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Uso de câmeras de reconhecimento facial pode reforçar racismo, avalia audiência pública no Recife

Discussão girou em torno da ineficácia da ferramenta que, por erros da sua própria base de dados, pode contribuir com o encarceramento em massa de pessoas negras; ao todo, a prefeitura do Recife prevê um investimento de 90 milhões de reais 

Imagem mostra sala cheia de pessoas de etnias diversas, sentadas, em frente à mesa de parlamentares e estudiosos com um letreiro 'Câmara Municipal do Recife' em azul ao fundo

Foto: Imagem: Victor Lacerda / Alma Preta Jornalismo

17 de março de 2022

Seria a tecnologia parceira no que diz respeito ao desenvolvimento de mecanismos que atuam na segurança pública? Tratando de reconhecimento facial, o recurso, já testado e utilizado em diversos países e em outras capitais do Brasil, parece ineficaz para o que se propõe. Erros da sua própria base de dados podem endossar o encarceramento em massa de pessoas negras. Essa discussão foi levada, na última quarta-feira (16), à Câmara dos Vereadores do Recife. Em audiência pública, parlamentares e membros da sociedade civil se mostraram contrários à possibilidade da implantação de câmeras com a ferramenta na capital. 

O debate trata de um projeto desenvolvido pela prefeitura do Recife, de parceria público-privada (PPP), que, após o anúncio em outubro de 2021, prevê a instalação de 108 relógios eletrônicos digitais que podem dispor de estrutura que permitirá aferir a temperatura ambiente, medir a qualidade do ar e a incidência de raios solares, ofertar gratuitamente sinal wi-fi de internet banda larga e câmera de videomonitoramento junto à tecnologia de identificação. Ao todo, a implementação da tecnologia pode custar 90 milhões de reais. 

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Para discutir a funcionalidade, finalidade e a eficácia do recurso, além do custo elevado, estiveram presentes na audiência os vereadores Ivan Moraes (PSOL-PE), Cida Pedrosa (PCdoB-PE), Liana Cirne (PT-PE) e Dani Portela (PSOL-PE); a também presidente da Comissão de Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo da Câmara Municipal do Recife, deu início às falas com provocações e dados contrários a implementação do recurso. 

Portela pontuou que, ao longo do processo histórico, a sociedade sempre apontou para um arquétipo de suspeito, algo que passou de gerações em gerações e, hoje, segue sendo reforçado por meio de recursos tecnológicos. Como argumento, trouxe o dado de que, das 184 pessoas presas no Brasil, em 2019, por reconhecimento facial, 90% eram negras. Outro apontamento teve relação com levantameto realizado junto ao Supremo Tribunal de Justiça, que apresentou a estatística de que, em apenas um ano, as 78 decisões tomadas com base na tecnologia foram tidas como irregulares. 

“Assunto como estes, para nós, não são uma parte, é a nossa vida. É a vida de várias mães que olham as bolsas dos seus filhos para conferirem seus documentos de identificação, das mães que veem seus filhos saírem com medo que eles não voltem, por terem um perfil que, historicamente, tem sido considerado suspeito”, finalizou. 

A fala foi sucedida por Ivan Moraes, que reafirmou o compromisso da casa com a segurança, a partir de políticas públicas que, possam, sim, surtir efeito no que diz respeito ao controle social. No entanto, o parlamentar se mostrou contrário à proposta de implementação das câmeras, apontando como ferramenta ilegal e racista.

“Não há nenhum estudo que comprove a necessidade desse reconhecimento para a segurança pública em lugar nenhum do mundo e nem que a violência reduziu. Há estudos que o povo preto é que é mais preso, é isso que se tem”, pontuou Moraes. 

O parlamentar complementou afirmando que, a partir do encontro, a desistência da implementação do recurso poderia ser uma oportunidade da gestão municipal não pautar o retrocesso em políticas públicas de segurança que são atravessadas por questões étnico-raciais. 

O pedido foi complementado por Cida Pedrosa, que pontuou a vigilância tecnológica como princípio que pode recair sob a base do autoritarismo, principalmente, no cenário político atual. Além disso, ela destacou os riscos para a população mais vulnerável de Recife, além de pontuar que a tecnologia pode endossar o racismo institucional do judiciário. 

O que respondeu a prefeitura 

As questões levantadas pelos parlamentares foram levadas ao Executivo sob a representação do Secretário de Parcerias Estratégicas da Prefeitura do Recife, Thiago Barros Ribeiro. Em audiência, o gestor explicou a diferença entre privatização e as parcerias público-privadas, além de ressaltar a preocupação final da gestão, de trazer benefício para população e menos custosa. 

Entre os pontos ressaltados em sua fala, Barros afirmou que a empresa que conseguir a licitação não terá acesso a quaisquer imagens geradas a partir das câmeras acopladas nos relógios, ficando de responsabilidade restrita do consórcio vencedor apenas a instalação e posterior manutenção e conservação dos 108 equipamentos, além da exploração comercial de 216 painéis. 

“A empresa não terá acesso aos dados, aos conteúdos e às imagens geradas a partir das câmeras, tendo o uso de tais dados de exclusiva competência do poder municipal, não tendo a empresa quaisquer acessos às informações. A gestão dos dados das câmeras de videomonitoramento ficará a cargo da Secretaria de Segurança Cidadã”, pontuou o secretário. 

