O final de julho na República Democrática do Congo foi marcado por protestos e confrontos contra as Forças de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com informações publicadas, o confronto iniciado em 25 de julho deixou pelo menos 19 pessoas mortas – incluindo quatro integrantes da Força de Paz – e mais de 50 feridos em bases das forças internacionais em Kivu do Norte. Professores explicam à Alma Preta Jornalismo o que motiva os protestos e a relação da organização internacional com o país africano.
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo (Monusco) é acusada de fracassar em proteger a população civil congolesa das milícias que atuam na região há décadas.
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Segundo informações compartilhadas no Jornal Nacional, os manifestantes acusaram os boinas-azuis – como são conhecidos os soldados da organização – de reagir com violência a manifestantes que jogaram pedras e bombas incendiárias contra prédios das Nações Unidas. Em tweet, a Monusco disse que armas da polícia congolesa foram roubadas e disparadas contra as Forças de Paz.
Ainda de acordo com a ONU News, o secretário-geral, António Guterres, lamentou a perda de vidas entre manifestantes e reiterou o empenho da ONU em cooperar com as autoridades congolesas para investigar os incidentes. A organização também culpou a violência e o saque de suas propriedades a criminosos que fingiam ser manifestantes, sendo que a polícia local também acusou membros de grupos armados de se infiltrar nos protestos para incitar a raiva contra a Monusco, informou a BBC.
“Provavelmente, esse protesto vai abrir um cenário de novos protestos. Há todo um discurso de espontaneidade de pessoas insatisfeitas com a presença da Monusco, mas por outro lado é possível identificar a influência de alguns grupos sobre essa população fazendo com que as pessoas vão às ruas contra as tropas de pacificação”, explica Flávio Francisco, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutor em História Social.
O professor da UFABC também explica que o Movimento 23 de Março, grupo armado conhecido como M23, está relacionado ao protesto contra a ONU e acabou patrocinando o ataque ao escritório da organização e as manifestações contra as tropas de pacificação no país.
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Conflitos na República Democrática do Congo e relação com a Monusco
Segundo artigo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desde a independência da RDC, em 1960, o país nunca se constituiu como um país estável, tendo um estado de violência agravado por duas guerras de grande magnitude, que vitimaram mais de 4 milhões de pessoas. Mesmo após o conflito, o país seguiu em estado conflituoso com grupos que não foram incorporados ao exército atuando contra o governo. É nesse contexto, que foi estabelecida a atuação da Monusco.
De acordo com análises divulgadas, a raiva da população é motivada pelo fracasso da ONU em deter grupos armados que operam na República Democrática do Congo (RDC), rica em minerais. Algumas da milícias que atuam na região é o movimento armado M23 e a Força Democrática Aliada, que é afiliada ao Estado Islâmico.
O congolês Bas’Ilele Malomalo, professor de Relações Internacionais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), explica que basicamente a raiva da população contra a ONU tem relação ao genocídio que acontece no país desde 1996 com o início da primeira guerra da região, em que Laurent-Désiré Kabila vai subir ao poder com o apoio de Ruanda e Uganda.
“Mas depois, ele, como nacionalista, vai se desfazer desse apoio de Ruanda e Uganda. Ele é assassinado e o filho dele, chamado Joseph Kabila, sobe no poder em 2001. Desde esse período Ruanda tem procurado infiltrar seus soldados no exército congolês”, explica o professor.
Um grupo de especialistas da ONU diz ter evidências de que tropas ruandesas estão lutando ao lado do M23, por exemplo, apesar do governo ruandês negar a acusação.
O professor Flávio Francisco explica que há uma grande dificuldade do país em constituir uma autonomia também, porque muitas das atividades de extração de minérios e recursos no território são muito importantes economicamente. Esses interesses sempre atuaram no país no sentido de desestabilizar o território.
“Grupos armados disputam áreas, principalmente no leste do continente, onde parte desses recursos são abundantes. Há o exemplo do cobalto, fundamental para a construção da bateria de carros elétricos. São contradições do sistema capitalista, porque de um lado você tem o carro elétrico como uma suposta solução para o processo de renovação energética, só que o impacto dessa indústria no Congo é a luta por grupos para dominarem espaços onde você tem a existência desse mineral”, explica.
Especialistas indicam que M23 luta com apoio de Ruanda | Crédito: Al Jazeera English – Flickr
Malomalo também conta que as pessoas que se revoltaram contra a organização internacional são jovens e a sociedade civil que vai contra a vontade do governo congolês porque avaliam que há falhas no cumprimento da missão.
“Já são 23 anos que essa missão se encontra no território do Congo e a avaliação da população é sobre a ineficácia e, além disso, de alguns problemas que esses soldados da ONU trazem. Essa missão da ONU que deveria estabelecer segurança não consegue estabelecer isso durante 23 anos”, explica Malomalo.
Críticas à atuação da ONU no país
No dia 31 de julho deste ano, segundo informações da própria ONU, em Kasindi, província de Kivu do Norte, militares da Monusco abriram fogo contra civis quando voltavam de férias em seu país de origem. As notícias diziam que as forças de paz da ONU mataram duas pessoas e feriram várias outras por “razões inexplicáveis”.
Em tweet, a chefe da Monusco, Bitou Keita, diz estar profundamente chocada e consternada com o “grave incidente” ocorrido em Kasindi. A publicação também informa que os autores do tiroteio foram identificados e presos enquanto aguardam as conclusões da investigação.
As autoridades congolesas também decidiram expulsar oficialmente o porta-voz da Monusco do país, supostamente por fazer “comentários indelicados e inapropriados” após os protestos mortais que aconteceram no leste da RDC.
Sobre esses problemas relacionados à atuação da ONU, Flávio Francisco pontua que isso é algo que se reproduz em vários países do mundo que passam por um processo de ocupação e transição.
“As tropas chegam para iniciar um processo de pacificação e elas contribuem para a reconstituição de infraestrutura nesses países, mas tem esses aspectos de contradição, porque em alguns momentos e circunstâncias, elas entram em choque com as populações locais”, complementa.
“Eu endosso a crítica da sociedade civil congolesa de que eles devem partir. Endossando isso estou no sentido mesmo do grupo de congoleses que acham que isso vai possibilitar ao governo do Congo se organizar e fortalecer o exército para defender a soberania nacional. A gente sabe dos abusos de alguns dos soldados da ONU que estão envolvidos em tráfico de minérios, temos casos de estupros e alguns militares entram nesse sentido”, finaliza o congolês Bas’Ilele Malomalo.
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