Ele também foi o responsável por ordenar que as forças de segurança usassem da violência para debandar as manifestações contra a violência e a corrupção policiais no país”, conta o professor de África da PUC-Rio.
Segundo Alexandre, muitos desses manifestantes eram jovens, que também representam a maioria dos eleitores. As pessoas com idades entre os 18 e os 35 anos representam 40% dos eleitores registados no país.
Jovens representam 40% dos eleitores do país | Crédito: Foto de Nnaemeka Ugochukwu/ Unsplash
“Foi para essa população que o candidato do Partido Trabalhista, Peter Obi, focou toda a campanha dele. Por causa do apoio da juventude – que comprou as bandeiras de luta contra a corrupção, contra o jihadismo, de criação de empregos, de apoio aos empreendedores digitais, da implantação de políticas públicas de redução da pobreza e de outros ganhos sociais – o Partido Trabalhista, que nas últimas eleições só atingiu 1% dos votos, hoje se tornou a terceira força política no país”, comenta Alexandre.
O jornalista nigeriano Adeyinka Olaiya também reforça que os jovens veem Obi como um futuro melhor para o país. “Ele é uma pessoa que não tem antecedentes, não tem como falar dele em questão de corrupção. É um banqueiro e foi governador de um estado na Nigéria, onde saiu sem ser processado e investigado”, comenta.
“O governo que vai sair agora, ele foi uma aposta grande do país todo, mas ficou marcado com injustiça, matança e corrupção. O povo quer mudar, mas não foi desta vez”, acrescenta Olaiya.
Religião e etnia
De acordo com Olaiya, alguns fatores desfavoreceram o candidato Obi na corrida eleitoral. Entre os motivos, questões étnicas e religiosas interferem na escolha da população por um presidente.
“Tinubu é muçulmano e montou uma chapa com outro muçulmano. É da etnia yorubá, mas não faz uma campanha apenas para o grupo étnico dele. Ele carrega junto o país todo. É uma pessoa nacionalista, que fez uma estratégia bem planejada e se preparou pra esse dia”, explica o jornalista.
Já Peter Obi compõe uma chapa que é cristã e também muçulmana. Adeyinka Olaiya explica que o candidato Obi é igbo, um grupo étnico minoritário no país e que nunca chegou a governar a Nigéria. Segundo ele, depois da Guerra da Biafra, que durou de 1967 a 1970, em que a província de maioria igbo lutou por uma separação do restante do país, a população ainda não confia muito em colocar no cargo presidencial pessoas desse grupo étnico.
“Na Nigéria, às vezes, religião e etnia contam bastante. Se você é yorubá, você não quer votar em uma pessoa de outra tribo. Cristãos da Nigéria votam em Obi, muçulmanos votam em Tinubu. Obi é bom, mas não carrega junto pessoas que não são da tribo dele”, comenta o jornalista.
Acusações de fraude e pedidos de novas eleições
Após sábado, quando ocorreram as votações que não são obrigatórias, o país tem enfrentado acusações de fraude nas eleições e denúncias de um pleito comprometido por um processo de apuração lento. Além disso, irregularidades encontradas foram atribuídas a falhas encontradas na tecnologia empregada nesse processo. Desde o início da semana, já há um pedido dos partidos de oposição pela anulação do último pleito e a abertura de uma nova votação na Nigéria.
Esta foi a primeira vez que a biometria digital foi empregada na votação do país, como uma proposta para diminuir as fraudes. Apesar disso, segundo o jornalista nigeriano Adeyinka Olaiya, mesmo com a inserção da digitalização, que pode dar uma freada em alguns casos de fraude, a eleição da Nigéria nunca é limpa.
“Desde que eu nasci, em 1969, nunca vi a Nigéria conduzir uma eleição sem marcas de fraudes. Há várias formas de aplicar fraude no país, como impedir as pessoas de chegarem até o seu local de votação. Mandar capangas para bloquear o caminho para que as pessoas não consigam chegar. Amedrontar. Muitos não saem para votar por medo de violência. Também contratam pessoas que não são nigerianos para entrar no país e votar como se fossem nigerianos. Além disso, dão dinheiro para as pessoas votarem em um certo candidato”, conta Olaiya, que também destaca que há inclusão de policiais corruptos nesse cenário.
Muhammadu Buhari, atual presidente da Nigéria | Crédito: Reprodução/ Sky News
Em uma notícia publicada pelo Africanews, é informado que houve caos em uma cabine de votação na capital comercial da Nigéria, Lagos, na tarde do último sábado (25). Tiros foram disparados para o ar, enquanto homens armados saltavam de um micro-ônibus e pegavam as urnas. O incidente deixou cédulas de votação espalhadas pela estrada.
Em coluna no The New York Times, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie destaca como muitos estavam votando pela primeira vez, inspirados pela esperança de um futuro que acreditavam que o candidato Peter Obi poderia oferecer. Entretanto a desilusão foi crescente à medida que os resultados eram contados.
“Uma lama de tensão está no ar. Uma fúria latente. Alguns eleitores dizem que os números oficiais não correspondem aos números de suas unidades de votação, que os resultados contam uma história diferente do que testemunharam no sábado. Eles estão convencidos da cumplicidade daqueles que deveriam ser os zeladores do processo democrático”, opina a escritora em sua coluna.
Nesse último processo eleitoral, houve um esforço de monitoramento conjunto. Ao menos 229 grupos com 147 mil observadores locais e internacionais prometeram acompanhar a votação ao lado de mais de 8.800 jornalistas credenciados pelo instituto eleitoral, segundo dados de publicação da Folha de São Paulo. Mais de 400 mil seguranças foram mobilizados.
“A gente sabe que ainda vão mandar para justiça esse caso, porque não aceitam o resultado das eleições. É normal na Nigéria, ninguém aceita. Se bobear, pode virar uma guerra, dar lugar para grupos separatistas, mas esse governo atual está fazendo o possível para conter essas violências e conseguiu conter muita coisa. Se o governo não consegue conter um país desse, pode gerar um grande problema. Com uma guerra, para onde vão milhões de pessoas, a maior população negra do mundo? É por isso que o mundo todo está aí vigiando”, finaliza o jornalista Adeyinka Olaiya.
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