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Beth Beli: ‘Minha vida é meu compromisso com as minhas ancestrais’

14 de julho de 2020

Para chegar aos dias atuais, a maestra do bloco afro Ilú Obá de Min conta que passou por muita construção interna e alguns caminhos decisivos tiveram que ser traçados

Texto: Livia Martins | Edição: Nataly Simões | Ilustração: Isabela Alves

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Beth Beli comanda um exército de 450 mulheres em São Paulo. As suas armas são os tambores, o canto e a força da mulher negra. Isso tudo compõe o Ilú Obá De Min, bloco afro-brasileiro fundado em 2004 por ela, Adriana Aragão e Girlei Miranda a fim de promover educação, cultura e arte negra.

“Minha vida é meu compromisso com as minhas ancestrais. Se eu estou viva é porque alguém resistiu na travessia do navio negreiro. É isso que me dá força pra ser Beth Beli”, afirma a musicista, presidente do grupo, cientista social e arte-educadora.

Para chegar na posição dos dias atuais, muita construção interna e alguns caminhos tiveram que ser traçados por Elisabeth Belisário.

O plantar de uma semente

Beth nasceu e cresceu no distrito da Brasilândia, na Zona Norte da capital paulista. Ela veio de uma família rígida e seu pai era policial da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar, a Rota. No começo, ele resistiu para entender as vontades e o talento que a filha tinha para música e, em especial, para tocar tambor.

“Meu pai falava que eu tinha que ser melhor (que outras pessoas), mas não entendia o motivo ou que ele queria dizer. Mas, compreendi conforme fui crescendo e vivenciando outras realidades fora da periferia”, relembra.

As influências e o gosto musical começaram no bairro de infância, mais precisamente, nos ensaios da escola de samba Sociedade Rosas de Ouro. No local, ela conheceu Girlei Miranda. No final da década de 1980, em parceria com outros amigos artistas, elas criaram a Banda-Lá, uma união de percussionistas e bailarinos negros com o objetivo de refletir e disseminar a cultura africana por meio de dança, arte e atividades educativas. “Na banda, eu comecei tocando xequerê, pois diziam que ainda não era o momento de tocar tambor”, afirma Beth.

Alguns integrantes da Banda-Lá ingressaram no ensino superior e foram vivenciar (e ocupar) outras realidades. A organização artística acabou, depois de uma década de existência. Com a experiência que teve, Beth persistiu em seu sonhos e outros ingredientes foram lapidando sua carreira.

No início dos anos 1990, ela participou do bloco Ori-Axé, grupo afro composto por mulheres e homens e organizado na Bela Vista, bairro da região central de São Paulo. Depois, foi convidada para integrar algumas companhias de teatro como percussionista e participou de várias turnês mundiais. Mas, o chamado do tambor voltou a ressoar em sua vida.

Retomada

“Muitas pessoas falavam que eu deveria organizar novamente um bloco afro e com o tambor como protagonista”, afirma. Em 2002, Beth organizou uma pequena oficina de percussão com as antigas participantes do bloco Ori-Axé.

A musicista ampliou a ideia e aceitou o desafio. Beth Beli convocou Xangô e Iansã para regerem energeticamente o novo grupo de promoção a cultura negra e empoderamento feminino. “O nome Ilú Obá de Min é uma licença poética e significa mulheres que tocam para Xangô. Se é uma forma de justiça social que estava me propondo fazer, então que fosse pela regência do orixá da justiça”, explica Beth.

“Os dois orixás são conhecidos como o ‘casal dendê, a união l mais quente do Orun (céu ou mundo espiritual, em yorubá). Não tinha como dar errado”, acrescenta.

Desde então, o coletivo preserva, ressalta e divulga a cultura negra e brasileira por meio de instrumentos, cantos, vestimentas de orixás, toques e dança. Beth introduz tradições musicais do candomblé, religião que é iniciada, e do afoxé. Maracatu, jongo, ciranda e outros ritmos frutos da diáspora africana no Brasil também fazem parte do repertório do Ilú.

O grupo já se apresentou em países da América do Sul e fez parte da gravação de músicas do álbum “Deus é Mulher”, de Elza Soares. Lançado em 2018, Beth Beli e outras participantes do grupo participaram das canções “Banho” e “Dentro de Cada Um”.

Todos os anos, o grupo escolhe uma mulher negra para ser homenageada pelo bloco durante o carnaval de rua de São Paulo. Pessoas em perna de pau, tradição oriunda de tribos ancestrais do Mali e Togo, também compõem esse cenário. Personalidades como a rainha Nzinga, Nega Duda, Lia de Itamaracá, Maria Carolina de Jesus, Leci Brandão, Raquel Trindade e Elza Soares já foram temas do grupo.

O bloco cresce a cada ano e outras ações também são desempenhadas, como o Ilú na Mesa, projeto educativo que promove debates e palestras entre a tradição oral e pesquisadores acadêmicos, e a Tenda Afro-Lúdica, movimento que trabalha em escolas a história e cultura africana e afro-brasileira, cumprindo a obrigatoriedade desse tipo da atividade em instituições de ensino descritas na Lei nº 10.639/2003.

Sob o olhar dela

Beth é exigente com as suas ações, pois sabe da importância de seus atos para o grupo. “Eu sou filha de Oxóssi,o orixá caçador e ligado à fartura, e, no meu caso, ele carrega somente uma flecha. Em tudo que eu faço, tenho que ser muito certeira. É como se fosse uma única chance de acertar”, pondera.

Certeira, a mamãe Beth também foi quando fez o parto sozinha e em casa de sua filha Niara. “Geneticamente, ela não tem nada meu. Mas, energicamente somos muito parecidas”, conta Beth.

Quando olha para os movimentos negros da atualidade, ela avalia que eles seguem ativos e atentos, resultado, principalmente, do protagonismo feminino. “Se você olhar para pirâmide social, lá está a mulher negra na base. Temos muito ainda o que lutar, mas ver tantas mulheres em ação, me faz crer que eu também estou no caminho certo”, pontua artista.

Ainda com o olhar sob a sociedade, a mestra do ritmo do Ilú comenta sobre o machismo e o patriarcado. “Eu acho que os homens devem se reunir cada vez mais para tratar esse mal. Qual foi o momento que eles esqueceram que foram gerados no ventre de uma mulher? É essencial buscar na memória afetiva essa situação para iniciarem as reflexões sobre o assunto”, afirma Beth.

A energia de Iansã, orixá de quem também é filha no candomblé, conduz o que vemos em Beth: um espírito guerreiro, que comanda um grande exército e sabe usar a força de um búfalo e a sutileza de uma borboleta, na mesma proporção e no momento certo. Na mitologia africana, Iansã foi uma mulher que foi pra guerra e sem medo (por isso a força animal), mas também soube o momento certo de voar para buscar novos caminhos de aprendizado.

“O mundo não é mais da hegemonia branca. Eles falharam no tratado de perpetuação eurocêntrica, deixa com a gente agora. As mulheres negras estão avançando e isso só vai aumentar. Não tem mais volta!”, avisa Beth Beli.

No mês da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha, o Alma Preta traz uma série de reportagens especiais que contam a história de mulheres inspiradoras.

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