“O bater dos nossos tambores atravessa o oceano e o mundo conhece a nossa cultura. É como se fizéssemos o caminho de volta da escravidão, mas dessa vez sem tristeza, chibatas e lamento”
Texto: Livia Martins | Edição: Nataly Simões | Imagem: Dillasete
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A cultura do samba está enraizada em sua família muito antes dela nascer. Stellita Márcia é sinônimo de resistência popular onde vai e com maestria preside o Império das Baluartes do Samba do Estado de São Paulo, organização que defende e valoriza a atuação da mulher sambista em um meio ainda extremamente machista.
Na árvore genealógica do samba, seu avô foi um dos responsáveis por iniciar a paixão que atravessou gerações. “Desde a década de 1920, meu avô desfilava como baliza e também era presidente do cordão Campos Elíseos. Meu pai e meu tio desfilavam no cordão Cai-Cai desde os seis anos e, depois, mais velhos, entraram na bateria do cordão”, conta.
Os antigos cordões eram organizados de maneira diferente da que vemos na escolas de samba. Era comum ter porta-estandartes, corte com reis, princesas e rainhas, além da figura do baliza, que fazia malabarismos com um bastão e abria espaço para os outros participantes desfilarem.
A mãe, Meirice de Oliveira, levava ela e a Andrea Carla de Oliveira, sua irmã mais velha, para as matinês de carnaval organizadas pelo Aristocrata Clube. O pai de Stellita foi um dos fundadores da associação civil beneficente criada exclusivamente para a comunidade negra de São Paulo como modo de resistência e valorização da identidade. “Eu lembro que muitas festas que o clube fazia, as escolas de samba eram convidadas para se apresentar”, recorda.
Ainda criança, Stellita, a irmã e a mãe acompanhavam todos os anos os desfiles na Avenida São João, no centro de São Paulo, na década de 1970. Dona Meirice forrava parte da arquibancada com plástico e as meninas ficavam esperando até o pai desfilar na Vai-Vai, escola formada a partir do antigo cordão Cai-Cai, em 1972. No início da sua juventude, ela começou a desfilar em diferentes alas da mesma escola de samba de seu pai, mas com 16 anos que Stellita começou a ocupar outros espaços na agremiação e deixando a figura de simples foliã. “Comecei numa ala chamada Império, que era de muita tradição na escola. No início, eu fui destaque de chão, o que chamamos de musas hoje. Depois, eu passei a auxiliar a chefe de ala”, explica.
O destino reservou mais surpresas para a baluarte. Sempre muito prestativa na escola, ela explica que naquela época todos os componentes, além de desfilarem, tinham um comprometimento com o cuidado do patrimônio da escola, como a limpeza da quadra e dos banheiros. Stellita acompanhou o nascimento da Velha Guarda da Vai-Vai, idealizada pelo icônico e grande sambista Sebastião Eduardo do Amaral, o Pé Rachado. A dedicação e a história que sua família construiu na escola foram percebidas por um dos presidentes que a agremiação teve, o Sólon Tadeu. “Eu tinha 36 anos de idade, não tinha a faixa etária autorizada para entrar na velha guarda. Mas, o Solón, assinou um documento permitindo a minha entrada como forma de reconhecimento por tudo que eu já tinha feito”, relata.
O que já era uma relação intensa conseguiu ser demonstrada de diversas formas, como algumas ideias de figurinos para os componentes e até a compra de alguns materiais para confeccionar as roupas com o seu próprio dinheiro. “A minha alegria era ver a escola na rua, era saber que o Vai-Vai estava na avenida”, comenta Stellita, com a voz embargada. A sua família está na escola há 82 anos. Entretanto, alguns conflitos pessoais fizeram com que ela saísse da velha guarda da Vai-Vai.
Stellita é formada em Nutrição e Dietética, mas no começo dos anos 2000 ficou desempregada. “Comecei a reciclar latinha para vender e ter algum tipo de sustento. Não me arrependo e tenho orgulho do que eu fiz. Eu tive alguns conflitos por conta da atitude que tive que tomar, algumas pessoas se afastaram de mim e foram preconceituosas”, relembra. Apesar de toda a tristeza que sentiu no momento, Stellita retornou a desfilar na escola em 2005, no último carro do enredo “Eu também sou imortal”. Na ocasião, ela foi convidada pelo conselho deliberativo e, anos depois, retornou para a velha guarda. Na mesma época, voltou para a sala de aula e fez pós-graduação em Química.
Valorização das mulheres sambistas
Nos anos que passou fora da sua escola querida pelos dissabores vividos, Stellita refletiu bastante o que poderia fazer para ter mais ações na sociedade de reconhecimento a pessoas que dedicam grande parte da vida em prol da tradição do samba. Entre conversas e desabafos com uma amiga, Natalina Lourenço da Silva, ela percebeu que poderia criar um título que fizesse essa função, principalmente, no que diz respeito a autoestima da mulher negra no samba, um ambiente onde muitas posições de liderança são ocupadas por homens. Antes do Império das Baluartes nascer, ela foi homenageada pelo deputado estadual Nivaldo Santana no Dia Nacional do Samba, celebrado em 2 de dezembro.
Em 2007, Stellita procurou um meio de também ter o apoio governamental para tal proposta, já que a atuação contribui para a cultura do samba paulistano, um patrimônio. “O ex-deputado Roberto Felício no começo não acreditou muito na minha proposta, porém aceitou. Quando ele viu o local cheio de convidados para a celebração, ele me parabenizou antes de começar sua fala. Foi emocionante”, compartilha No dia 9 de fevereiro daquele ano, em um ato solene na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), o ex-parlamentar contemplou com título de Imperatriz e Baluarte do Samba do Estado de São Paulo mais de dez mulheres com mais de 30 anos de desempenho a essa cultura no estado paulista. No mesmo dia, Stellita, condecorada, criou o Império das Baluartes. Desde então, três atos solenes já foram realizados e, aproximadamente, 53 imperatrizes já foram homenageadas na Alesp.
Além de personalidades do carnaval, mulheres fora do universo do carnaval também são condecoradas, como a dona Generosa da Silva. Ela foi quem fundou o Samba da Laje, importante e tradicional roda de samba que acontece na Zona Sul da capital.
Cada vez mais, elas conquistam novos espaços e não existem fronteiras para as vitórias. As imperatrizes são madrinhas do grupo Flor da Idade, união de várias componentes de diferentes alas de velha guarda do Rio de Janeiro. No solo carioca, outro marco também foi a participação de Stellita no desfile da escola de samba Portela, em 2013. Na ocasião, ela carregou o estandarte do Império das Baluartes do Estado de São Paulo.
Resistência popular
O samba é a paixão de Stellita e ter como lutar politicamente só te motiva a persistir em ocupar espaços de diferentes formas, como as festas realizadas para receber outros grupos de velhas guardas de escolas de sambas de diferentes estados, como do Rio de Janeiro e de Santa Catarina.
“O bater dos nossos tambores atravessa o oceano e o mundo conhece a nossa cultura. É como se fizéssemos o caminho de volta da escravidão, mas dessa vez sem tristeza, chibatas e lamento. O sambista se apresenta em um teatro a céu aberto e milhares de pessoas vão ver o desfile todos anos. A cultura do samba e do carnaval pode chegar longe, mas temos que dissolver as diferença e agir com mais humildade”, enfatiza Stellita.
No mês da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, o Alma Preta traz uma série de reportagens especiais que contam a história de mulheres inspiradoras.