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O dia seguinte ao 13 de maio: as lutas atuais pela verdadeira abolição

A falta de estrutura e de políticas que possibilitariam exercer direitos, ao longo dos anos, deu margem à continuidade da desigualdade racial no país; especialistas falam sobre as problemáticas ainda encontradas após 134 anos da assinatura da Lei Áurea

Imagem mostra três lideranças femininas em colagem. Da esquerda para a direita, Marielle Franco, Liderança do Candomblé na manifestação 'Ebó Coletivo' e a deputada estadual Erica Malunguinho

Foto: Ilustração: I'sis Almeida/Alma Preta Jornalismo com adaptações de imagens de Nego Júnior e Mídia Ninja

13 de maio de 2022

“Todos os casos de racismo e preconceito, sejam eles explícitos ou velados, hoje, são resquícios profundos da escravização. Temos que lembrar que sofremos, praticamente, quatrocentos anos de deste processo e que, após a ‘abolição’, no dia 13 de maio, o dia em que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, n.º 3.353, poucas foram as medidas tomadas para inserir a população negra na sociedade”, é o que diz a mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Clara Maria.

A falta de estruturas que possibilitam acessos, de acordo com a historiadora, só deu margem à desigualdade racial, impactando nas vivências contrastantes entre pessoas negras e brancas no país. Sem efeito efetivo, não só o dia 13 de maio, mas o dia seguinte, também é marcado pela continuidade da luta por direitos básicos.

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Nos 134 anos desde a assinatura, a historiadora reitera que a mentalidade de que a pessoa negra é “inferior” por sua raça não foi extinta, mas mutável ao passar dos anos. Para Clara, este tipo de discriminação foi acompanhando as transformações do tempo e se adaptando em nome do poder e de uma hegemonia que quer controlar a vida coletiva. 

Na busca de mudar o cenário e abrir portas para que as pautas do povo preto sejam visibilizadas e validadas – sendo maioria no país -, que constrói e integra a nação, lideranças políticas e movimentos populares que pautam questões relacionadas à raça ainda enfrentam as mazelas herdadas pelo período escravocrata. Hoje, frente às vulnerabilidades constatadas, estas organizações por direitos seguem na busca por transformações sociais e batalham, principalmente, contra o genocídio negro, contra a exclusão social e contra o racismo estrutural.

“Tivemos grandes ganhos quando demos continuidade ao que a história negra e os nossos líderes deixaram. Da década de 1950 para cá, reiteramos nossa luta para que sejamos reconhecidos e, principalmente, que podemos falar por nós, por sabermos as dificuldades que enfrentamos enquanto vivência e sobrevivência. Um dos principais ganhos que tivemos na luta por acessos foi, sobretudo, a Lei de Cotas. Um passo que responde aos anos de uma mentalidade segregadora e muito difícil, mas que segue. Prova disso são os dados, que constatam a crueldade disposta em diversos âmbitos e que só endossam a discriminação racial no país”, aponta a historiadora.

Racismo segue atuante, segundo números

Estatísticas comprovam que, apesar dos ganhos obtidos junto às articulações e suas pautas interseccionais, o Brasil ainda é um país em que o racismo impera. A discriminação racial, de acordo com os números, segue em crescente e atinge a população em diversas frentes, seja na saúde, na moradia, educação e até mesmo no direito à vida.

Sobre mercado de trabalho, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), negros representam 72,9% das pessoas sem carteira assinada no país, número de um total de 13,9 milhões de pessoas nessa situação. 

Ainda de acordo com o levantamento, 11,9% das pessoas sem empregos formais são pretos e 50,1%, pardos, dados que podem sofrer influência da autodeclaração nas entrevistas para formulação de estatística. 

Em relação aos números de encarceramento, negros correspondem a 66,7% dos 657,8 mil presos no Brasil em que há a informação da raça/cor disponível, somando 438 mil pessoas. Para cada não-negro cumprindo pena até 2019, duas pessoas negras estavam em situação de cárcere. Os dados são do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no início da semana pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). 

