Há 72 anos, no dia 18 de maio de 1950, o Conselho Nacional de Mulheres Negras foi criado no Rio de Janeiro. Considerado um marco no feminismo negro brasileiro, uma das principais pautas do movimento era a defesa das condições dignas de trabalho para domésticos e domésticas, ofício exercido – principalmente – por mulheres negras. Maria de Lurdes Vale Nascimento foi a primeira líder do conselho.
No Brasil, o feminismo negro surgiu no final da década de 1970, com o acesso dos movimentos negros, sindicais e estudantis na política nacional. Segundo a História, na época, os movimentos negros estavam pautados pelo estudo do fenômeno do racismo e também da interseccionalidade de gênero e raça, em busca de igualdade entre homens e mulheres.
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A oportunidade para que as mulheres negras, então, tivessem espaço nos processos democráticos nacionais ainda era difícil, mesmo com a criação do Conselho Nacional das Mulheres Negras. Sua atuação social foi marcada por restrições, pois as as questões das mulheres negras, até o momento, não eram tratadas nos movimentos negros e feministas.
“Numa época em que o feminismo era predominantemente branco, o Conselho Nacional das Mulheres Negras não apenas estimulou, mas deixou como legado a fortalecimento do movimento feminista negro, que atualmente, adquiriu grande protagonismo”. É o que aponta a deputada federal Benedita da Silva (PT), que lutou fortemente pela garantia de direitos da classe de trabalhadores domésticos.
Erika Hilton, vereadora eleita em São Paulo pelo PSOL, reforça que conselhos nacionais são mecanismos importantes para a atuação da sociedade civil e, nesse contexto, “o Conselho Nacional das Mulheres Negras possibilita avanços primordiais nessa sociedade racista e machista”.
Laudelina de Campos Melo
Para enfim ganhar espaço na política e no acesso aos direitos das trabalhadoras domésticas, o Conselho Nacional de Mulheres Negras contou com o apoio de uma forte aliada: a mineira Laudelina de Campos Melo, que teve uma trajetória dedicada à valorização do emprego doméstico, ao feminismo negro e ao ativismo pela igualdade racial.
Laudelina nasceu em Poços de Caldas (MG), em 12 de outubro de 1904, menos de 20 anos depois da abolição da escravatura no país, em 1888. Começou a trabalhar aos sete anos de idade, o que resultou no abandono dos estudos para equilibrar o trabalho com a responsabilidade de cuidar dos irmãos enquanto sua mãe também trabalhava. Quando completou 16 anos, Laudelina iniciou sua atuação em organizações sociais do movimento negro.
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De acordo com informações do sociólogo Joaze Bernardino-Costa, naquela época os serviços domésticos eram apenas mencionados nas leis sanitárias e policiais, somente com o objetivo de proteger a sociedade contra as trabalhadoras domésticas, mulheres negras percebidas “como ameaças em potencial às famílias empregadoras”.
“Se ainda hoje a associação entre escravidão, trabalho doméstico e negro ainda está presente no imaginário social, sem dúvida nenhuma nas primeiras décadas do século 20 isso ainda era muito presente”, escreveu o sociólogo em sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília (UnB).
Logo, a atuação de Laudelina junto ao Conselho – bem como de diversas outras mulheres aliadas à luta — foi essencial para a categoria, e, mesmo de maneira indireta, para as mulheres negras, segundo Joaze.
Já morando em São Paulo, Laudelina se inseriu na política nacional em meados da década de 1930, quando se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e militou pela Frente Negra Brasileira (FNB), entidade do movimento negro que também seria reconhecida como partido.
Ao mesmo tempo, fundou no início daquela década, a primeira associação de trabalhadores domésticos do Brasil, em Santos, litoral sul de São Paulo. Naquela época surgiram também outras entidades da categoria em território paulista.
Em uma entrevista feita para a dissertação de mestrado da educadora Elisabete Pinto, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laudelina pontuou que “a situação da empregada doméstica era muito ruim. A maioria daquelas antigas trabalharam 23 anos e morriam na rua pedindo esmola. Lá em Santos, a gente andou cuidando, tratou delas até a morte. Era um resíduo da escravidão, porque era tudo descendente de escravo”.
