Entrevista: Vinicius Martins / Entrevistado: Ricardo Alexino
Como a mídia brasileira influencia a identidade negra no país? Para responder a essa e outras perguntas, o Alma Preta bateu um papo com jornalista e professor associado/livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Alexino.
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{payplans plan_id=15 SHOW}O docente também coordena o Programa USP-Diversidade e o Núcleo de Apoio à Pesquisa dos Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro da USP (Neinb-USP). Em entrevista para o Alma Preta, Alexino reflete sobre o comportamento das mídias tradicionais do Brasil em relação ao racismo e às demandas da população negra. Para o pesquisador, os afro-brasileiros ainda são frequentemente desumanizados em um contexto de má formação dos profissionais de comunicação e de “apartheid profissional”.
No livro “Retrato em branco e negro” de Lilia Schwarcz, são analisados e elencados alguns estereótipos e visões sociais do negro produzidas e reproduzidas em três jornais paulistas do fim do século XIX. Entre elas, a do negro violento ou forte fisicamente, do negro inferiorizado cientificamente, do não civilizado ou desordeiro, do negro viciado, entre outras. Trazendo esses aspectos para a atualidade e considerando que os grandes meios de imprensa ainda pertencem às classes dominantes, você acredita que houve avanços quanto a imagem do negro no jornalismo? De que forma você enxerga o cenário atual?
Ricardo Alexino: Penso que houve mudanças tanto do ponto de vista do tempo e também do contexto da cidadania na República e nos direitos humanos. Porém, é preciso verificar como a marca de mais de 300 anos de escravidão fica tanto no aspecto econômico-social como também no inconsciente coletivo.
O princípio da escravidão gera a ideia do escravo como objeto e como mercadoria. Essa ideia ainda é persistente. Talvez um dos primeiros passos é trazer a humanidade para esses indivíduos que foram escravizados. A fala da educadora e makota Valdina Pinto de Oliveira é bastante interessante nesse sentido. Ela diz: “Não descendo de escravos, mas de seres humanos que foram escravizados”. Ao fazer essa referência, Valdina está chamando a atenção para a necessidade de o negro ser visto como sujeito.
No entanto, o negro ainda é visto como objeto, desumanizado. Por isso, é tão fácil compará-lo aos animais, principalmente aos primatas. Os avanços aconteceram, sem dúvida, mas os estereótipos são persistentes e a partir deles o negro é frequentemente abduzido a uma condição simbólica de escravo, de objeto. Mas há também contrarreações advindas dos movimentos sociais e de grupos comprometidos com os direitos humanos.
Ainda dentro desse contexto, como você avalia o impacto desses meios de imprensa tradicionais na população negra? Ou seja, de que forma a identidade, auto-estima e representações sociais são moldadas?
RA: No Jornalismo, considero que podemos pontuar uma linha divisória na abordagem do negro enquanto informação: antes de 1988 e depois de 1988.
Em minha pesquisa de mestrado, defendida em 1993, “A representação do negro nos jornais no centenário da abolição da escravatura”, percebo que depois de 1988 o negro migra, enquanto informação, das editorias de cultura, em que ele é destacado somente no samba; das páginas de esportes, em que a sua identidade é o futebol e das páginas de polícia para outras editorias.
Os movimentos sociais e políticos negros foram importantes nesse processo. Cito aqui a atuação, em 1988, do então deputado federal Carlos Alberto Caó, que era do PDT do Rio de Janeiro. Ele consegue fazer aprovar o projeto constituinte para considerar que racismo fosse tido como crime inafiançável e imprescritível perante a lei. Foi um ato extremamente importante para que a imprensa brasileira passasse a noticiar o negro um pouco mais como sujeito. Apesar de nunca, desde a aprovação da lei, qualquer pessoa ter sido presa e julgada no país por crime de racismo. Uma lei que é substituída por crimes mais brandos como injúria racial.
De acordo com a FENAJ, apenas 22% dos jornalistas são pretos e pardos. Qual o reflexo do baixo número de profissionais afro-brasileiros para a produção jornalística brasileira?
RA: O perfil do trabalhador jornalista e a sua inserção no mercado de trabalho reflete o que acontece na sociedade brasileira como um todo. Quanto mais o trabalho é especializado, menos negro será visto nessas profissões.
Os motivos são muitos desde ainda o pouco acesso do negro ao ensino superior e também o apartheid profissional que esse segmento étnico sofre. Muitas vezes, mesmo tendo o ensino superior e as qualificações necessárias é barrado a ter acesso a cargos e funções devido ao seu grupo étnico.
É lógico que esses impedimentos são desculpados por outros motivos impossibilitando, muitas vezes, que o indivíduo possa se proteger ou denunciar. É a hipocrisia nacional de negação do racismo e de outros elementos discriminatórios.
O racismo brasileiro é muito eficiente porque tenta se esconder, mas está sempre à espreita; faz com que a vítima se sinta culpada; justifica o staus quo e sempre reforça o ideal de meritocracia; é cruel e covarde.
A imprensa convencional alega ser imparcial a todo momento, entretanto, em uma análise mais aprofundada é possível perceber recortes diferentes de acordo com o assunto discutido. Em “Os grupos minorizados transformados em informação: representações, ideologias e construções da imagem de afro-brasileiros no jornalismo”, de sua autoria, você expõe a diferenciação de conflitos étnicos de acordo com o continente. Na Europa, há um aprofundamento, enquanto em outros continentes a abordagem segue estereótipos e adjetivações. Como você mesmo cita, na África há a retratação dos confrontos de maneira “tribal”. Em outros pontos, há também diferenciação ao mostrar o racismo lá fora e o racismo aqui no Brasil. De que maneira você avalia o comportamento da mídia nesses casos? Em questões que discutem o racismo brasileiro, qual é o comportamento da imprensa?
