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‘Tragédia não pode se consolidar como narrativa única da experiência negra’, diz escritora

Maíra Oliveira é autora do livro infantil "Que Saudade da Minha Vó!", lançado na Festa Literária das Periferias (Flup); em entrevista, ela fala sobre a importância de narrativas negras de afetividade
A escritora Maíra Oliveira é uma mulher negra, de cabelos cacheados. A foto mostra seu rosto e um de seus brincos, na cor azul.

Foto: Divulgação

26 de outubro de 2023

Narrativas pautadas pela saudade e afetividade entre avós e netos negros permeiam o livro infantil “Que Saudade da Minha Vó!”. De autoria da escritora negra Maíra Oliveira, a obra foi lançada na Festa Literária das Periferias (Flup), que aconteceu este mês no Rio de Janeiro (RJ).

Em entrevista à Alma Preta, Maíra, que também é roteirista, diretora e educadora, com trabalho voltado a histórias com representatividade negra e feminina que subvertam estereótipos, fala da importância de abordar narrativas negras que fujam de cenários de tragédia.

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“Histórias trágicas, por assim dizer, têm, ainda que infelizmente, um papel de reflexão; uma reflexão que precisa ser mediada de modo responsável, para que não se consolide como narrativa única sobre a experiência única negra na terra”, afirma.

Capa do livro de autoria de Maíra Oliveira.

Confira a entrevista

Alma Preta: Qual a abordagem que o livro traz?

Maíra Oliveira: No livro, a “saudade”, esse substantivo abstrato de definição existente apenas na língua portuguesa, materializa-se em gestos de afeto da avó com seu netinho, que habitam a memória do menino, dando formas à saudade que se expressam nos desenhos dele. Com uma linguagem poética, a leitura revela como este sentimento aparece e como pode incomodar até os adultos.

Com o intuito de contribuir para educadores, a obra é ainda um recurso pedagógico que possibilita o trabalho dos seis direitos de aprendizagem presentes na Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se.

O objetivo é que cada pequeno leitor, como sujeito dialógico, criativo e sensível, possa expressar suas necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses, descobertas e opiniões sobre esse momento, a partir da leitura do livro. É um livro infantil para pequenos, mas que também vem sensibilizando adultos a refletirem sobre a complexidade do sentimento de saudade.

Esse livro traz alguma história pessoal?

Não parte de uma história pessoal, mas de um sentimento que compartilho. Não tive contato com minha avó materna e mesmo a minha avó paterna esteve apenas parcialmente presente na minha vida. Meus pais se divorciaram quando eu ainda era pequena e o convívio era esporádico.

Então, em ambos os casos, as minhas avós – e avôs também – ficaram vivas nas lembranças passadas pelos meus pais, tias, primos e primas… em forma de histórias. E, não à toa, foi assim que escolhi viver a vida, contando história. 

De que forma abordar o tema da afetividade entre avó e neto é importante no contexto da negritude?

Obras com protagonistas negros e histórias que resgatam a ancestralidade fortalecem a construção das identidades em crianças negras. O livro é como uma porta para o autoconhecimento e também para o melhor reconhecimento da subjetividade do outro, sendo um importante dispositivo para geração de empatia de pessoas de diferentes identidades, resultando em respeito à diversidade.

Nada é mais importante para criança do que uma história que a insira no mundo. Essa entrada no mundo se consolida por meio de sua imaginação e é também pela imaginação que saberes diversos sobreviveram gerações, que atravessaram a períodos históricos de dor e de luta, sem esquecer jamais de nossas origens prósperas e férteis.

O diálogo entre gerações é uma tecnologia negra que se materializa nos terreiros, por exemplo. Ilustrar em um livro essa tecnologia afetiva é uma lembrança disso. Uma lembrança de que uma mais velha, um mais velho, é uma biblioteca inteira e que, às vezes, nós adultos, a geração do meio, somos levados ao esquecimento, à distração.

Qual o impacto de narrativas negras pautadas pelo afeto para crianças?

Acredito que é através do afeto que a transformação se consolida mais fortemente. A indignação é efêmera e precisa ser alimentada como um fogo, muitas vezes consumindo a nós mesmos no caminho. Já o amor, o carinho, o bem querer… eles são estruturantes.

Dialogar com isso é uma escolha estética de bell hooks e outras acadêmicas, mas que nós, pessoas negras, temos como fundante nas nossas relações, ainda que um período funesto da história nos tenha afastado desse entendimento. A autoestima, coletiva e individual, é a chave para uma verdadeira emancipação, por isso a importância de uma representação positiva.

Agora, não podemos ignorar o trabalho pedagógico da literatura em nossa sociedade, que perpassa também pela necessidade de histórias que ao trazer situações de conflito apresente caminhos de superação. Assim, leitores dessas histórias podem por meio da arte perceber que não vivenciam sozinhas situações de exclusão por conta do racismo, por exemplo.

Nesse sentido, histórias trágicas, por assim dizer, tem, ainda que infelizmente, um papel de reflexão, uma reflexão que precisa ser mediada de modo responsável, para que não se consolide como narrativa única sobre a experiência única negra na terra.

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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