Não, mãe. Não foi assim não. Essa pólvora colorindo minha mão, denunciando munições que partiram dos meus atos, nunca explodiu do meu coração.
A pretinha que fui ver naquela noite tinha uma tatoo, uma granada desenhada no pescoço, foi o máximo que cheguei perto da artilharia. Achei da hora, ela trazia no riso o brotar de um arco-íris que iluminou meus olhos.
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Nunca dei tiro em ninguém nessa curta vida minha. Posso não ter concluído o ginásio, a catequese, nem ter arrumado um emprego fixo. Mas portar uma peça? Nunca, mãe.
Aderi à mágoa e à angústia ainda pequeno, rápido senti na pele a responsabilidade de ser sujeito homem, tapei o choro e o sentimento bacana, construí minha muralha. Mas, olha, mãe, dar tiro, não!
Eu nunca…
Nunca, mãe. Por favor, acredite! Sim, beijei a tatuagem dela, mordisquei o pino da granada; e quando o riso, após o sussurro, foi aberto, destampou uma explosão de carinhos deliciosos. Nunca apertei o gatilho de uma arma.
Acho que as circunstâncias, mãe, seus duros atos, seus vivos medos me apavoraram, me invadiram, dominaram. Aí temi adentrar outros sonhos além da nossa casinha da ruinha da favelinha que habitamos. Fui ler, desenhar, me esconder, descortinar o devaneio sob sua educação rígida. Gelava escrever torto por linha torta, a mão esquerda equivocada sendo minha diretriz, eu tentava caminhar direito.
Não foi assim como o jornal disse, como a repórter disse, mãe. Nunca dei tiro. Essa pólvora negra, em minha mão negra, nunca partiu de mim, do que sou, do meu coração. Nunca tive paixão por revólver. Já flertei, acariciei com taradice, observando suas curvas, mas em nenhum momento, mãe, me excitou, aí abandonei a ideia de tê-lo em minha companhia.
Nunca dei tiro.
Aquela noite foi mol fita difícil de explicar… Beijar tem sua delicadeza, a outra boca, se certeira, é como um projétil, o estampido na caixa do peito azucrina: se o toque preciso acertar em cheio o coração, é vida se abrindo, renascendo para o novo.
Mãe? É muita treta botar fé em mim, né? Tô ligado.
Meu jeito calado desde pequeno, minhas garatujas, eu rabiscando desenhos indecifráveis com sete, dez, doze, quinze anos, escondendo algo que eu também nunca soube explicar, eu sei, caguetaria qualquer deselegância minha.
Mas olha, mãe! Talvez a senhora e só a senhora possa ainda olhar com os olhos de quem sente, eu nunca dei um tiro.
Essa porra dessa merda dessa pólvora na minha mão, incendiando certeza, ofusca dúvidas como se rabiscasse uma veloz munição na linha de minha palma, traçando silêncio sorrateiramente em minha alma.
Não, mãe, não dei tiro. Você sempre me viu, sempre me viu com olhos que ninguém nunca viu. Repreendeu nas tretas, sem ninguém ver, deu peteleco na mão esquerda para escrever direito, sem ninguém perceber, lembra? E meus rascunhos me expondo, e você protegendo.
Nunca dei tiro em ninguém nessa curta vida minha. Posso não conversar direito, falar bonito, uns desânimos crescentes, uma frustração fazendo morada, posso não ter sido bom, mas ruim também não, mamãe, nunca apertei um gatilho.
Quando beijei a boca da pretinha naquela noite acariciando a orelha, os cabelos e a tatuagem do lado direito dela, a outra mão passeava suavemente no quadril, minha boca mais sorria que beijava, era novo, era tudo novo, mãe, era eu esmagando toda aquela treta minha do silêncio, das poucas ideias, foi o momento mais bonito tocar aquela preta.
Nunca dei um tiro, mãe. O que fiz foi levar uma com os tiras, pra gente das garatujas escritas não levar desaforo é importante, enrijece, enobrece, sufoca o isolamento de ser os caras que nascemos pra ser, mas dar tiro mesmo? Nunca.
Essa pólvora saracoteando em minha mão, esse balanço dançando em meu peito e rosto, nem o tanatopraxista artista que era aliviou sua dor, aquietou meu eu, porque nunca dei tiro, isso nunca!
Mãe, naquele dia quando o sol em sua bonita volta se fechava e a noite pôs seus lábios negros no céu, o degradê na régua, eu vesti minha calça nova, o mizuno, borrifei o perfume que a senhora me presenteou e fui ver a preta. Saí da quebradinha aqui e fui pro fluxo onde ela mora, isso é crime? Dançar é crime? Beijar é crime? Fumamos maconha, sim, é crime? Nunca troquei tiro. Isso nunca. Depois da cadeia do meu pai e a tristeza que infectou seu peito levando ao óbito, meter um B.O. nunca me instigou, seria esse meu crime?
A cilada foi ser revistado, a humilhação, aquela fita, hora errada, lugar errado, os socos surdos, os chutes calados, que no começo me assustaram, depois fui me adaptando ao ambiente. Silenciei, silenciei como quando criança, lembra? Para o policial foi uma afronta meu silêncio, meu olhar de ódio, meu coração desacelerando.
Aí, mãe, lembro do primeiro tiro, esse aqui no braço esquerdo, das escritas vazias, do soco forte, meus olhos bailavam inquietos a dança da resistência, lembro do segundo tiro, esse que estourou meus dentes, meus olhos acesos ainda caçavam inspiração para o passinho da vida, o terceiro no coração findou a música, silenciou meus olhos, parou tudo. Aí minha mão quente foi sustentada no ar, meu polegar afagou o cão de forma brusca, enquanto o indicador em par com o gatilho soltou seus três ruídos empesteando o ar.
Mãe, eu não seria louco de atirar em duas viaturas policiais, essa tara nunca foi minha, não está certo, acredita em mim, mãe! Se olhar com seus olhos de quem sente talvez conteste a notícia do jornal, essa humilhação da repórter, desminta todo o boletim de ocorrência.
Por que essa pólvora delirando em minha mão direita se eu, agora deitado eternamente, sempre fui canhoto?
Akins Kintê é um poeta, músico e escritor paulistano conhecido por seus versos marcados pela negritude. Em 2020, lançou seu terceiro livro “Muzimba, na Humildade sem Maldade” e também colocou nas ruas o EP “Abrakadabra”.