A heroína negra ainda ressaltou que, mesmo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que unificou em 1943 as leis trabalhistas existentes até então, não traria benefícios para os trabalhadores domésticos. Na época de Laudelina, por exemplo, este grupo não tinha direito à sindicalização e nem proteção pela legislação vigente. A categoria só garantiria direitos de carteira assinada e Previdência Social em 1972, com a Lei 5859, mas ainda com restrições.
Laudelina Melo atuou como trabalhadora doméstica até meados dos anos 1950, quando morava em Campinas (SP) e passou a ganhar dinheiro por meio de uma pensão que montou e de salgados que vendia em campos de futebol.
A associação fundada por ela havia voltado a funcionar com o fim da ditadura varguista, em 1946, mas a trajetória de perseguições não acabou. Com o golpe militar de 1964, que instituiu novamente uma ditadura no país, a associação dos trabalhadores domésticos precisou se abrigar no partido UDN (União Democrática Nacional), cuja principal liderança era Carlos Lacerda, para não fechar as portas.
Doente, Laudelina acabou se afastando de sua entidade no fim dos anos 1960, e só voltaria a ela já no fim da ditadura, a pedido de amigas e companheiras. Em 1988, com a promulgação da nova Constituição, a associação finalmente se tornaria um sindicato, o que auxiliou a categoria na conquista de direitos. Laudelina morreu em 1991, aos 86 anos de idade, em Campinas.
A deputada Benedita da Silva salienta que a história de Laudelina é um marco para o feminismo. “Nesse sentido, aproveito para destacar a importância do Projeto de Lei 1795 de 2021, que garante a presença de Laudelina de Campos Melo no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria”, comenta a parlamentar.
Pequenos avanços
Como cita Laudelina, a abolição não trouxe direitos aos trabalhadores domésticos, pelo contrário, a classe continuou sem qualquer regulamentação de suas atividades por anos a fio. A vereadora Erika Hilton, oriunda de uma família em que as tias atuaram por muitos anos como trabalhadoras domésticas, relembra que no Brasil, há 6,2 milhões de trabalhadoras domésticas, segunda maior população no mundo.
“Historicamente, o trabalho doméstico ainda é bastante desvalorizado. Ainda temos a necessidade de reconhecermos os direitos dessas mulheres, e, nesse sentido, é importante revenciarmos mulheres como Laudelina Campos Melo, que fizeram história na luta por mais direitos. Os avanços que temos hoje só foram possíveis porque lá atrás ela se empenhou nessa batalha, fundou um sindicato e militou arduamente para garantir esses direitos que hoje vemos conquistados”, destaca a parlamentar.
Em 1972,os domésticos também foram contemplados com o direito ao vale transporte (Decreto nº 95.247/87) e a Lei nº 5.859/72 ficou sendo a lei específica que definia a relação do empregado doméstico até a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, ainda em vigor.
Com a Constituição de 1988, as empregadas domésticas alcançaram mais alguns direitos, previstos em nove dos trinta e quatro incisos do art. 7º: salário mínimo, irredutibilidade de salário, 13º salário com base na remuneração integral, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas com um terço a mais, licença maternidade, licença paternidade, aviso prévio, aposentadoria por idade, tempo de contribuição e invalidez.
Já em 2001, veio a Lei nº 10.208, que possibilitou aos trabalhadores domésticos o acesso ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o seguro-desemprego. Como a medida estava sujeita à liberalidade do empregador, a previsão em praticamente nada foi efetivada ou beneficiou os trabalhadores da classe.
O primeiro real grande avanço veio com a Lei nº 11.324/2006, que agregou à categoria direito a descanso semanal remunerado aos domingos e feriados, pagamento em dobro do trabalho em feriados civis e religiosos, trinta dias corridos de férias, garantia de emprego à gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto e vedou descontos no salário do empregado por fornecimento de alimentação, higiene, vestuário e moradia.
PEC das Domésticas
Somente em 2013, no governo Dilma Roussef (PT), é que se conquistou um grande avanço, com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 66, conhecida como “PEC das domésticas”, que alterou o art. 7º da Constituição Federal, visando igualar os direitos dos trabalhadores domésticos, urbanos e rurais.
Assim, foi garantida a proteção contra demissão arbitrária ou sem justa causa, seguro-desemprego, FGTS, salário nunca inferior ao mínimo para os que recebem remuneração variável, adicional noturno, proteção do salário, salário-família, jornada de trabalho de oito horas diárias e 44 horas semanais, hora extra, redução dos riscos inerentes ao trabalho e auxílio-creche.
