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Mulheres negras mostram como é possível a prática do Bem Viver na moda

Com o consumo desenfreado, ativistas têm levantado discussões sobre a relação da moda e do Bem Viver pela perspectiva de saberes ancestrais
Ilustração de três mulheres negras, uma com a roupa na cor laranja, outra colorida e outra neutra. Em volta delas, há as palavras bem viver e moda.

Foto: @sweetilustra/Alma Preta

21 de novembro de 2023

Com o impulsionamento das chamadas “fast fashion” (moda rápida, em tradução livre), o consumo desenfreado, o reforço das desigualdades sociais e a exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão têm levantado discussões sobre se pensar o campo da moda a partir de outras perspectivas, a exemplo do Bem Viver, conceito que propõe uma nova forma de organização social baseada em saberes ancestrais de comunidades tradicionais.

Considerada como a segunda indústria mais poluente do mundo, o setor têxtil é responsável pela emissão de cerca de 1,2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono por ano, segundo dados do Greenpeace, o que gera impactos desde a sua produção até o seu descarte.

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O conceito do Bem Viver, originado a partir das experiências de indígenas e andinos, se traduz como uma prática coletiva oriunda dos conhecimentos de povos originários, que possuem dentre os seus pilares os valores comunitários, a preservação da natureza como detentora de direitos, a contraposição ao capitalismo, entre outros.

É com base no Bem Viver na Moda que mulheres do quilombo Maria Joaquina, no Cabo Frio (RJ), se mobilizaram na construção do seu primeiro ateliê, onde produzem peças idealizadas e confeccionadas de forma coletiva.

Pelo segundo ano consecutivo, o quilombo realiza o desfile “Combatendo o Racismo com Beleza”, em alusão ao Novembro Negro. Na ocasião, são apresentadas peças produzidas a partir da argila, bolsas, pochetes e roupas que têm como proposta a diversidade de corpos.

Liderança comunitária no quilombo e coordenadora nacional da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ-RJ), Rejane Oliveira conta que a moda e a costura passaram a ser introduzidas no quilombo durante o período da pandemia, quando as mulheres resolveram produzir máscaras de pano para distribuir nas comunidades quilombolas.

À Alma Preta Jornalismo, Rejane comenta que toda a atividade é feita de forma coletiva e o dinheiro vendido com as peças é dividido entre as quilombolas. Ela também destaca que a iniciativa tem auxiliado na empregabilidade e sustento das famílias sem precisar se deslocar do quilombo.

“O bem viver é garantir o que você tem. É garantir que você pode ser sustentado sem prejudicar o meio ambiente. Dentro do projeto de costura eu trabalhei com mulheres que estavam sofrendo, passando por depressão, por ansiedade, e ele foi algo que melhorou a vida das pessoas ao longo do tempo porque aqui o mercado de trabalho é escasso. É uma cidade turística, uma cidade racista, então o nosso projeto abre espaço para mulheres de todas as idades”, explica a líder quilombola.

Rejane Oliveira é líder comunitária no quilombo Maria Joaquina, localizado em Cabo Frio (RJ), e integra a CONAQ-RJ
Rejane Oliveira é líder comunitária no quilombo Maria Joaquina, localizado em Cabo Frio (RJ). Foto: Jessica Cândido/IBGE Notícias

Rejane agora planeja abrir uma cooperativa como forma de ampliar a atuação na moda coletiva para outros quilombos da região.

“É um espaço que ainda tem que ser conquistado. Temos relato no quilombo de pessoas que eram escravizadas porque a moda também traz um processo escravo quando você trabalha para uma grande empresa de moda. Tem gente que vira a noite, produz a peça, coloca etiquetas de marcas famosas e não é reconhecida”, pontua.

O Bem Viver e mulheres negras

Considerado um dos estudiosos sobre o Bem Viver, o pensador e ativista equatoriano Alberto Acosta destaca no livro “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos” que apesar de parecer ser limitado às experiências andinas e amazônicas, o conceito também dialoga com inúmeras comunidades, culturas e ideologias que tinham a coletividade e a convivência com a natureza como um de seus pilares, como a filosofia Ubuntu, da África do Sul, e o Teko Porã, dos povos guarani no Brasil.

No Brasil, a jornalista e ativista Juliana Gonçalves, mestra em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo USP, nvestigou como o conceito dialoga com as experiências das mulheres negras.

Em sua dissertação de mestrado, intitulada “O Bem Viver em Narrativas de Mulheres Negras“, Juliana resgata a trajetória histórica do início desse diálogo no país através da escritora e ativista Nilma Bentes, uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e umas das precursoras do Bem Viver no Brasil.

Foi por meio da atuação de Nilma Bentes que o Bem Viver passou a ser introduzido na Marcha das Mulheres Negras, em 2015, que tinha como temas o combate ao racismo, à violência e pelo bem viver como nova utopia.

