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Negro, jovem e sem antecedentes: o perfil dos presos pela Lei de Drogas em SP

Segundo pesquisa, pessoas negras correspondem a 54% dos presos por crimes relacionados à Lei de Drogas no estado de São Paulo
Imagem mostra o corpo de um homem negro, que veste uma camisa branca e está preso, atrás das grades.

Foto: Reprodução

23 de novembro de 2023

A pesquisa “Liberdade Negra Sob Suspeita:  o pacto da guerra às drogas em São Paulo” revelou que 54% das pessoas presas por crimes relacionados à Lei de Drogas no Estado se autodeclaram negras (a soma de pretas e pardas). A maior parte dos presos é jovem (58% com idade entre 18 e 21 anos), e não tem antecedentes criminais (51% são réus primários).

A pesquisa foi produzida pela Iniciativa Negra, em parceria com Rede Reforma, Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e apoio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Quando se compara o grau de escolaridade dos acusados, a vantagem é dos brancos: 62% deles cursaram todo o ensino médio, enquanto só 39% dos negros conseguiram completar essa etapa do ensino. A maioria das pessoas negras acusadas pela Lei de Drogas no estado não chegou a completar o ensino fundamental, o equivalente a 71% dos casos.

Ainda de acordo com os achados da pesquisa, 54% dos presos por algum tipo de crime relacionado a Lei de Drogas estavam desempregados no momento da prisão; 40% alegou ter uma ocupação profissional e, destes, 65% realizavam serviços gerais ou atuavam como técnicos de manutenção.

Sobre a renda das pessoas encarceradas que declararam ter alguma ocupação remunerada, o estudo revela que 28% possuíam rendimentos acima de R$ 1.500, contra um total de 66% de pessoas que não conseguiam chegar a este rendimento por mês. Cerca de 7% dos processos não continham informações sobre a renda.

Segregação, proibicionismo e encarceramento

Os dados colhidos pela pesquisa revelam ainda que um quinto (21%) das pessoas presas pela Lei de Drogas em São Paulo morava na mesma localidade onde a prisão foi realizada.

As análises deste tópico indicam a possibilidade de subnotificação, pois foram identificadas ocorrências em que a abordagem policial se deu em via pública, em local diferente do território do acusado e este foi convencido a levar as autoridades policiais até seu domicílio e autorizar sua entrada.

Os casos tipificados como “via pública” ou com um CEP não localizado pelo sistema foram classificados pela pesquisa como “não há dados”. Os territórios e o percentual de pessoas presas foram divididos em interior de São Paulo (53%), região metropolitana (18%) e capital (16%).

As pessoas acusadas pela Lei de Drogas que relatam fazer uso de álcool e outras drogas representam 72% do total de presos no estado, contra 18% dos que não fazem uso dessas substâncias, e 10% que não informaram no processo. Da parcela de pessoas que afirmam fazer uso de drogas, 65% são usuários de maconha, 32% de cocaína, 27% de álcool e 18% de crack. O percentual acima de 100% da amostragem corresponde às respostas envolvendo mais de uma substância declarada.

Quanto à quantidade de drogas apreendidas durante as prisões, o relatório que analisa os processos entre 2020 e 2022 indica que a maior parte do material apreendido por agentes de segurança é a maconha/skunk, no montante de 18.236 quilos.

As polícias e o poder judiciário

Foi percebido um padrão de comportamento entre os agentes de segurança e operadores do Direito, partes nas condenações analisadas pela pesquisa, que indica a existência de um pacto invisível entre as partes para legitimar prisões.

O cruzamento das informações disponibilizadas nos processos analisados revela que justificativas consideradas frágeis dadas pelas autoridades policiais durante a abertura do inquérito policial são reforçadas e corroboradas por juízes no momento da análise dos casos e execução da pena.

Como dado probatório desta percepção, o relatório aponta que em apenas 15 ocorrências foi confirmada a presença de testemunhas civis, enquanto em 99 ocorrências, ou seja, em 87% dos casos, a única testemunha do processo criminal é a própria autoridade responsável pela prisão.

Ao analisar o momento exato da prisão por tráfico de drogas, foi observado que em todos os 114 processos escrutinados é relatada a presença de mais de uma autoridade policial durante a abordagem, e os depoimentos dados por essas autoridades apresentam similaridades entre si: o indivíduo foi preso em atitude considerada suspeita por essas autoridades; o acusado já é conhecido dos meios policiais; o local onde ocorreu a prisão é reconhecido por ser um ponto para a venda de drogas; e por fim, a prisão ocorreu motivada por uma denúncia anônima.

Processos com citação sobre uma suposta atitude suspeita dos acusados apontam-na de forma abstrata e genérica, comportamento que chamou a atenção da autoridade policial, motivando a abordagem.

Muitas prisões são originárias de patrulhamento, sendo reconhecidas pelos próprios policiais em seus depoimentos como abordagens durante patrulhamento preventivo-ostensivo de rotina naquele território.

Sobre este aspecto da análise constatou-se que 79% das prisões ocorreram em via pública, 17% em domicílio, 3% em estabelecimento comercial e 1% em unidade prisional. Das prisões realizadas em domicílio, ou que se iniciaram com a abordagem policial em via pública e depois passaram para a residência da pessoa acusada, a maioria (70%) se deu por meio da ação de patrulhamento preventivo-ostensivo de rotina.

