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Um raio de tristeza na Favela do Recanto

Favela tem disso, sempre uma dificuldade peculiar pra se enfrentar e achar, não se sabe onde, pra pôr no peito, um coração resistente

Texto: Akins Kintê | Imagem: Reprodução/Site Escola e Educação

Imagem mostra uma ilustração de roda de samba.

24 de outubro de 2021

Era uma roda de partido-alto. Zé Mixaria no cavaco, Tico Sem Nada no pandeiro, Chico da Madruga na timba, Maria das Dores improvisava arranhando gostosamente uma faca no prato, Pedrinho versava muito bem, Pretinha, Rita e Cassandra de Jesus Nada sapateavam ao som do partido e tudo isso acontecia na Viela Só Sorriso, na Favela do Recanto.

Ali era um paraíso e, por isso, o nome Viela Só Sorriso, mas para se chegar à boca desse beco era preciso atravessar a Ponte do Desespero, subir a Escada do Pecador, atravessar o Beco da Tristeza, passar pela Esquina da Maldade e, ainda por cima, aturar o disse me disse do Boteco do Portuga. E favela tem disso, sempre uma dificuldade peculiar pra se enfrentar e achar, não se sabe onde, pra pôr no peito, um coração resistente.

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Pedrinho, no verso saliente, já procurava graça com Rita, preta bonita de poucas palavras, que há pouco tinha comprado uma casa na Viela dos Desejos e era frequentadora assídua da Escola de Samba Grêmio Recreativo Sem Mazelas e Avante. Dona de um silêncio intrigado, Rita sapateava ao som do samba, mirava certeira o olhar bonito de Pedrinho, menino vadio de buscar a vida na ponta dos dedos, no bico dos lábios, na cara dos olhos e no suor do sexo. Rita, o que se sabe? Nada se sabe! Misteriosa aquela mulher. Na cara de seus olhos, um marzão profundo em que Pedrinho queria navegar com seu barquinho de fazer felicidade.

Rita sapateou, seu olhar contemplava Pedrinho. Ele cantarolou um gracejo pra preta, de improviso: é que sua pele noite/ brotam estrelas e assanho/ corpo assim no corpo/ em teu suor me banho/esse mar que tem seus olhos, penso que na realidade/ pra navegar meu barquinho de sonho e te trazer felicidade.

Ela compreendeu o verso, deixou no ar gostosa dúvida e um sorriso malicioso. Pedrinho não era de se jogar fora. Uma memória de cantarolar samba a noite toda, a mesma que guardava na cachola o mapa da fuga para qualquer transgressão da lei. A roda de samba era uma singela homenagem que prestava para o pai, Seu Chico. O veinho estava soprando as velas de nada menos que sessenta invernos, podendo se dizer, assim, bem dolorido.

Rita, mais próxima do malandro, mostrava interesse. Ele, vaidoso, cantarolou um Candeia. Todos cantaram o refrão. Na viela tudo era prazer, mas favela não é conto de fadas, o de sempre é aguardar uma tensão. Pedrinho na casa dos trinta… Dona Carola, sua mãe, fazia par com seu Chico, os dois convivendo juntos por mais de trinta anos entre acertos e erros. O filho deu a vida pela investida da querência. Não conseguia, por mais que tentasse, esperar por um dia de pagamento para assanhar um sonho. Aí se deu para uma intrigada vida bandida. O tumulto e a tensão de sua caminhada, não arrancou dentro de si, o sonho, devaneios que não compartilhava com ninguém. Rita já era de Pedro e Pedro já era de Rita! Nunca o sorriso fora tão doce, sincero e frágil; coisa igual no coração Pedrinho só sentira na noite em que, cara a cara com a morte, na Escada do Pecador, levará de um ex-amigo uma covardia: dois tiros pelas costas. Caiu prostrado no segundo degrau, seus olhos abertos choraram dolorido, nunca acreditara na trairagem, agora pego pelo inoportuno. Não morreu, não se sabe por que, entre uma febre e outra de sua recuperação, os devaneios.

Samba vai, samba vem… O menino bebericou no copo da preta Rita uma caipirinha preparada pela sua mãe; às mãos dos dois se entrelaçaram firmes. Quando não, no radinho veio um anúncio de uma visita estreita da lei. A inquietude abafou o sincero som do samba. Pedrinho pensou: “Liberdade, um bagulho foda! Toda hora nos escapando por entre as mãos e um pesadelo vem acobertando os sonhos”.

Rita segurou mais firme as mãos de fazer carinho do menino, deu um gole na caipirinha e bebericaram os dois da sua boca. Ele sentiu o coração batucando; era a hora dura da realidade. Como o menino queria eternizar o beijo, pediu a ela que aguardasse ali na Viela Só Sorriso, e se foi. Sabia qual era a da investida dos samangos e se picou por entre a mata onde tinha total proteção de seu santo de cabeça.

Pedrinho caminhou por trás do Grêmio Recreativo Sem Mazelas e Avante. As mãos de fazer carinho e batucar pandeiro portavam agora uma metade de noventa, pronta pra afugentar qualquer tentativa de furto da sua liberdade. Na boca do mato seu coração acelerou, um menino veio avisá-lo que a dona Justa tinha encarcado no seu coroa. Sabia que seu pai não o cagüetaria nem a pau, conhecedor de torturas disgramentas de delegacia, mas os cana-dura veio na disposição e cuidadosos na manha de servir o Estado, foram no ponto fraco; encabularam maldade com dona Carola. Covardia grande, bagunçar a face de sua mãe! Rita observava tudo à distância; o coração também batucava um surdo triste, logo agora que o peito semeara um amor de fazer história.

Pedrinho não podia deixar sua mãe pagar sua pena! Assim pensou, e voltou. Vestia apenas uma bermuda, as mãos para o alto. Seu olhar mirou Rita, viu se agigantar uma lágrima no rosto da menina e inundar a viela. Ele segurou o quanto pôde a emoção. O pai, durão, nada disse; um olhar comprometedor de amizade se eternizou enquanto dona Carola segurava uma tristeza visível, seu filho algemado posto no fundo do camburão ia pagar por um tempo à sociedade para a qual fez um baita incômodo: furtos e arrombamento nos cofres públicos. Ia Pedrinho descendo a Ladeira da Frustração para morar no fundo de uma cela.

Akins Kintê é um poeta, músico e escritor paulistano conhecido por seus versos marcados pela negritude. Em 2020, lançou seu terceiro livro “Muzimba, na Humildade sem Maldade” e também colocou nas ruas o EP “Abrakadabra”.

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