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Construindo quilombos e amplificando vozes da diáspora afro-brasileira: ‘Femigrantes BR Podcast’

Iniciativa liderada por afro-brasileira na França provoca reflexões sobre o despertar decolonial de mulheres migrantes nos cinco continentes

Imagem mostra Lilian, uma mulher negra de pele clara, com cabelos cacheados, que usa óculos de grau e sorri. Ela está com um fone de ouvido e um microfone de gravação de podcast.

Foto: Imagem: Acervo Pessoal/Lilian Moreira

24 de dezembro de 2021

Um número recorde: vivem hoje fora do país mais de 4,2 milhões de brasileiras e brasileiros. O volume de nacionais do Brasil morando no exterior teve o impressionante crescimento de pelo menos 35% entre 2010 e 2020, segundo o ministério de Relações Exteriores (note-se que esses dados provavelmente estão aquém da totalidade dos fatos, pois as estatísticas sobre migrações internacionais carecem de exatidão). Nem mesmo as restrições mais recentes causadas pela pandemia foram capazes de frear esses deslocamentos. E para quem já vive fora do Brasil há algumas décadas, além do aumento em números absolutos, é notória também a transformação do perfil étnico-racial das comunidades brasileiras no exterior. Mesmo na ausência de dados sobre a porcentagem de brasileiros negros nesses fluxos emigratórios, é evidente a mudança no retrato das pessoas que migram.

Apesar dos recentes retrocessos, a população negra brasileira viveu a partir dos anos 2000 uma real ascensão social. Muitos afro-brasileiros tiveram pela primeira vez uma oportunidade de viajar para fora. E parte de nós tomamos a decisão de nos instalar em outro país para buscar outras oportunidades de vida por variadas razões, sejam elas trabalho, estudo, relação amorosa, desejo de desfrutar de uma maior segurança pública, ou de juntar-se a membros da família… As motivações são diversas, mas o fato comum a todos os nossos percursos é: a migração para brasileiros negros ou indígenas é um fenômeno especialmente complexo, principalmente em se tratando de mulheres. Se mudar de país já envolve de modo geral muitos riscos e desafios, a perspectiva interseccional se torna ainda mais necessária quando analisamos a trajetória de migração de mulheres afro-brasileiras pelo mundo. E aumentando a complexidade da questão, quando se trata de migração para países do Norte global, cuja maioria da população é historicamente branca e com passado colonizador, é imperativo articular raça, gênero, classe, nacionalidade e outros marcadores étnicos e sociais para entender a nossa real situação.

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Segundo as estimativas gerais disponíveis, os Estados Unidos aparecem disparados como o maior destino de emigração. É lá onde vivem quase metade de nossos compatriotas que estão fora. Em seguida, vem Portugal, que recebe pouco mais de 6% da população brasileira emigrante; e depois vemos Paraguai, Reino Unido, Japão, Itália, Espanha, Alemanha, Canadá, França… Por sua vez, os países da África recebem menos de 1% dos brasileiros que saem do país. A Ásia é o lar atual de menos de 6% dos brasileiros emigrantes, e a região do Oriente Médio é o destino de pouco mais de 1% dos nossos compatriotas. Não há grandes surpresas no fato de que a maioria das pessoas que deixam o Brasil optam por viver em países com índices de desenvolvimento humano (IDH) superiores e mais oportunidades profissionais. Boa parte de nós, ao decidir migrar, saímos em busca de alguma forma de libertação do fardo que significam as opressões de raça, gênero e classe no Brasil. Porém, ao chegar no país de destino, nos damos conta de que o mundo aqui fora, sobretudo no Norte global, está cheio de contradições e armadilhas nebulosas.

Já atravessadas desde o berço pelo racismo, pelo cis-hétero-patriarcado e pelo capitalismo, a situação de estar migrante nesses países nos coloca ainda em um outro lugar, numa outra identidade: o lugar do outro – ou melhor, da outra. De micro-agressões decorrentes da hipersexualização de mulheres de fenótipo brasileiro (leia-se mulheres negras ou com traços atribuídos à negritude), a insultos e violências nítidos associando brasileiras à prostituição. Da estigmatização da imigrante que viria fazer filhos e “se aproveitar dos benefícios do sistema público europeu”, à suposta ameaça que representaríamos no mercado de trabalho. Das acusações de vir “roubar maridos” das europeias em busca de um passaporte vermelho, ao descaso policial nas tentativas de denunciar um episódio de violência doméstica… Ser mulher afro-brasileira imigrante no Norte global é viver na intersecção de uma série de opressões exercidas ora de maneira flagrante, ora sob o véu das diferenças culturais. Seja como for, o acúmulo a longo prazo dessas múltiplas opressões vividas cotidianamente na pele tem um efeito arrebatador sobre nós.