RA: A imprensa nacional está uma vergonha. Às vezes penso que alguns jornalistas precisavam ter os seus diplomas cassados de tão grande é a irresponsabilidade com que noticiam qualquer coisa. Muitos jornalistas se tornaram porta-vozes dos grupos dominantes, detentores dos modos de produção.
Muitos jornalistas também se tornaram técnicos da informação. Não são intelectuais ou intérpretes dos fenômenos, mas apenas técnicos mal preparados. Muitos não conseguem ir além da pirâmide invertida (o que?; quem?; onde?; como? e por que?). São robôs que conseguem apenas preencher essas perguntas.
Se você tem profissionais tão limitados não espere muito que eles façam da informação algo dialético ou polissêmico. Ao contrário, atuaram no senso comum e na monossemia. Ao abordarem temas bastante complexos como diversidade e questões étnicas, eles não saberão como fazê-lo.
A culpa disso tudo está na formação. A maioria dos cursos sequer aborda a questão da diversidade e os novos jornalistas saem dos cursos mal sabendo escrever e não têm a experiência da interdisciplinaridade, dialogando com as diversas áreas do conhecimento.
Em relação à cobertura jornalística das questões internacionais, a ignorância e o senso comum dão vergonha. É comum muitos jornalistas noticiarem a África como um país e atribuírem a esse continente características tribais e primitivas.
Às vezes penso que se fosse por questão ideológica seria menos grave. Mas é ignorância mesmo e falta de esforço para melhorar a formação. Muitos jornalistas estão na zona de conforto e não querem sair dela. Além do mais, só querem noticiar aquilo que faz parte da sua realidade de classe média e os seus interesses.
O entretenimento e a publicidade também têm papel importante nessa discussão. Os programas humorísticos reproduzem estereótipos, se protegendo pela lógica de que em nome do humor tudo vale, as novelas priorizam atores brancos nos papéis principais, enquanto às negras e aos negros são delegados papéis menores. Como esses meios midiáticos interferem na vida da população tanto negra, quanto branca?
RA: O racismo é algo orgânico. A população brasileira conjunturalmente é racista, homofóbica, sexista e extremamente conservadora. Penso que os meios de comunicação ofertam para essa sociedade aquilo que ela quer ouvir. A comunicação é uma mercadoria e em relações mercadológicas se vende aquilo que o público quer. Portanto, se quer mudar a imprensa, mude a cara do Brasil.
O humor brasileiro é excludente e covarde, pois sapateia em cima dos grupos vulneráveis. Também tem uma característica de adolescente em ação de bulliyng. Os humoristas quando criticados dizem que estão sendo censurados e atacam o politicamente correto, muitas vezes afirmando que estão impedidos de fazer piadas sobre negros e gays. São uns insanos, desinformados.
As telenovelas estão reféns da opinião de grupos conservadores. Recentemente, a novela “Babilônia”, escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, com direção geral de Maria de Médicis, exibida na Rede Globo, fez muitas concessões. Alterou a cor do logotipo da novela e clareou o fundo para atender os interesses de grupos religiosos; comprometeu-se a não mais colocar cenas de homoafetividade e tem feito várias outras mudanças para atender grupos ultraconservadores.
O brasileiro organicamente tem se mostrado nefasto e dissimulado. No Brasil, conforme dados estatísticos, jovens negros estão sendo exterminados e muitos brasileiros acreditam que aqui todas as etnias vivem harmoniosamente. A cada dois dias um homossexual é morto por crime de ódio, conforme dados do Grupo Gay da Bahia, e muitos dizem que o Brasil tem liberdade sexual; as mulheres são sistematicamente mortas e violentadas e se diz da igualdade de gênero. Acho que somos um povo hipócrita.
Alexino, gostaria de saber se você enxerga saídas ao cenário midiático atual e como você vê os desafios da imprensa negra e alternativa em nosso tempo. Quais as possibilidades?
A imprensa brasileira precisa entender melhor o seu papel, aquilo que é a deontologia do Jornalismo. Ou seja, a imprensa brasileira precisa se tornar ética. Ela deve entender quais são os seus limites éticos. Deve entender que interferir na vida nacional para estimular golpes e favorecer grupos econômicos ou partidos conservadores que darão às empresas jornalísticas privilégios é imoral. É uma questão de princípio, que parece estar faltando à imprensa nacional, principalmente aos grupos midiáticos hegemônicos.
Por outro lado, a imprensa sindical também é inconsequente. Acusa sem prova, mostra-se leviana e usa termos chulos para reivindicar os seus interesses.
Já a mídia negra, voltada para população negra, tem se especializado apenas na denúncia do racismo. Fica sempre na defensiva. É lógico que é necessário denunciar o racismo, mas não ficar refém dele.
É necessário que a mídia negra crie uma identidade para elevar o segmento negro e propor novas ordens nacional e mundial. Um desses processos poderia mostrar à população negra o quanto ela é importante na construção científica, política, cultural do Brasil. É necessário mudar paradigmas e discursos.
A mídia negra muitas vezes é refém do modelo. Tenta ser o inverso da mídia hegemônica, mas muitas vezes age como ela. Não possui, muitas vezes, uma identidade própria.
Saída? Não sei. Talvez se mudar o povo e a imprensa, hipoteticamente, poderemos ter um pensamento brasileiro mais digno, sincero, menos hipócrita e menos ignorante.{/payplans}