Ela mora ali na Campos Elíseos, na esquina da Glete que cruza com a Barão de Limeira. Depois que compareci ao presídio para assinar uns papéis fui visitá-la. Estava livre não de tudo, mesmo eu tendo pago minha cadeia tinha que prestar explicação para justiça mensalmente, até o final da minha vida. No ano de dois mil e vinte e oito, a condução pública é outra coisa. Fui cuidar da minha liberdade assistida no Belém 2, pra chegar no centro da cidade muita treta, custei, mas cheguei na casa da Mirian, aquela mesma a de Rosa e Riso.
Aprendi a ler lá na penita, as esquinas sempre cruzando meu destino, era linha do caderno, linha da grade cada qual encarcerando meu peito. Entender letra a letra, criar palavra, era solidão atrás de solidão. Pouco a pouco, entre um verso e outro pichado nas paredes da cela, fui desvendando o mistério de ler. Nessa louca viagem, fui decifrando os livros das prateleiras das celas dos amigos, traduzindo com os olhos do coração as cartas que meu bonde enviava, as da Mirian de Rosa e Riso eram sempre lindonas.
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O apê dela até que é grande para o final da década de vinte, uma caminha, uma piazinha, privadinha, chuveirinho, um banheirinho, corredorzinho, num espacinho minúsculo, mas a estante de livros dentro daqueles 16m² parece um mundo.
Ela vai em uma prateleira: “Revoluções” me explica a presença feminina na luta dos países africanos pela independência. “Nehanda Nyakasikana, já ouviu falar? Essa mulher liderou a primeira rebelião armada contra os brancos em Zimbabwe”. Me mostra o livro de Carlos Castilho “Última Rodésia”, em outra prateleira pega uma biografia do Serginho Chulapa “Artilheiro indomável”. Na prateleira de literatura seus olhos brilham, tudo arrumadinho, todos os títulos do Fábio Mandingo, o “Bará” de Mirian Alves e me mostra com paixão a raridade que conseguiu “Canto a Mulher Amada” do Oubi Inaê Kibuko.
No corredorzinho do seu estúdio as paredes cobertas de artes, um painel clássico do Coyote, aquele desenho dos Racionais Mc’s, uma pintura de uma mulher negra desenhada pela talentosa Mickalene Thomas, uma ilustração rara da Tatyana Fazlalizadeh.
Me criei nas esquinas, desde muito novo negociando um monte de rolo nas ruas do centro da cidade: um lance pra vender aqui, uma treta pra resumir ali, uma carguinha pra desenrolar na rua mais abaixo, outro apartamento pra sumariar ali pra cima. Comecei a observar o valor das artes por causa da Mirian, antes de aprender com ela entregava de bandeja peças raras, foi assim com o Tabuleiro Opon Ifá esculpido na madeira, tirei da casa de um ricasso e entreguei para outro. Eu ainda não via valores espirituais, só o mísero dinheiro.
Negueba era um irmão preto mais velho, a gente costumava dizer que ele estava dois séculos à frente do tempo. Conversava o necessário e resolvia os desafios quandos os problemas surgiam, ao mesmo tempo ele tinha um jeito de uma pessoa antiga, quando acordava não pronunciava uma palavra, até cantar para seus Orixás, regava flores por onde quer que passasse, no começo vestia branco toda sexta, depois todos os dias, nunca deveu ninguém, nunca comprou fiado, nunca matou e nunca morreu, um malandro bom, descolei com o Velho Negueba o quadro The Black Queen da Tamara Natalie Madden, daí em diante fiquei de olho nessas riquezas, a escultura Rainha da Rosana Paulino, consegui com ele também, dava um jeito de chegar até Mirian, se ela soubesse que eu que estava presenteando conhecendo meus modos, talvez negasse.