Além disso, a PEC garante reconhecimento de Acordos e Convenções Coletivos de Trabalho, seguro contra acidentes de trabalho, proibição de discriminação, proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos, e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
Parte desta discussão só teve fim no mês de junho de 2015, com a nova lei dos domésticos. “Com a Emenda Constitucional nº 72/2013 isso deixou de se sustentar, já que ela assegurou direitos reconhecidos aos trabalhadores de um modo geral, que encontram normatização infraconstitucional na CLT”, diz Dayane Rosa, em artigo publicado no Jusbrasil.
No dia 02 de junho de 2015 foi publicada a Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, que entrou em vigor na data da sua publicação, com aplicação a todos os contratos de trabalho doméstico e não se aplicando às diaristas. A legislação engloba os direitos garantidos aos domésticos antes e depois da Emenda Constitucional 72, traz novidades legislativas e revoga a antiga Lei dos Domésticos (Lei 5.859/72).
A lei ainda veda o trabalho a menores de 18 anos e define o empregado doméstico como aquele “que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”.
Desmonte
De acordo com a deputada federal Benedita da Silva, a conquista histórica da PEC das Domésticas, aprovada pelo Congresso em 2013 e sancionada pela presidenta Dilma em 2015, foi seriamente atingida pelo impeachment em 2016, quando, segundo a parlamentar, iniciou-se o desmonte aos direitos trabalhistas e sindicais, configurados nas “famigeradas Reforma Trabalhista e da Previdência”.
“Diante da PEC das Domésticas, o mercado de trabalho reagiu, reduzindo o contingente com carteira assinada e aumentando significativamente o número de trabalhadoras diaristas”, avalia a deputada.
A parlamentar ainda ressalta que a aprovação de uma lei não torna automaticamente todos os seus beneficiários conscientes dela. “Por isso temos de elevar a consciência dos trabalhadores domésticos de seus direitos, até mesmo para defender a sua garantia contra a ofensiva de um governo que é inimigo da classe trabalhadora”, pontua.
Erika Hilton, por sua vez, avalia que a pandemia acentuou a vulnerabilidade dessas profissionais. Durante 2020, primeiro ano da crise sanitária, 1,3 milhão de vagas sumiram, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já no trimestre encerrado em fevereiro de 2019, haviam 6,2 milhões de trabalhadores domésticos. No mesmo período de 2021, esse número caiu para 4,9 milhões, sendo que destes, apenas 26,7% com carteira assinada, o que fez com que muitas trabalhadoras se vissem obrigadas a voltar para a informalidade, segundo a vereadora.
“Isso mostra que temos uma classe que foi bastante atingida pela pandemia e que não teve ações efetivas do governo para protegê-las. Pelo contrário, vivemos um governo genocida e que pratica retrocessos nos pequenos avanços que tivemos. Há tentativas frequentes de diminuir o direito de todos os trabalhadores. Isso não é diferente com as trabalhadoras domésticas, sem contar a política da morte executada durante a pandemia, que levou a morte de milhares de pessoas, enquanto esperávamos a vacina”, pondera.
Legado
“Um dos mais importantes legados do Conselho Nacional de Mulheres Negras de 1950 foi o de ter estimulado o desenvolvimento do feminismo negro, que hoje transborda vitalidade nas lutas da juventude negra, sobretudo, daquelas jovens que tiveram a oportunidade de cursar o ensino superior pela política de cotas”, pondera Benedita da Silva.
Ela ainda salienta que a nova geração do feminismo negro, com curso superior, consegue empregos mais qualificados, tem elevada consciência de seus direitos e dos espaços conquistados, “e sabe perfeitamente qual o é o seu papel na luta por uma sociedade com igualdade racial e de gênero”.
A advogada Patrícia Oliveira, em uma publicação do coletivo Abayomi Juristas Negras, pontua que a luta por direitos e garantias fundamentais das mulheres negras já dura décadas, e “deverá perdurar para que de fato consigamos combater as desigualdades sociais, raciais e de gênero existentes, e assim conquistarmos o direito à igualdade, e respeito a pluralidade de pessoas no nosso país”, finaliza.
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