Em complemento, uma estimativa do IBGE ainda aponta que o percentual de negros encarcerados no Brasil é mais de dez pontos percentuais acima da representação dos autodeclarados negros – soma de pretos e padros – na sociedade (56,1%).

Já sobre o genocídio negro atual, uma das principais lutas travadas por organizações como a Coalizão, dados oficiais de mortes violentas e homicídios no Brasil, disponibilizados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), revelaram que 16.865 pessoas negras foram vítimas de mortes violentas entre os anos de 2018 e 2019. 

Neste levantamento, o agravante é que estas mortes foram contabilizadas por serem casos em que nem a polícia ou a justiça tivessem condições de determinar o motivo. Neste mesmo período, a alta das mortes violentas contra negros sem este entendimento foi de 47,3%, já entre a população não-negra, foi de 22,6%.

No ano passado, mais outra comprovação: um levantamento do Instituto Locomotiva em parceria com a Central Única das Favelas mostrou que a população brasileira reconhece que a cor da pele de uma pessoa faz diferença no tratamento que ela receberá da polícia e em suas chances de estudar e trabalhar. 

Ao todo, a pesquisa foi embasada por entrevistas feitas com 1.459 pessoas em todos os estados do país, além de respostas de outras 1.652 colhidas pela internet. Como resultado, 94% dos entrevistados responderam que seriam as pessoas negras e apenas 6% disseram que seriam as pessoas brancas as com mais chance de serem abordadas pela polícia com violência.

Leia também: 13 de maio não é dia de negro

Enfrentamento e os desafios das lideranças 

Frente às problemáticas raciais que perpassam por diversos setores, as lideranças negras tentam suprir a falta de representatividade em espaços de maior visibilidade e de diálogo direto ainda na atualidade. Para a historiadora Clara Maria, em resposta às estatísticas de vulnerabilidade que seguem uma crescente, se faz necessária que mais agentes da luta por direitos da população negra sejam formados. No entanto, a especialista aponta um dos maiores obstáculos para isso se tornar uma realidade: pessoas negras chegarem a posições de poder. 

“Acredito que é um dos primeiros obstáculos enfrentados, justamente sermos reconhecidos pelos demais como detentores de tais papéis. Por muitos anos, por ocuparem cargos marginalizados e subalternos, por falta de abertura da própria sociedade, para camadas da população, é difícil a aceitação de que podemos ocupar diversos lugares ou setores e, principalmente, sermos porta-vozes das nossas histórias e demandas. Infelizmente, contamos com uma população que acredita na tese de que nós, negros, não somos capazes de protagonizarmos nossas histórias, sejam elas no dia a dia, ou na luta pelos direitos que também são nossos”, reflete. 

Para Dandara Rudsan, pesquisadora e membra da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e da Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas (INNPD), a falta de reconhecimento e dos conflitos atuais protagonizados por pessoas negras é resquício da falta de ferramentas que não foram proporcionadas ao povo negro pós-abolição. 

“Nós tivemos uma falsa abolição, tanto é que o 13 de maio não é um dia de comemoração e, sim, de luta, para nós, um dia de resistência. O que a Princesa Isabel fez foi apenas assinar uma ‘ordem de despejo’ da população negra, que foi retirada das senzalas e colocada na rua sem nenhuma política pública, de empregabilidade, de moradia, saúde, entre várias outras demandas”, defende.

Dandara afirma que, atualmente, por sua atuação ativa junto aos movimentos afrocentrados, a agenda principal se pauta em políticas de reparação desde a época de escravização do povo negro. Ela aponta que, enquanto voz ativa por esta mudança de cenário, apesar do que diz a história e os anos de vulnerabilidade e luta por sobrevivência, os olhos da sociedade brasileira para as necessidades do povo negro carecem de sensibilidade. 

“Enxergo a sociedade que estamos inseridos, enquanto povo preto, como muito insensível ao que diz respeito ao processo de escravização, que se perpetua, até hoje, de novos modos, como vemos nos episódios de intolerância religiosa. Então, nós, hoje, enquanto lideranças, temos um desafio de sensibilizar esta população, criada sob bases e estruturas racistas. Nós precisamos enxergá-los de tal forma para reverter essa situação. Em segundo lugar, acredito que é necessário estabelecer diálogo com o poder público, para que se consiga reformas sob as diretrizes de uma política antirracista. Só assim nós conseguiremos estabelecer novas possibilidades de acesso”, propõe.

