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Nós inspirávamos outros casais

O que diziam é que inspirávamos outros casais, que nosso encontro era uma trama dos ancestrais, os beijos, os afagos, a dedicação assim exposta motivava outros namorados a passear um dentro do outro

Texto: Akins Kintê | Imagem: Nappy

Casal preto com as mãos entrelaçadas

6 de agosto de 2021

Os nossos beijos sempre foram embrazados, quando saboreio o gosto do prazer ainda sinto minha língua passeando em seus lábios carnudos. Lembra… Nossas mãos enlaçadas? Nossos passos gingados naturalmente desafiando o mundo?

Nossa alegria mastigava feridas e o sorriso afugentava a zanga que nos fizera morada, lembra?

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Qualquer um de nós quando espontaneamente revirava o baú de arte, felizes íamos ofertar um ao outro, como quem descobre um novo mundo: às vezes um poema, senão uma música, um conto, um filme ou uma peça de teatro pra gente era um paraíso, não era? E morávamos em um verso, refrão ou uma cena de filme. Você cantarolando com os olhinhos marejados, dando outra interpretação pra aquele samba. Não era eu que acompanhava a melodia, era apenas meu coração murmurando baixinho pra não atrapalhar, lembra?

O que diziam é que inspirávamos outros casais, que nosso encontro era uma trama dos ancestrais, os beijos, os afagos, a dedicação assim exposta motivava outros namorados a passear um dentro do outro. Eu respirava no meu céu cinza gotículas saborosas da ternura e você enxugava suas lágrimas no calor do nosso encontro.

Não! A luz não se apagou. Lá no fundo o orvalho com suas partículas desenha possibilidades de novas chamas, dos beijos embrazados. Eu conto gota a gota essa nossa volta. Nós que sobrevoamos desertos de decepções, nossas asas imunes atravessaram geadas e fogaréus, também tivemos que atravessar a ponte que por baixo corria o rio da vacilação, bêbados na ilusão tropeçamos.

Os fantasmas nos abraçaram.

Nossos olhos não se olham mais um no outro, cada qual só encontra paz nas águas calmas de seu eu só. A razão, uma faca cega não rompe nosso elo, ao invés disso, maldosamente serra fio a fio a corda que nos une. O coração em um bailado dolorido trança os fios decepados.

Aquela aflição na gente afagou distância, mesmo assim de mãos dadas, na ilha da segregação seguíamos lado a lado, atravessamos o deserto do desprezo com dignidade. Entre nós lonjura foi chegar no refúgio que afugentamos a paquera. Suas palavras ásperas me feriram, eu me cobri de ignorância, inundei nossos sonhos com atitudes desnecessárias, queríamos mesmo nos dois era fugir, sem ter pra onde ir nos vestimos de mágoa, de mentira, nos agasalhamos de ilusão no progresso que eles nos cegaram, como dois presidiários na cadeia do não ser, nos agredimos, nos ferimos e fomos morar cada vez mais, cada um em sua solitária.

Nosso riso rude lança dúvidas em nosso íntimo. Outro momento plantamos cumplicidade, mas não colhemos mais compreensão em nossa horta. Ante o verso: o medo beirando o desespero. Ante o samba: a impaciência fantasiando outra ode. Nosso filme embolorou a fita nos conflitos internos, fui te ler o poema, nossas páginas lacrimejantes apagaram as rimas. Onde nos perdemos?

O lume centelha memória e o prazer nos abriga com boas possibilidades de incendiar novos beijos. Nem tudo está esgotado. Um tiquinho de esperança põe música em nosso abraço forte, como quem desmancha os toques ríspidos da gente. Um chamego coloriu movimentos, dançamos o passo certeiro da felicidade, flutuamos e nosso escudo restaurou a defesa protegendo o amor.

Rodopiamos espectros que aterrorizam nossa volta, aprenderam os nossos passos, vestiram nossos corações com imagens de insegurança, mais que no teu eu vi meus olhos vazios. Enquanto despencávamos, nossas mãos entrelaçadas não deixavam o suor nos deslizar para a solidão outra vez, em nosso choro surdo passeava uma satisfação, pelo nosso belo encontro. Chegamos ao chão firme, encharcados pela paixão do desenredo.

O império erguido em nossos corações, com o fulgor da arte, é verdadeiro. As descobertas no profundo prazer de nossos corpos inflamados são somente nossas. O segredo, o medo, a loucura, a voracidade, a angústia, a fragilidade.

A primeira vez, aquela vez, a única vez, a melhor vez. Tudo neste império que construímos, e não temos mais ânimo pra adentrar. O amor continua intacto. Mas sem possibilidade de continuar.

Chegamos ao fim.

Akins Kintê é um poeta, músico e escritor paulistano conhecido por seus versos marcados pela negritude. Em 2020, lançou seu terceiro livro “Muzimba, na Humildade sem Maldade” e também colocou nas ruas o EP “Abrakadabra”.

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