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Com sequelas irreversíveis, pedestres são as principais vítimas de acidentes provocados por ônibus

Invisibilizadas pela frieza das estatísticas, vítimas atropeladas por ônibus sofrem com sequelas irreversíveis; Anunciada perdeu a perna e luta na justiça para manter auxílio financeiro que a empresa de ônibus tenta revogar 

Texto: Lenne Ferreira | Edição: Nadine Nascimento | Imagens: Débora Oliveira 

Anunciada

5 de outubro de 2021

Mesmo em um feriado de 7 de setembro, Maria Anunciada acordou cedo e saiu de casa para mais um dia de trabalho. A pernambucana, mãe de um filho, se despediu do companheiro e partiu para cumprir expediente na casa de festas onde trabalhava desempenhando funções de limpeza. Há dois anos, a moradora do bairro do Coque, Zona Sul do Recife, não imaginava que aquela seria a última vez que conseguiria caminhar até o ponto de ônibus. Por volta das 7h, enquanto aguardava o coletivo na integração de Joana Bezerra, Anunciada foi atingida por um veículo da empresa Rodotur. O acidente custou uma das pernas da doméstica que, desde então, teve sua vida impactada por uma nova rotina que envolve dores constantes, exames hospitalares, medicamentos, além da instabilidade financeira e emocional.

O fato de estar parada na calçada da integração não impediu que o veículo atingisse a doméstica, que foi socorrida para o Hospital da Restauração, onde permaneceu internada por três meses com fratura na bacia e da tíbia, além de sofrer uma parada cardíaca. A sequela mais marcante e irreversível foi a perda da perna esquerda, o que comprometeu totalmente a mobilidade de Anunciada. “Por pouco não fiquei paraplégica”, lembra ela, que ainda sofreu com uma infecção e precisou voltar pro hospital, onde passou mais três meses.

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Ao todo, Anunciada ficou seis meses hospitalizada sem contar com qualquer assistência. Um enfermeiro, que acompanhou todo o processo de recuperação, indicou os advogados que até hoje acompanham o caso, Thiago Melo e Rodrigo Melo (Alves & Melo Advogados Associados). Por meio de liminar, Thiago conseguiu o auxílio de um salário mínimo para a empregada. O valor, no entanto, não é suficiente para cobrir todas despesas de Anunciada, que não pode mais trabalhar e ainda aguarda por mais uma cirurgia. A demora já compromete a perna direita, que precisa suportar todo peso do corpo. “Quando conheci Aparecida, a situação era muito difícil. A tentativa da empresa foi responsabilizar a vítima por meio de várias manobras, mas o juiz determinou o pagamento de auxílio. O não cumprimento geraria multa de R$5 mil por mês para a empresa”, contou.

Aparecida exames

Casos de atropelamentos envolvendo ônibus não são eventuais na capital pernambucana. Basta uma pesquisa no Google para se ter noção que o cenário é mais grave do que a atenção que recebe. Em fevereiro deste ano, por exemplo, um idoso morreu depois de ser atropelado por um ônibus BRT, no bairro do Cordeiro, na Zona Oeste do Recife. Em agosto passado, outro homem de 48 anos foi atropelado por um micro-ônibus na BR-232, no bairro do Curado, também na Zona Oeste. Na mesma região, em abril passado, uma mulher perdeu a vida depois de ser atingida por um coletivo. São centenas de vítimas fatais e não fatais todos os anos.

Considerando a frota de ônibus que circula no Recife, atualmente formada por aproximadamente 3000 veículos, não é de se admirar o número de acidentes que este modal provoca.  Em Pernambuco, dados da  Companhia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU) oferecem um panorama sobre este cenário, que tem sido quantificado desde junho de 2015. 

A reportagem avaliou os dados dos anos de 2019, 2020 e 2021. De acordo com as estatísticas de 2019, foram registrados 1846 acidentes causados por ônibus, o que resultou em 2588 vítimas não fatais. Já em 2020, ano da pandemia, quando houve menor circulação das frotas e de pessoas devido às medidas de contenção da Covid-19, o número de acidentes caiu para 500. Apesar da redução, o número de vítimas chegou a 2072 pessoas. Até agora, em 2021, foram 62 acidentes que já deixaram 1144 pessoas feridas.