Mirian de Rosa Riso
Ela sabe que saí faz pouco tempo da cadeia, e na conversa com ela decifro os enigmas do meu labirinto. Ela atenta fala dos presídios sem dizer, toca nas minhas dores com mãos de curar, eu desbaratino: “Aquele tal de Oubi que você descolou a raridade num tá no Cadernos Negros, o trinta que você enviou naquela carta? Esse livro tumultuou na ilha, folheei um tal de Allan da Rosa, Elizandra Souza, Esmeralda Ribeiro, esse texto aqui ‘Memórias de Um Fumante’, do Oubi, a rapaziada chapou, e essa tal de força ativa?”.
Ela me orienta: “Um pessoal que se organiza na Biblioteca Solano Trindade, lá na Tiradentes, você conhece a malandragem que joga no Sedex né? Se informa com os caras, eles devem conhecer. Participei de vários grupos de estudos. Foi assim que peguei esse prazer pela leitura e consegui entrar na faculdade, sou muito grata a esse coletivo e somos sempre.”
Enquanto vemos os livros ela continua “Preto, essa aqui é a coleção dos Cadernos Negros. Tá vendo esse é o quarenta e nove, publiquei dois poemas. Esse ‘A liberdade cantarás em seus olhos’ dediquei a você. Meu pai publicou nesses volumes aqui, no vinte e três e no quarenta e dois, eu tenho todos, falta apenas o volume um, sabe quando foi publicado primeiro…”.
Escuto a Mirian, mas o coração é envolvido pela arte de Sonia Gomes, suspensa no teto no cantinho da sala, a costura fascina, o desenho bordado me bagunça o passado, a infância, a penitenciária, os meus familiares, a forma da amarração toma meu olhar carregando pranto, o fio vermelho encruzilhando meu caminho. De soslaio um sorriso me rouba, saio da casa da Mirian de Rosa e Riso sem nada dizer, enquanto desço o elevador miro o futuro, e ali mesmo vou “tecendo o amanhã”.
Alimento pra jornada
Depois de uma caminhada intensa no crime, de muita adrenalina, é difícil se manter pacato, achar graça na vida mórbida do operário nesse final da década de 20. Preciso de ânimo, algo que alimente essa jornada. Só arrumar um trabalho não vai me fazer feliz, gosto do movimento das coisas, pelo que entendi nas palavras da Mirian, mil novecentos e setenta e oito foi frenético, os detentos pretos organizados no Carandiru, homens e mulheres negras organizando o Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONOZU), militantes negros organizando o Movimento Negro Organizado (MNU). Em setenta e oito, jornalistas e poetas organizados publicaram o primeiro volume da antologia dos Cadernos Negros, um tesouro bem guardado na Mário de Andrade, tá aí um motivo pra por sentido na vida, o Cadernos Negros que Mirian quer, um atrito na bliblioteca, voltar rever meu dom de invadir terreno bem vigiado.
Ando pela São João e corto a Rua das Palmeiras. Placas de vende-se em quase todos os prédios, passo no Largo do Arouche, gostava de perambular por essas ruas, a cidade é decadente nesse ano de dois mil e vinte e oito a pobreza se alastrou. Subo pela Praça da República e pego a Sete de Abril, um deserto de prédios abandonados e carros deixados no meio fio, a linha vermelha do metrô funciona com intervalo de uma hora à uma hora e meia, da Barra Funda pulo pro Brás e do Brás até o Tatuapé, mesmo assim ficou um transporte caro. O serviço de limpeza pública foi excluído dos gastos do Chefe de Estado, então já viu, o centro da cidade estava apodrecido, no olhar dos trabalhadores os poucos que conseguiam emprego o mesmo abatimento, um inverno pegajoso.
A Biblioteca Mário de Andrade é o único patrimônio que recebe recursos, isso por ser um dos acervos mais importante do Brasil, livros das bibliotecas públicas foram levados para lá e quem administra são os militares, então o acesso ao conhecimento, pesquisa e leitura quase impossível, ex-presidiário como eu, nenhuma chance.