“Quando a gente vai olhar a organização política de mulheres negras ao longo da história, a gente vê que as mulheres negras sempre praticaram muitos dos pilares do bem viver, embora muitas vezes não com esse nome, como por exemplo em ações coletivas, ações de cuidado e autocuidado conosco e com outros, pensar formas de solucionar problemas sociais que não passe necessariamente pelo ordenamento do dinheiro, incentivar outras formas de economia”, exemplifica Juliana, que também integra a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.

A jornalista e mestra em Bem Viver, Juliana Gonçalves, investigou como o conceito dialoga com as experiências das mulheres negras. Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação da Revista AzMina

Mestra em Bem Viver, Juliana Gonçalves destaca que o conceito, enquanto chave analítica, pode ser aplicado e experienciado em todas as relações, inclusive na moda.

“Quando a gente pensa na entrada dessas comunidades dentro do mercado da moda é importante pensar como entra e se entra também a partir de uma valorização ou de uma folclorização. Quando a gente entende que esse conhecimento tem um valor muito grande e que pode, sim, ser comparado ao conhecimento e às técnicas colocadas, por exemplo, na alta costura, e a gente não traz uma relação hierarquizada nesses conhecimentos e sim de complementaridade, a gente também está agindo de forma como Bem Viver”, afirma.

‘Modativismo’

Pioneira na criação da primeira disciplina sobre Moda e Ativismo no Brasil, a designer de moda, artista e criadora do projeto e do conceito “Modativismo”, Carol Barreto, trabalha e investiga a relação entre moda e os ativismos feministas e antirracistas há mais de dez anos.

Natural do Recôncavo baiano e docente no departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Carol conta que decidiu construir o “Modativismo” ao perceber que precisava incluir outras narrativas nesse campo, especialmente os conhecimentos produzidos por comunidades tradicionais.

“É assim que nasce o Modativismo: de um entendimento de que nada daquilo que estava disponível para produção do conhecimento da área de moda me servia, me entendendo como uma mulher negra, do recôncavo baiano, com toda ancestralidade que trago na minha trajetória. A partir desse rompimento crítico que eu começo a estudar design com a intenção de entender outras formas de execução teórico-prática”, comenta.

Carol Barreto é designer de moda, artista, professora da UFBA e criadora do projeto e do conceito 'Modativismo'
Carol Barreto é designer de moda, artista, professora da UFBA e criadora do projeto e do conceito “Modativismo”. Foto: Divulgação

A professora também analisa que as produções feitas por comunidades tradicionais perpassam por um processo de centralidade cuja linguagem de existência se relaciona com a aparência.

“Numa comunidade indígena a gente está falando também sobre linguagem. A gente nem pode falar sobre moda, acaba sendo uma ofensa. A gente está falando sobre produção de objetos vestíveis que respondem a uma tradição e é diferente da indústria da moda que se apropria de vários significados, que nasce no contexto de uma cultura e comercializa de maneira a destruir aquele campo de significação”, destaca.

“Eu acho que a questão central é: essas pessoas sempre enxergaram, sempre produziram objetos vestíveis à medida da maneira como honram a sua ancestralidade, a sua relação com a natureza, com a sua própria comunidade, com as suas corporalidades, que é aquilo que as pessoas ocidentalizadas, colonizadas, precisam aprender”, complementa Carol.

Fórum Modativismo

Até o dia 23 de novembro acontece o primeiro Fórum Internacional Modativismo em Salvador (BA). Com a presença de artistas, ativistas, lideranças do movimento social organizado, pessoas pesquisadoras e outras personalidades, o evento irá abordar debates para além das barreiras acadêmicas e que relacionam a moda com Aparência, Corporalidade, Racismo, Sexismo, Sexualidades e outras matrizes produtoras das desigualdades.

O evento é resultado da primeira disciplina sobre Moda e Ativismo no Brasil, intitulada “Modativismo: Processos Criativos Decoloniais”, e irá reunir convidadas de Salvador, Nigéria, Ilha de Maré (BA), Nova York (EUA), Berlim, entre outras, como forma de ampliar o protagonismo de mulheres negras no campo da moda e em suas diversas vertentes.

“É exatamente a partir dessa noção de que a indústria da moda produz adoecimento – e é feita para isso – é que nós, pessoas negras, precisamos entender que produção de imagem é produção de linguagem, de discurso, e é produção de uma sociedade”, comenta a organizadora e criadora do conceito e projeto “Modativismo”, Carol Barreto.

O Fórum Internacional Modativismo será realizado no Teatro do Goethe Institut Salvador e no auditório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A programação pode ser consultada no perfil do Fórum no Instagram.

MA’AT O Bem Viver Na Consciência Negra. Este conteúdo faz parte de uma série baseada no Bem Viver, movimento baseado nos conhecimentos ancestrais, colaborativismo e equilíbrio ambiental. Uma forma de repensar a exploração do trabalho e a fruição da vida.

Leia também: Sabor que alimenta a alma: como a comida fortalece os laços afetivos da comunidade negra?

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  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

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