Dentre as informações disponíveis nas estatísticas, é possível notar que, entre as vítimas, estão ciclistas ou pedestres, pessoas comuns, que saíram de suas casas para estudar ou trabalhar como Anunciada. Para quem pedala, o risco é grande. “Ser ciclista nessa cidade é circular constantemente com o risco iminente de ser atropelado por um ônibus, por um carro ou uma moto. A sensação é de total insegurança. No caso, de uma pessoa negra pedalando outras dinâmicas vão interpelar esse sujeito”, comenta Gilbert Araújo, coordenador da Ameciclo, graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco com pesquisas sobre racismo, subjetividade negra e anticolonialismo, além de autor de “Bicicleta preta”. 

Para Gilbert, políticas públicas são essenciais para reduzir acidentes e garantir segurança para quem circula nas vias. “Nos últimos anos, tentamos implementar o Plano Diretor Cicloviário, que é um plano norteador de execução de obras públicas visando a integração das estruturas cicloviárias da cidade. Quando falamos de estrutura não é somente sobre ciclofaixa, é sobre praças públicas, corredores , sinalização, vias que devem e podem ser retomadas para o caminhar das pessoas. Muitas frentes podem ser debatidas para evitar tantas mortes no trânsito”, completa. 

Procurados, o Consórcio Grande Recife, que reúne 17 empresas operadoras privadas e uma pública (CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos) e possui 356 linhas de ônibus e duas de metrô que fazem o transporte de passageiros no Recife e Região Metropolitana, informou que realiza vistorias periódicas em todos os veículos que compõem a frota. Segundo a assessoria de imprensa, só pode operar ônibus que possua o seu Certificado de Vistoria em dia, trabalho realizado pela Gerência de Fiscalização.

Ainda de acordo com o Grande Recife, em relação à urbanidade dos motoristas durante o exercício da profissão, “é obrigação da empresa operadora promover a capacitação e reciclagem de seus colaboradores”. O Consórcio informou que realiza a campanha “E se fosse você?” em terminais integrados e garagens de empresas com o objetivo de sensibilizar usuários, motoristas e cobradores para o respeito a idosos e pessoas com deficiência que utilizam o transporte público na RMR. A iniciativa está suspensa durante a pandemia para evitar aglomerações. 

Falta de transparência dos dados dificulta fiscalização das empresas

Apesar de quantificar o número de acidentes envolvendo ônibus, no Recife, a CTTU não revela os nomes das empresas que protagonizam os casos. Procurados pela reportagem, a autarquia informou que não possuía os dados e indicou o Portal da Transparência cujo e-mail disponível no site deu erro. A reportagem também tentou entrar em contato via telefone, mas não teve sucesso. 

Para o Instituto Sou da Paz, diferentes fatores podem dificultar o acesso a dados de interesse público como a falta de sistemas estruturados que possibilitem a coleta e o tratamento de informações a partir de seus registros administrativos. Há ainda a falta de interesse de algumas instituições em fornecer dados desfavoráveis para suas atuações. “A falta de interesse em dar transparência a determinados temas (seja por sensibilidade política do tema ou outro tipo de interesse), mas com justificativas para a não resposta que podem se basear em requisitos legais, por exemplo a restrição do sigilo, atrasando assim ou mesmo impossibilitando o acesso à informação”. 

Uma forma de acessar informações de interesse público é via Lei de Acesso à Informação (LAI), que foi garantida pela Constituição Federal, de 1988. O Instituto da Paz defende o uso do instrumento como ferramenta essencial e que precisa ser acionada como forma de pressionar os órgãos públicos a gerar dados e, assim, criar ações de enfrentamento a problemas estruturais. “Usar a LAI rigorosamente e repetidamente para que, no caso de não resposta em razão de falta de sistemas estruturados para produção de dados, o órgão seja incentivado a se organizar para produzir as informações”, pontua a entidade. 