Ter essa nova identidade de um “corpo colonial” imposta nesse Norte, mais especificamente nessa Europa que foi a inventora e propagadora das ideias racistas de supremacia branca, é uma experiência avassaladora e por vezes, aprisionadora. Nos vemos presas no estereótipo da mulher preta ou mulata (sic) “tipo exportação”, sensualizada, dançante e servil, reduzidas com frequência à constrangedora imagem de um corpo disponível para satisfazer as necessidades das metrópoles coloniais. Se quando vivíamos no Brasil, já crescemos ouvindo que era preciso ser dez vezes melhor do que as outras pessoas para conseguirmos um mesmo resultado e sermos respeitadas, aqui fora, tendo que lutar contra o racismo, o sexismo e o imaginário hipersexualizante da brasileira, nos vemos obrigadas a sermos cinquenta vezes melhor do que os outros para conquistarmos nosso lugar. A boa notícia é que nossos deslocamentos pelo mundo são cheios de contradições, e mesmo com toda essa conjuntura opressiva, ainda encontramos espaço para experiências positivas. Apesar de vivermos nesses territórios em princípio hostis à nossa cor, à nossa pele e à nossa existência, muitas de nós conseguimos converter esse cenário num espaço para exercer cotidianamente nossa resistência. Nas redes de brasileiras migrantes afro-brasileiras, não são raros os relatos de mulheres que foram começar seu processo de descolonização mental justamente quando viviam em países de forte histórico colonial.

Esse nosso despertar decolonial durante a vida no Norte global é no mínimo intrigante, mas sabemos que os estereótipos aos quais estamos sujeitas na migração podem nos conduzir a nos voltar para dentro e fazer um mergulho na nossa ancestralidade, em busca de nossas mais profundas identidades. Por mais paradoxal que possa parecer, a situação de estar migrante impulsionou muitas de nós a buscar nossas raízes e nos conectar com nossas origens africanas. O “tornar-se negra (o)” acontece como um movimento político de enfrentamento. Uma revolução decolonial operada de dentro dos territórios que foram o próprio berço do sistema colonial racista.

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Há que se dizer, todavia, que frente à imposição histórica e sistemática da colonialidade do ser, do saber e do poder, a descolonização de nossas mentes não é um processo linear. Pelo contrário, é um caminho tortuoso e que exige estratégias consistentes de resistência e de aquilombamento, especialmente quando se é imigrante no Norte. Felizmente, não estamos sós. Apesar da falta de estatísticas oficiais sobre sua atual composição étnica, os ex-grandes impérios coloniais – como França, Inglaterra, Portugal e Espanha – recebem hoje fortes fluxos migratórios oriundos dos países que colonizaram, e parecem ter cada vez mais diversidade étnico-racial em suas populações. No entanto, a narrativa colonial e anti-imigrante ainda permanece viva por aqui. Uma parte significativa dessas sociedades não aceita as transformações na configuração populacional atual. Nossa existência aqui enquanto imigrantes ainda é muito rejeitada, desde a fila do supermercado até os debates no parlamento. Aqui na França, por exemplo, há atualmente um candidato de extrema-direita às eleições presidenciais de 2022 que tem como bandeira explícita a propagação de suas ideias racistas sobre as comunidades africanas imigrantes em solo francês.

Nesse cenário, é urgente fortalecer o combate à invisibilização e ao silenciamento ao qual nos submeteram enquanto “corpos coloniais”. As grandes mídias falam das comunidades imigrantes sempre na terceira pessoa. Raramente somos chamadas para nos expressar com nossas próprias palavras. Essa indignação, somada à tomada de consciência decolonial, fez nascer em mim o desejo de poder reverberar pelo mundo minha voz e as vozes de outras mulheres migrantes periféricas, para que deixemos de ser objeto e nos tornemos sujeitas de nossas histórias. Esse desejo, que hoje se materializa através do Femigrantes BR Podcast, é uma das minhas estratégias para construir quilombos e amplificar vozes da diáspora afro-brasileira. O Femigrantes BR é também uma iniciativa que busca contar nossas experiências da vida fora de maneira desromantizada, pois sabemos da importância de desconstruir o mito da vida perfeita no exterior – o qual já transformou muitos sonhos em pesadelos, chegando até a tornar muitas mulheres em vítimas de relações abusivas ou de tráfico de pessoas.

Contamos com nossos quilombos, seja dentro ou fora do Brasil, para fortalecer nosso movimento de tomada dos microfones, palcos e cúpulas do mundo. Seguiremos deslocando nossos corpos pretos pelos cinco continentes, contando e produzindo nossas próprias histórias, fazendo ecoar nossos sotaques estrangeiros para além de quaisquer fronteiras. Seguiremos nos aquilombando para consolidar nossa resistência diária, às vezes com dúvidas, nos interrogando sobre o destino de nossos percursos migratórios, porém cada vez mais na certeza de que abraçar nossas raízes africanas é o caminho para nossa libertação. Afinal, “nosso norte é o Sul”.

Lilian Moreira, afro-brasileira imigrante na França, idealizadora e host do Femigrantes BR, um podcast sobre migração e decolonialidade com mulheres migrantes pelo mundo.

Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião da Alma Preta Jornalismo.

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