Mirian, dentro dos olhos um brilho de acender fogueira mesmo em dia chuvoso, sempre foi inspirador ouvi-la discursar convocando a massa pra luta, nesses quase oito anos de cadeia não deixei de pensar nela um minuto sequer. “Mirian de Rosa e Riso, esse verso todo, toda essa prosa, nem um momento impreciso, de flor venenosa, de momento decisivo, tornaste polvorosa. Mirian de Rosa, de rosto negro liso, do seu riso de improviso. seu naipe de aviso, assim toda dengosa. Mirian de Rosa, trombasse um poeta, não eu que falta parafuso. De deslize, você que nunca avise, um riso sempre novo, sem reprise, é o que friso, daria lindos versos Mirian de Rosa e Riso.” Rabisquei um dia na cadeia, guardei na memória e rasguei, jamais disse pra alguém.
Não só as ruas não são as mesmas, encontro alguns amigos dos rolos com semblante abatido, muito desanimados para buscar algum progresso, o velho Negueba não muda, cada vez mais se cuidando. A cadeia me bagunçou sim, mas fui destrancando os cadeados internos depois que aprendi a ler, enquanto alguns amigos nas ruas que não passaram pelo cárcere foram pegos nas armadilhas do sistema, está bem difícil de se libertarem, vai entender o que é prisão. Na frente do Estadão observo do outro lado a Mário de Andrade já rabiscando na mente o plano.
Consegui com uns amigos da Treze de Maio, ali na Major Diogo, um quartinho com banheiro, fora a cama e um guarda roupa, divido a casa com livros que não param de vir morar comigo, não li quase nenhum, mas não sei porque me viciei em livros, sempre acredito que em algum momento vai me servir pra algo. Do outro lado da muralha, livros me serviram pra mil fita: guardar maconha ou o chip de celular, já usei como arma numa rebelião, como calço da mesinha ou suas folhas pra fazer um travesseiro. Agora tô nessas de desvendar os segredos por trás dessas milhões de palavras sem saber ao certo por onde começar, aí vou juntando os livros. Eles juntos com a Mirian de Rosa fazem batuque no coração, fora isso careço de silêncio.
Quando conheci Mirian, eu era bem novo, quinze ou dezesseis anos, ela a mesma idade, filha de militantes e herdou a personalidade forte da mãe. Eu tinha várias tretas da escola, fiz até terceira série sem aprender a ler e escrever e toda aquela situação da sala de aula me afastou, meti o pé fui pra rua. O dinheiro difícil que dizem que é fácil botou sentido na minha caminhada.
Chegou uma fita de que a vítima um gringo que fora trançar o cabelo na galeria, carregava uma mala com muita grana, fui pro plano, no Viaduto do Chá engatilhei a quadrada e tomei a mala, na fuga eu tinha um esquema, pulava o viaduto em cima da marquise e já entrava na Miguel Couto. Tirava a blusa de frio, guardava a mala na mochila tentando caminhar tranquilo, mas como estava nervoso empurrei a pretinha que caiu.
Na São Bento emboquei para o largo do Café, olhei para trás o tiozinho que guardava as motos ajudou ela se levantar, cheguei até o Parque Dom Pedro, subi na linha 4314 e desbaratinei do centro, fiquei duas semanas no Inácio: Fluxo no Juscelino, Samba na Cohab Dois, Futebol na Cidade Tiradentes, quando voltei pro centro consegui saber da moça que derrubei na fuga, trabalhava do lado direito na Rua Direita, quando a vi saindo do prédio, foi a cena mais bonita que os olhos do meu coração já viu em toda vida, me aproximar não foi fácil ligeira, mas ficamos amigos: ela metida em mil reuniões, eu envolvido em mil treta, ela com os planos de fortalecer o povo negro, eu resumindo violência nos becos e vielas, ela lutando por vida, eu me suicidando nas esquinas, ela enxugando prantos, eu florescendo angústia, ela gritando por justiça, eu silenciando cada dia mais, ela colorindo sonhos protestando liberdade, eu acinzentando minha liberdade, no protesto cego.