Sobre as diferenças de tratamento e os procedimentos de abordagem entre pessoas brancas e negras, a pesquisa indica que para a maior parte (63%) dos presos declarados brancos as prisões ocorreram durante operação policial, enquanto a população negra, em sua maioria, foi presa durante patrulhamento (56%) ou em investigações de denúncia anônima, que representam 52% dos casos.

É grande a diferença entre operação policial e patrulhamento. Para iniciar uma operação policial deve haver uma investigação prévia, com o levantamento de informações sobre o acusado, possível acionamento da Polícia Civil, testemunhas, indícios e provas. Um patrulhamento pode resultar em prisões, embasadas sobremaneira em definições não objetivas sobre o que se considera atitude suspeita e em territórios marcados como pontos de comércio de drogas. Pelos dados da pesquisa, resultam disso muitas prisões arbitrárias de pessoas negras.

Aqui, percebe-se a relação entre raça, racismo e território. A análise sobre essa relação aponta que os territórios periféricos, locais onde há maior concentração de pessoas negras, são alvos de vigilância e de medidas de combate às drogas com operações ofensivas em muitos dos casos.

Ao examinar as penas determinadas a pessoas presas por crimes relacionados à Lei de Drogas no estado de São Paulo, a pesquisa aponta que em 100% dos casos em que a pessoa foi condenada à pena de 1 ano, 11 meses e 10 dias, como resultado de uma ação policial realizada a partir de denúncia anônima, o cumprimento de pena aplicado foi o regime fechado. Nos casos originários de denúncia anônima, em que as pessoas foram condenadas a 4 anos 10 meses e 10 dias de prisão, o mesmo padrão foi observado.

Foi percebida uma queda de 100% para 71% no número de condenações em regime fechado nos casos em que a pena aplicada é de 1 ano e 8 meses para pessoas enquadradas no crime de tráfico privilegiado. Para os demais regimes, a média é de 13% de condenações para o regime semiaberto e de 16% para o regime aberto.

Dos 114 processos estudados no relatório, 67% têm como responsabilidade a Polícia Militar, seguidos de 18% com a atuação da Polícia Civil e 15% da Guarda Municipal Metropolitana (GCM).

Violações de direitos e violências praticadas pelas forças policiais

Os processos apresentam ainda relatos de violência e agressões cometidas pelas autoridades policiais no momento das abordagens, sendo a grande maioria (80%) cometida por agentes da Polícia Militar do estado, seguida por Polícia Civil (13%) e Guarda Municipal Metropolitana (7%).

Ao aplicar um olhar racializado sobre essas informações, os pesquisadores perceberam que a maioria das pessoas que alegaram ter sofrido violência policial durante as abordagens são pessoas negras, um percentual de 66% dos casos, contra 33% de pessoas brancas.

No rol de violências praticadas durante abordagens policiais, ainda estão as prisões sem representação da defesa dos acusados na delegacia, o que corresponde a 84% dos processos, sendo 55% de pessoas negras; em 33% dos casos, as pessoas agredidas durante ações desse tipo não passaram pelo Instituto Médico Legal (IML) para exame de corpo de delito e também não tiveram nenhum encaminhamento sobre a denúncia.

A pesquisa conclui que a maioria dos juízes acaba seguindo os mesmos tipos penais imputados na delegacia no momento inicial do indiciamento, e que a partir da narrativa feita pelos policiais presentes na abordagem, argumentos baseados na quantidade da droga, forma de acondicionamento, o tipo de variedade encontrada e seu “potencial dano”, essas autoridades desconsideram o depoimento ou a defesa da pessoa acusada.

É observado um padrão de severidade adotado pelo judiciário nas penas relacionadas à Lei de Drogas no estado, expresso pela maioria de condenações por tráfico privilegiado, que não é considerado crime hediondo pelo Código Penal Brasileiro, mas que aparece em 33% dos processos equiparadas à crimes de maior gravidade para justificar as penas em regime fechado e uma multa cumulada de um a 200 dias-multas, o que pode chegar a R$7.272,00.

“As medidas tomadas pelo Estado hoje para o aprisionamento da juventude, em sua maioria negra, têm raízes na história colonialista e escravocrata de nosso país. Essas ações grotescas não foram reparadas e nem sequer discutidas com transparência e o devido compromisso ético. Quem sabe os números e análises apresentados neste material possam exemplificar o que temos falado há tanto tempo: que existe um pacto em vigor para que sigamos sendo criminalizados e punidos por ser quem somos. Precisamos parar agora com esta política bélica de guerra contra o povo negro e indígena”, afirma o historiador Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra.

Metolodogia de pesquisa

Para chegar aos resultados desta publicação, foram levantados 170 processos criminais disponíveis no banco de dados da Secretaria de Administração Penitenciária do estado de São Paulo, com atuação do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc), da Defensoria Pública do estado. Dos casos levantados foram selecionados 114 processos criminais, excluindo processos físicos e aqueles que estão em segredo de justiça.

Um pré-teste com 30 processos foi desenvolvido nesta etapa e, com os devidos ajustes nas ferramentas de análise, a amostragem geral pôde ser processada. As análises se desdobraram em etapas quantitativas e qualitativas, que possibilitaram o estudo de todo o fluxo processual em diversas instâncias judiciárias, passando por inquérito policial, processo de instrução ou julgamento e por fim, a execução da pena que nestes casos resultou em prisão provisória ou definitiva dos acusados.

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