Em âmbito nacional, um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que o Brasil perdeu 479.857 vidas no trânsito entre 2007 e 2018. O custo desses acidentes chegou a  R$ 1,584 trilhão, segundo o estudo Impactos Socioeconômicos dos Acidentes de Transporte divulgado pelo A Análise, em parceria com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). O levantamento utiliza dados de mortalidade do Datasus, do Ministério da Saúde – que inclui internações e reembolso de gastos. 

Em 2019, o Relatório Anual do Seguro DPVAT, que assegura a indenização de danos pessoais causados por veículos automotores, mostrou que os acidentes com ônibus também custam caro. Só em 2018, foram pagas 5.748 indenizações por ocorrências envolvendo o veículo, além de micro-ônibus e vans, em todo o país. Na maior parte dos casos, as vítimas eram pedestres. São Paulo liderou a lista de estados com maior número de pagamentos, somando 20% dos pagamentos de indenização envolvendo o transporte coletivo (1.151 no total). Minas Gerais e Rio de Janeiro aparecem em seguida, com 838 e 801 indenizações, respectivamente.

Do total de vítimas de ocorrências com ônibus, 1.179 foram fatais. Mais de 50% ficaram com sequelas definitivas. O tipo de cobertura também prevalece entre os pedestres. Das 2.871 pessoas que se deslocavam a pé quando foram atingidas por um coletivo, 1.589 ficaram com algum tipo de invalidez permanente. Além disso, 827 benefícios foram pagos para casos com vítimas fatais, enquanto 455 vítimas receberam reembolso de despesas médicas e suplementares.

O relatório de 2020 mostrou que só o Nordeste contabilizou 93.851 mil indenizações e que os ônibus foram responsáveis por deixar 2.205 com invalidez permanente. Anunciada, que vive numa casa pequena com seu companheiro, se encaixa no grupo de sequelas irreversíveis. O valor que recebeu do DPVAT ajudou na compra de uma cadeira de rodas, que já precisa ser trocada. Agora, ela teme perder a pensão temporária que a ajuda a manter o mínimo para sobreviver. 

“Sem auxílio, ela corre o risco de ficar em situação de miséria”

Aparecida cadeira de rodas

Anunciada mora com o companheiro, José Carlos, que é quem dá o suporte nos dias em que precisava se locomover para o hospital. Recentemente, ele também sofreu uma fratura ao tentar ajudar a esposa sair da cadeira. José caiu e fraturou o femur e também ele está com dificuldade de se locomover. “Me desiquilibrei e caí e agora tá mais difícil de ajudar ela no dia a dia”, comenta ele, que já tem 54 anos e está desempregado. Mãe de um filho, Anunciada passa a maior parte do tempo em casa porque no local onde mora não tem acesso a rampas que facilitem a sua lomocomoção. “É muito ruim andar por aí porque as ruas não estão preparadas para cadeirantes”, pontua ela, que muitas vezes deixa de pegar ônibus, na mesma integração onde foi atropelada, por que o elevador para cadeirantes está quebrado. 

O advogado Thiago Melo observa que a falta de auxílio pode colocar Anunciada em total condição de miséria. “Hoje, o processo está no Superior Tribunal de Justiça aguardando a análise de um recurso especial impetrado pela empresa de ônibus para anular o pagamento do auxílio. O juiz de 1º instância já negou, agora, é esperar o STJ”, atualiza o advogado Thiago Melo. A reportagem tentou, insistentemente, um retorno da Conorte, consórcio da Rodotur (responsável pelo ônibus que atingiu Anunciada), mas não obteve retorno. 

Além do risco de perder a única ajuda financeira que possibilita o mínimo para sobreviver dentro de um contexto social agravado pela pandemia, Anunciada ainda pode perder a perna esquerda, que está comprometida. “Eu perdi a minha liberdade de ir e vir”, desabafa ela, que precisa se arrastar pelo chão para poder cumprir atividades básicas dentro de casa. Seu maior desejo é comprar uma prótese “igual a de Roberto Carlos”, mas, de acordo com suas prórias pesquisas, o equipamento custa R$100 mil. “Eu teria que trabalhar muito para comprar, mas nao tenho como trabalhar”. 

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