Fui preso.
Executar o plano não ia ser fácil, não bastava apenas coragem, era necessário muita habilidade e frieza, analiso a planta da Mário de Andrade. “Melhor vir subindo da Anhangabaú, de trás daqueles busão que vai pro Campo Limpo, os guardinha vai nem vê” aí entro na treta comigo mesmo. “Não mano, vai pela Dom José Gaspar, nem dá tempo dos cara pensar, pega eles na fragilidade” já bati o desânimo. Quantas artes negras surrupiadas por eles lotam os museus? Quantos tambores construídos nos interiores das aldeias africanas alojam quartos de sobrados e apartamentos desses jovens paulistanos? E os sambas? Eles numas de guardar as músicas desde o final do Século XX são detentores do patrimônio construído pelos poetas do carnaval, quer mais inspiração pra retomada? A literatura negra, primeiro eles dizem que não existe, aí anulam dizendo que é uma escrita medíocre, depois que nos afastamos eles estudam, dominam e na próxima onda negra apresentam como um legado brasileiro. Pra um ladrão, só um motivo basta. Leio o poema que a Mirian me dedicou:
A liberdade cantarás em seus olhos
Seu olhar hora se assiste
Risonho
Hora insiste tristonho
Hora cólera e existe
Guarda um sonho
Teus negros olhos de sono
Eu não abandono
Tem um brilho natural
Uma fogueira ancestral
Nessa chama
Nesse chamado
Tem lume no negrume
De teus olhos Tem fúria no mar
Me molho
Tem furacão erupção
De verdade
Cada vez mais se aproxima rebelião
Onde cantaremos juntos
A liberdade
Fui com fé, vi vulnerabilidade na entrada da Consolação, então lancei o plano, o Negueba que estava na frente dos caras na tecnologia conseguiu pôr o chip do faxineiro no meu pulso, ele parecia comigo mesmo, suave. O segurança songa monga nem se ligou, adentrei o corredor que parecia um deserto sem fim, a sessão de literatura brasileira estava no segundo andar, trancafiado na sala oval, fui na vontade, o faxineiro limpava ali sob vigilância, me passando por ele entrei apreensivo, mais que o medo do erro tinha a tentação de outros livros, eu não podia perder o foco, tirei de dentro da blusa a cópia fajuta que fiz e troquei pelo Cadernos Negros original.
Estava soando frio, então esfreguei o chão com vontade para não dar pala. Era aguardar findar o turno e pronto, mas o livro em contato com o coração deu aquele pane da cadeia, do passado. Eu sei, preciso parar com isso, as fitas erradas, talvez a leitura e a escrita sejam um caminho, ainda não li os livros nem sei por onde começo, mas passeia em mim a vontade de abrir uma biblioteca comunitária, ali perto do Vai-Vai, a comunidade da Bela Vista, o Velho Negueba vai somar. Ele ficou muito contente com a minha presença nas ruas.
Preciso bolar o plano pra deixar o livro na prateleira da Mirian, vagarosamente saio da biblioteca com um quilombo no peito, vou pela Rua Major Quedinho, o dia começa mostrar sua face, o arrebol por entres os prédios vermelha o negrume do céu, eu tento compreender as encruzas, não posso mais desenhar gargalhadas frouxas sobre as feridas, entender minhas dores será um caminho para o riso verdadeiro, enquanto carrego esse tesouro no peito vou tecendo o amanhã.
Akins Kintê é um poeta, músico e escritor paulistano conhecido por seus versos marcados pela negritude. Em 2020, lançou seu terceiro livro “Muzimba, na Humildade sem Maldade” e também colocou nas ruas o EP “Abrakadabra”.
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