Na última quinta-feira (14), uma servidora negra foi exonerada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) após a justiça desvalidar a sua entrada – há três anos – pelo sistema de cota racial. O comunicado, que surpreendeu a também mestranda, de 34 anos, que prefere não se identificar, foi emitido após a Universidade Federal de Pernambuco afirmar que não poderia interferir em um processo judicial que já está em fase de execução.
Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, a servidora afirma que só teve conhecimento do processo judicial no final de setembro e que, desde então, teve que correr contra o tempo para entender e buscar ajuda jurídica para não perder o emprego.
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“Ainda estou em choque pelo tempo em que tudo se deu. Recebi, no meu e-mail, no final de setembro, um primeiro comunicado que retratava que uma outra candidata, da época do processo seletivo, estava buscando recorrer à decisão tomada durante o processo seletivo. Em primeiro momento, acreditei que seria de responsabilidade da instituição entender o caso e, se fosse possível, abrir uma vaga, e que meu emprego não estaria sob risco. Infelizmente, não foi o que aconteceu”, conta.
No entanto, o processo, que corria sem o conhecimento da servidora, alegava que o processo seletivo não cumpriu com as regras estabelecidas sobre as vagas e outra candidata, identificada como uma mulher branca, pedia, em primeira instância, a exoneração da servidora negra e a sua nomeação por meio de via judicial.
De acordo com a alegação da candidata, a UFPE não poderia colocar a atual servidora para preencher a vaga por não seguir a lógica do quadro de aprovação. A candidata que recorreu ao processo, cobra que, para a abertura de uma vaga para cota racial, a instituição deveria contar com três vagas ao todo, para que duas fossem oriundas do quadro de ampla concorrência e uma para cotista. Entretanto, a instituição, que só havia aberto uma vaga a nível superior, não preencheu as duas primeiras vagas de ampla concorrência, abrindo espaço para a servidora negra que havia passado em primeiro lugar pelo sistema de cotas.
O caso foi ao júri, que em primeiro momento alegou que a universidade havia cumprido com todas as normas previstas no edital e que não haveria erro na condução do processo seletivo. Mesmo assim, a outra candidata recorreu e, em segunda instância – quando a alegação mudou a narrativa, sem pedir exoneração da servidora, apenas abertura para mais uma nomeação -, o processo resultou no pedido de cancelamento de nomeação e no primeiro comunicado enviado pela UFPE à servidora afirmando a necessidade de saída.
A servidora contou à redação que, nesse momento, entrou em contato com o advogado, Rodrigo Almendra, para orientá-la sobre como agir diante do aviso de cancelamento de sua nomeação. Os dois entraram em contato com a instituição, que se disponibilizou a escutá-la e promoveu uma reunião nesse momento envolvendo membros do gabinete do reitor e demais professores, entretanto, mesmo se posicionando contrária a decisão da justiça, a administração, de acordo a servidora, afirmou não poder fazer nada pelo caráter executório do processo.
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Diante da situação, o advogado Rodrigo Almendra enviou uma petição pelo sistema da UFPE direcionando o documento à procuradoria, e a resposta foi de que a entrada da nova candidata estaria, sim, atrelada à exoneração da servidora negra. O processo foi recorrido e o júri afirmou que a permanência seria estabelecida pela própria administração da UFPE, que mais uma vez alegou que não conseguiria alterar diante de um parecer já em execução.
“Nesse momento, me senti completamente abandonada pela instituição que, na reunião, se mostrou empática com a minha situação, mas afirmou depois não poder fazer nada. Se a justificativa do processo já está em execução, por qual motivo não fui comunicada antes? Poderia ter buscado ajuda jurídica muito antes, mas não foi o que ocorreu, não tive essa oportunidade”, dispara a servidora.
Para ela, o caso configura episódio de racismo institucional pela falta de diálogo e responsabilidade ao comunicar o tempo em que o processo estava acontecendo. A servidora afirma estar surpresa, sem esperança para mudança do caso e declara que nenhuma compensação que a universidade possa estabelecer posteriormente trará de volta a vida que tinha antes.
“Me sinto totalmente exposta. Antes de ingressar na UFPE eu tinha uma vida, era concursada, tive que pedir exoneração para assumir o cargo. Passava oito horas por dia estudando para tentar ocupar um lugar na instituição. Não foi sorte a minha entrada, foi esforço por não ter as mesmas oportunidades e por não estar por tanto tempo dentro do ambiente acadêmico como outras pessoas já estavam inseridas. Lembro que, ao entrar, pensava em como a política de cotas seria importante para tentar reduzir essa desigualdade de acessos e, agora, me acontece isso”, desabafa.
Emocionalmente abalada, a servidora relata que foi estudante de escola pública desde a educação básica até o ensino médio. Filha de ex-empregada doméstica – que só saiu do emprego após o ingresso da filha na universidade, que lhe garantia renda – e de pai operário, ela afirma que não sabe como irá se manter sem perspectiva de estabilidade financeira.
“Penso que até meu objeto de pesquisa, que tratava os impactos do racismo ambiental com as pescadoras do litoral sul do estado, vai sofrer com tudo isso. Vejo que não tenho condições psicológicas e estrutura mesmo para parar e tentar outros processos seletivos. Abri mão de uma outra vida que tinha antes da instituição e, agora, não sei o que fazer”, finaliza.
Diante da exoneração oficializada, o advogado, Rodrigo Almendra, deve realizar um mandado de segurança – documento que visa proteger direitos, probados por documentos, que tenham sido violado por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público – à justiça. Além da emissão do documento, com apoio e contato com a Articualção Negra de Pernambuco, Movimento Negro Unificado e UNEGRO, uma nota de repúdio ao episódio será publicada e, em breve, uma mobilização em prol do direito da servidora será realizada.
O QUE DIZ A UNIVERSIDADE
Procurada pela Alma Preta Jornalismo, a Universidade Federal de Pernambuco afirma que tuou desde o primeiro momento em que foi informada judicialmente sobre o processo no sentido de defender a manutenção da vaga pela servidora – tendo ainda deixado-a a par da decisão judicial assim que houve a notificação do caso. Em nota enviada à redação, a instituição declara que interpôs todos os recursos cabíveis no processo judicial. Buscou ainda evitar a exoneração de forma administrativa. Mas, devido à natureza específica do cargo, de Biólogo, não havia outra vaga para ser disponibilizada à servidora, visto que isso está condicionado ao Ministério da Educação (MEC).
A instituição ainda relata que solicitou ainda parecer da Procuradoria Jurídica, mas o entendimento foi o de que deveria ocorrer a exoneração da servidora e nomeação da candidata que havia ganho o processo na Justiça, conforme decisão do Tribunal Regional Federal (TRF), que precisou ser cumprido pela Universidade, visto que a instituição não tem o poder de descumprir ordens judiciais.
Por fim, a UFPE informa ainda que reconhece a importância das ações afirmativas, atuando com protagonismo na efetivação de políticas de promoção da igualdade étnico-racial, seja no oferecimento de cotas na graduação e na pós-graduação, seja na seleção de novos servidores. A Universidade ressalta ainda a criação do Núcleo de Políticas e Educação Étnico-Raciais (Núcleo ERER), cujo objetivo é contribuir com a implementação dessas ações e também de uma política de ações afirmativas no sentido de contribuir para a promoção da igualdade racial na UFPE.