Ainda segundo a pesquisadora, é estratégico que a população negra ocupe espaços de poder e decisão, principalmente, dentro da esfera pública e na academia. 

“Não tem como falar de nós sem nós, de uma perspectiva com base no que a gente vivencia e reconhece no outro. Aprendemos, ainda na contemporaneidade, que, para sermos ouvidos, precisamos ocupar tais espaços. Às vezes, ocupando até de forma combativa, mas é nossa ferramenta para não só estarmos em tais espaços, mas para permanecermos e darmos continuidade, de geração em geração, à nossa luta”, finaliza.

Tratando de futuro e projeção sobre a continuidade de luta antirracista, Isa Sena, integrante da coordenação nacional do Levante Popular da Juventude – organização de jovens militantes -, aponta que os desafios não vão cessar, mas que a formação e educação tendem a proporcionar maior senso crítico em relação à discriminação.

“Os resquícios da escravização e pós-abolicionismo sucedem e estão presentes no cotidiano, principalmente, com jovens, crianças e mulheres negras, principais vítimas da violência e do genocídio, ou da falta de acesso à educação, algo básico, por exemplo. Ao meu ver, teremos que lidar por muito tempo com a discriminação racial, pelo racismo estruturar a sociedade capitalista que, assim como na história, lucra às custas da nossa vida, exterminando os mesmos corpos e exalrindo as mesmas pessoas dos mesmos espaços”, denuncia.

Sena ainda ressalta que o protagonismo da luta antirracista precisa ser feita por pessoas negras, mas que devem contar com a consciência e formação que não só o povo preto precisa cobrar por direitos e políticias de restituição. Para ela, os próximos passos contra a discriminação devem ser pautados em busca de um projeto de país que dialogue, verdadeiramente, com as necessidades da população negra.

“Enquanto juventude, negra, periférica, que integra movimento social, queremos ser referência para os nossos, voz dessa luta antirracista, para apontar para um projeto de país que, cada vez mais, sejamos prioridade e que as nossas interseccionalidades sejam vistas e levadas em conta. Só sendo porta-voz dessa luta é que nós conseguimos pautar um projeto que dialogue com as necessidades, para além da discriminação velada presente”, fianliza. 

Dez anos da Lei de Cotas 

Uma das maiores conquistas da atualidade sobre democratização de acesso e reparo à história da população negra do Brasil, a Lei de Cotas – Nº12.711/2012, neste ano, completa dez anos desde a sua promulgação. Resultado de anos de luta do movimento negro, juntamento às articulações estudantis, foi responsável pela alteração do cenário encontrado anteriormente nas instituições de ensino superior. 

De acordo com um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), entre os anos de 2012 e 2016, a lei foi responsável por um maior número de pretos, pardos e indígenas nas universidade, formando uma curva crescente nas estatísticas de educação no país. Nestes anos, o aumento foi de 39%, segundo os dados coletados. 

Pronta para ser votada e tramitando em caráter de urgência na Câmara dos Deputados, lideranças e movimentos que pautam a raça estão atentos a possíveis recursos ou mudanças que possam gerar qualquer conflito sob uma das maiores conquistas dos últimos anos da lei de cotas. 

Em comum pauta entre as articulações racializadas, o que se pede é uma mobilização ao debate sobre a política de cotas para não serem perdidos os avanços em relação à educação e que a lei seja base para outros processos seletivos, expandindo demais ações afirmativas.

No Recife, vereadores cobram cotas raciais em todas as seleções de cargos públicos. No ano em que se completa uma década da aprovação da política de cotas, os parlamentares da capital querem estender a reserva de vagas para outros tipos de seleções. O objetivo é tentar equalizar racialmente a ocupação de cargos dentro da administração pública; um avanço da presença de pessoas negras em espaços decisivos.

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