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Sem provas, PF investiga artista negra por tentativa de vender o filho para tráfico internacional

Erro de digitação no documento do pai do bebê fez delegado da Polícia Federal abrir investigação; defesa alega falta de provas e racismo por parte da instituição

Polícia federal investiga mulher negra sem provas, segundo a defesa

Foto: Imagem: Alma Preta Jornalismo

29 de maio de 2022

Andreia*, artista negra de 36 anos, é alvo de uma investigação por parte do delegado Cristiano Costa Silva por suposto envolvimento com uma rede internacional de criminosos para a venda do próprio filho. A defesa emitiu um pedido de habeas corpus para que a investigação seja suspensa por falta de provas. O delegado não apresentou nenhum documento que justificasse a ação da Polícia Federal, segundo a defesa.

“Foi a sensação mais próxima da morte que eu já tive. Pensei que nunca mais veria meu filho, considerava que a minha vida havia acabado”, disse Andreia, quando se deparou com o inquérito da PF.

Em junho de 2019, Andreia foi convidada para participar de um evento em Portugal, na Europa, e foi à Polícia Federal para agendar uma visita para emissão do passaporte dela e do filho, na época com um ano e três meses. Quando apresentou o documento de autorização do pai, uma diferença na grafia entre o texto e a certidão de nascimento dele fez a instituição negar o documento do passaporte da criança, e em janeiro de 2021 abrir uma investigação sobre a artista. O pedido de passaporte foi feito na unidade da PF do Shopping Anchieta, em Belo Horizonte.

A Polícia Federal disse que autorizaria a entrega do passaporte do bebê com a presença do pai, que não é mais presente na vida do filho e de Andreia. A criança ficou sem o documento, não pôde viajar e a mãe foi sozinha para Europa no dia 11 de junho e retornou no dia 17 do mesmo mês. No habeas corpus existem fotos que comprovam as atividades desenvolvidas por ela em Portugal.

“Na época eu estava amamentando e nunca havia passado uma noite longe do meu filho”. Nesse breve período, perdeu os primeiros passos da criança e a primeira celebração dele na escola, uma festa junina.

No dia 19 de janeiro de 2021, a polícia federal emitiu intimação com o indicativo de investigações sobre possíveis crimes de falsidade ideológica, crime contra o estado de filiação e tráfico internacional de crianças.

“Esclareço que o objetivo da expedição do passaporte é a retirada do menor do país mediante fraude, ato destinado ao envio de menor para o exterior, com o fito de obter lucro, no esquema conhecido como ‘cai cai’, utilizado por ‘coiotes’ para entrada ilegal de imigrantes nos Estados Unidos da América, fato que configura o delito de tráfego internacional de criança – artigo 245, § § 1º ou 2º do CP, desacompanhada de qualquer indício de que a paciente pretendia vender sua própria criança”, diz o inquérito policial. O caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal, que ainda não recebeu o Habeas Corpus do caso.

O habeas corpus desenvolvido pelo escritório de advocacia Estevão Melo pede a suspensão da investigação, descrita como sem fundamento. O pedido é assinado por deputados federais como Áurea Carolina, Orlando Silva, Samia Bonfim, Talíria Petrone, Viviane Reis. A deputada estadual por Minas Gerais, Andreia de Jesus, e a vereadora de Belo Horizonte, Izabella Lourenço, também assinam o documento. A juíza federal que acompanha o caso é Raquel Alves de Lima.

O habeas corpus indica que o delegado fez uma “irresponsável afirmação” e que outro agente da PF, Benjamim Murta, sinalizou como elemento de suspeita o fato do pai da criança ter saído do país no dia 10 de março de 2014, o que o impossibilitaria de reconhecer firma no documento apresentado por Andreia, em 11 de abril de 2019. A defesa dela contesta.

“Contudo, é absolutamente inegável que o pai da criança se encontrava em solo nacional, tanto é que a criança foi concebida, nasceu e foi por ele registrada na cidade de Belo Horizonte/MG e, no sistema da Polícia Federal, há o registro de que ele se encontra em solo nacional pelo menos desde o período pesquisado, iniciado em 2015”, explica o Habeas Corpus.

Os advogados reforçam ser de conhecimento da Polícia Federal que o pai tem endereço e telefone registrados em território nacional. A defesa também alega que a PF não apresentou qualquer informação que Andreia possa compor alguma organização internacional de venda de crianças.

“Se o Delegado de Polícia Federal Cristiano Costa Silva fez a gravíssima afirmação de que há suspeita de que a Paciente pretende enviar seu filho para o comércio nos Estados Unidos – inclusive nominando o seu ato como de um esquema conhecido como “cai-cai” –, que encaminhe aos autos os documentos e elementos de prova suficientes a autorizar o início de uma investigação. O agente que diz ser falsa a declaração do pai da criança deveria, antes de assinar para a instauração do inquérito, certificar-se quanto à dita falsidade”, afirmam os advogados.

Sem essas informações, a defesa pede que as investigações sejam suspensas, para que Andreia não passe por situações constrangedoras. No dia 9 de maio de 2022 ela foi intimada a prestar depoimento e não compareceu, por entender a situação como “vexatória”.

A defesa de Andreia também indica uma possível seletividade racial no caso. “No entanto, são necessárias reflexões: uma mulher branca que pretendesse realizar viagem internacional com seu filho, mas tivesse algum problema com a autorização do genitor da criança, um erro material, estaria sendo investigada porque supostamente a viagem teria como objetivo a venda da criança no exterior?”, questionam os advogados.

Para Andreia, o racismo é um dos elementos que explicam a desconfiança e as acusações por parte da Polícia Federal. “Viver toda essa situação de racismo dói demais e é quase enlouquecedora de tão triste. A nossa existência já é algo declarado como errado”.

A Polícia Federal disse que não comenta nada “a respeito de investigação em andamento. Salientamos que a Polícia Federal pauta pelo respeito à Constituição Federal, não sendo pertinentes alegações em contrário”. O Ministério Público Federal, em nota enviada, afirmou não ter recebido o Habeas Corpus citado e, por este motivo, não tem como se posicionar sobre o caso.

*Andreia é um nome fictício, escolha adotada para preservar a identidade da pessoa em questão em situação de vulnerabilidade.

A reportagem foi atualizada no dia 13 de junho de 2022, às 22h38, com o posicionamento do Ministério Público Federal. A reportagem também alterou o fato da procuradora do caso ter sido Daniela Ribeiro. Segundo o MPF, ela atuou como substituta durante as férias da titular.

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