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O gestor ainda respondeu à preocupação sobre a falta de regulamentação sobre tecnologia, informação e vigilância no município, reafirmando o compromisso com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que estabelece regras sobre coleta, armazenamento, tratamento e compartilhamento de dados pessoais, impondo mais proteção e penalidades para o não cumprimento.  

Na reunião, também foram convocados os estudiosos André Ramiro (Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife), Paulo Fatai (Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância) e Vinícius Dantas (Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia da Informação), que contestaram o pioneirismo e a falta de embasamento e regulamentação suficiente para implementação da tecnologia em breve. 

“É preciso pontuarmos que a tecnologia não é neutra e que existe, sim, o racismo científico, inclusive na atribuição de padrões numéricos e no vigilantismo. Isso de ter melhorias após anos é uma falácia colocada pela secretária. Ela não pode ser melhorada por se tratar de uma tecnologia que, desde a sua aplicação, se apresenta como racista. Não podemos automatizar as opressões históricas e aprofundar as desigualdades e, sim, usarmos o princípio da precaução. Não estamos falando de uma tecnologia de garagem de experimentos e, sim, em uma ação que tem escala, onde o mínimo de erro pode causar violação de direitos e isso não é algo banal”, refutou Paulo Fatai. 

A provocação foi complementada por demais questões a serem pensadas antes da implementação. Entre elas, a do pesquisador em tecnologia Vinícius Dantas, que questionou qual seria o papel da empresa pública de tecnologia da informação para que se possa tratar de maneira legal os dados públicos. O estudioso ressaltou a importância de recursos tecnológicos em outras áreas de automação, como no combate à fraude, no desenvolvimento de cidades inteligentes, como na sincronia de sinais de trânsito e outros recursos que não estejam relacionados aos dados públicos. 

Diversas questões também foram pontuadas pelo pesquisador André Ramiro. Entre elas, o pesquisador levantou: “a gestão sabe o nível de diversidade étnica presente na tecnologia?”, “há um consentimento das pessoas que serviram de base desde a gênese do software?”, “há regulamentação sobre o funcionamento do algoritmo de reconhecimento?”. 

“É preciso entender se há algum estudo prévio que comprove que a tecnologia que beneficia a segurança pública supera o risco da violação das informações”, refletiu o estudioso. 

Implantação também preocupa os movimentos sociais

Estiveram presentes também membros da sociedade civil, como José Victor (Articulação Negra de Pernambuco – ANEPE), Dandara Rudsan (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA) e Tereza Mansi (Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH). Além disso, estava presente o Promotor de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital com atribuição da defesa dos Direitos Humanos, Dr. Maxwell Vignoli, e representantes do Ministério Público de Pernambuco (MPPE).

Para a Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE), o investimento é tido como ineficaz e de risco à população negra local. Para José Victor, representante do movimento, a tecnologia reforça um inconsciente colonial. Além disso, Victor apontou problemáticas sobre o mapa apresentado pela prefeitura sobre os pontos em que os relógios serão implementados no Recife. Por se tratar da Zona Sul, região que concentra os pontos turísticos, a implementação pode reforçar o racismo ambiental, tornando estes espaços excludentes para corpos negros. 

Outra preocupação apontada foi de que melhorias podem ser previstas ao longo dos 20 anos de contrato licitatório. Para o representante da ANEPE, em audiência, a especulação sobre o tempo necessário para um desenvolvimento eficaz da tecnologia é sinônimo de irresponsabilidade com a população. 

“A base dessa ferramenta me lembra muito o conceito do psiquiatra Cesare Lombroso, que nos definia como naturalmente perigosos e de risco pelos nossos traços físicos, sendo, agora, apenas uma ressignificação sobre esse conceito. Não há como investir em uma tecnologia que apresenta falhas e que ainda pode melhorar. Onde é que ficam os nossos corpos nisso? Especular é tratar de vidas e, neste caso, de vidas negras”, disparou. 

O Dr. Maxwell Vignoli e a representante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA, Dandara Rudsan, trouxeram outros apontamentos. Entre as questões, estavam os retrocessos na luta da política de droga, que, atualmente, é responsável, também, pelo encarceramento em massa de corpos negros, além da violação de direitos de pessoas LGBTQIA+, questão levantada pelo promotor e representante do MPPE, sobre a identificação de corpos, principalmente, transgêneros. 

Encaminhamentos

Em comum entendimento, vereadores, estudiosos e representantes da sociedade civil pedem pelo banimento imediato da implementação do recurso. Ainda não há um entendimento sobre qual via a proibição poderá ser feita, mas se espera que seja reavaliada pelo próprio executivo. O mesmo acompanhamento será feito no processo licitatório, desde a inscrição à aprovação da empresa concedida. 

Ao fim da Audiência, a vereadora Dani Portela (PSOL-PE) ressaltou que a segurança pública, hoje, ainda anda a passos lentos e que precisam de outras melhorias que não versam com esse tipo de monitoramento proposto no momento. A parlamentar, condutora da mesa, reiterou, em exemplo didático, que o racismo é estrutural e está presente, também, no poder público. 

“Confundem pentes, guardas-chuvas e outras coisas com armas de fogo quando estão sobre o porte de pessoas negras, as levando a serem presas e até mortas. Só não confundem a nossa cor”, finalizou a parlamentar. 

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