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‘Além de matar, a polícia criminaliza a história dos nossos filhos’, diz ativista de movimento de mães negras

15 de julho de 2020

Movimentos organizados por familiares de jovens mortos fazem frente à letalidade do Estado; rede criou  campanha para arrecadar fundos para primeiro encontro nacional marcado para outubro

Texto: Juca Guimarães I Edição: Nataly Simões I Imagem: Alma Preta

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A dor de perder um filho jovem, com todo um futuro pela frente, morto pelo Estado foi o combustível que inflamou dezenas de mães a criarem movimentos de resistência ao genocídio da população negra e periférica no Brasil.

“Depois que o meu filho foi morto eu fiquei um ano reclusa. Cada mãe tem o seu tempo para entrar na luta em algum movimento social”, diz Nívia Raposo, integrante da Rede de Mães e Familiares da Baixada Vítimas de Violência do Estado e da Iniciativa Direito, Memória e Justiça Racial da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.

Nívia é filha de mãe de santo e cresceu falando algumas frases em iorubá. Os filhos foram criados do mesmo modo. O filho Rodrigo era militar e foi assassinado em outubro de 2015, aos 19 anos. O jovem havia se recusado a pagar uma quantia semanal para policiais militares que faziam parte de uma milícia na região. “Ele era muito querido por todos. Os amigos mandam mensagens e fazem homenagens na página do Facebook dele até hoje. Ele gostava de plantar girassóis”, relembra a mãe e ativista.

A associação de mães da baixada surgiu em 2005 após a chacina de 29 pessoas na região. “Ao longo do tempo os participantes foram se afastando. Tinha também o fórum Reage Baixada com a participação de várias instituições. Depois surgiu o fórum Grita Baixada e a rede se consolidou para buscar ajuda jurídica e psicossocial aos familiares das vítimas de violência”, conta Nívia, que entrou para o movimento e se tornou voluntária no Centro dos Direitos Humanos, em 2016.

Em janeiro de 2020, completou seis anos que Kaká Silveira perdeu o filho Tiago, em Belo Horizonte, Minas Gerais. “Até hoje o Ministério Público e o delegado não sabem o que aconteceu, e ninguém faz questão de saber”, afirma.

No ano seguinte a morte do filho, encontrado em uma cena de suposto suicídio dentro de uma cela, Kaká participou da Semana das Vítimas de Violência, em São Paulo, e do ato na Praça da Sé, onde conheceu o movimento Mães de Maio. “Eu tinha um grito entalado, tinha um nó cravado na minha garganta. Lutar sozinha é muito difícil”, diz a mãe, que criou o grupo de mães em Minas. “Agora estamos tentando fazer uma Semana de Vítimas da Violência em Minas apoiada pela Rede de Mães de Luta”, explica Kaká.

Tiago foi assassinado no dia que completou 31 anos de idade. “Ele não tinha perfil suicida. Eu sei que ele não se matou. Espero que a rede de mães cresça fortalecida. Não gostaria que uma outra mãe passasse pelo o que eu passei sozinha. Percorri uma longa estrada sozinha”, diz Kaká.

‘Sonho com uma polícia sem preconceito racial’

Na Zona Leste de São Paulo, onde os índices de violência também são expressivos, outro movimento de mães foi criado no final de 2016. “Em 2015 eu passei pela pior dor que uma mãe pode sentir. É impotência e dor”, conta Marcia Conte, coordenadora do grupo.

O filho Peterson Conte, conhecido como Renatinho, de 21 anos, era o mais novo de cinco. “Ele foi abordado, torturado e morto por quatro policiais da Força Tática”, diz Marcia, que mora em São Miguel Paulista, no Extremo Leste da capital.

Segundo Márcia, a sede por Justiça a fez perder o medo e correr atrás de provas. Dessa forma, ela conheceu Débora Maria Silva, criadora do movimento Mães de Maio. “Foi uma referência de força e resistência para que eu continuasse a minha luta. Foi uma unificação de luto e luta por todos os jovens mortos”, explica.

“Além de matar, a polícia criminaliza a história dos nossos filhos. Até hoje não consegui uma audiência para os policiais que mataram o meu filho. Sonho com uma polícia comunitária sem preconceito racial e que deixem os nossos jovens viverem”, compartilha Márcia.

A potência da rede de mães negras

Uma caminhada de familiares de jovens vítimas de violência, que exigia o fim dos abusos praticados pela policia em Goiás  deu origem ao  Comitê contra a Violência, em 2004. A rede foi se fortalencedo e o movimento de Mães de Maio no Cerrado surgiu anos depois. Uma das mães, chamada Graça, tinha um filho de 12 anos que desapareceu após uma abordagem policial há 15 anos. “Ela nunca desistiu e agora o movimento conseguiu a certidão de óbito do Murillo com o juiz deixando claro que ele foi assassinado pelo Estado de Goiás. Foi uma grande vitória. Estamos resistindo, lutando e se cuidando”, comemora Eronildes Nascimento. O marido dela, Pedro foi assassinado aos 24 anos no Massacre Parque Oeste, durante um despejo judicial ocorrido em fevereiro de 2004.

A polícia atacou a ocupação Sonho Real por quase duas horas com tiros e bombas contra 14 mil pessoas. “Até hoje tenho pesadelos com as bombas explodindo”, revela Eronildes.

No final de 2014, Rute Fiuza passou a ir todos os dias ao Instituto Médico Legal (IML) de Salvador atrás do corpo do filho Davi. O garoto foi levado por policiais da 49ª cia de Polícia após uma abordagem no bairro de São Cristóvão. “Ele é um desaparecido forçado desde então. Um mês depois, entrei em contato com a Anistia Internacional com mais seis mães na mesma situação. Então começamos a nos reunir com mães do Rio e de São Paulo. É uma luta contra a burocracia, que está aí para fazer a gente desistir”, explica.

No caso de Davi, sete policiais foram indiciados e serão julgados por uma corte de policiais. “Ele era o meu único filho homem, meu caçula. Eu tenho recebido apoio daqui do Brasil e de fora, então criei o Mães de Maio do Nordeste. Não há nada além de lutar. Quando a gente entra nessa luta é para que outras mães não passem por isso”, avalia Rute, que também faz parte da Coalizão Negra por Direitos.

Em outubro de 2020, está marcado um encontro da rede em Salvador, na Bahia, com mães da Baixada Santista, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, do Cerrado e de estados do Nordeste. “A forma que nós encontramos para nos manter em pé e sempre estarmos juntas”, salienta Rute.

Os grupos criaram uma vakinha online para arrecadar fundos a fim de financiar o primeiro encontro da rede em outubro. A meta é conseguir R$ 25 mil para viabilizar o projeto.

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